domingo, 28 de junho de 2015

SHOW DO EU

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A principal transformação recente nas sociedades contemporâneas envolve uma verdadeira revolução digital em que são dissolvidas as fronteiras entre telecomunicações, meios de comunicação de massa e informática. Convencionou-se nomear esse novo ciclo histórico de Sociedade da Informação, cuja principal marca é o surgimento de complexas redes profissionais e tecnológicas voltadas à produção e ao uso da informação, que alcançam ainda sua distribuição através do mercado, bem como as formas de utilização desse bem para gerar conhecimento e riqueza.

Para a Sociedade da Informação se transformar em Sociedade do Conhecimento, faz-se necessário investir em educação e cultura como agentes formadores do cidadão esclarecido e bem-intencionado. Educar não é somente qualificar para o emprego, nem arte é apenas adorno que aguça a sensibilidade. Há uma dimensão humana que, sem educação e cultura, nada agrega como experiência coletiva, nem alcança a plenitude como experiência individual capaz de discernir e ser livre para escolher. E, sem isso, não podemos dizer que somos realmente humanos. 

Formar o cidadão é dar-lhe a dimensão dos seus direitos e deveres, em relação à sua família, em relação à sua comunidade, em relação à vida política, em relação ao seu trabalho e em relação à sua pátria. Como pensar em cidadania no último país a abolir a escravidão? Em vez de escravizados, deveríamos ter estudantes, professores, trabalhadores, intelectuais, artistas, ombro a ombro, exigindo o direito de todos ao saber e à plenitude da experiência de estar no mundo. 

A educação, entendida exclusivamente como formação profissional, abandonando a formação do cidadão e do ser humano, fica reduzida ao papel subalterno de adestramento para a produção, preparação de mão-de-obra amesquinhada, linha auxiliar do acirramento da já perversa concentração de renda. A respeito, tem razão o escritor Ferréz, ao destacar, em Cronista de um tempo ruim (2009), que: “somos manobrados, de uma religião até o time preferido, e só inteligência e a criatividade para nos manter vivos em primeira instância, e depois proliferando o grande plano de controle a que estamos submetidos, nos tiraram tudo, e hoje quando sentamos em frente a uma praça nos sentimos culpados, parados, devíamos estar trabalhando, produzindo, lutando, comprando, é para isso que servimos, recarga do capitalismo”. 

Essa conjuntura trágica eleva-se ao quadrado, quando nos deparamos com a insuficiente escolarização da população, a ineficiência do modelo educacional, a esquizofrênica separação entre educação e cultura, e a elitização da cultura. Infiltrando-se simultâneas, funcionam como uma bomba com o silencioso rastilho aceso. Na crônica “Desordem do mundo” (Jornal de Notícias, em 26/06/1948), Cecília Meireles aponta para a existência de uma Sociedade do Ruído, na qual o grotesco da fala devora o sublime da escuta: 

“O mundo é uma grande casa em desordem, onde todos se sentem com o direito de gritar. Os que gritam não se entendem; e os poucos que saboreiam falar proveitosamente, como poderão ser ouvidos, em tamanha confusão? De tal modo cresceu e generalizou o hábito da queixa e do protesto que os que sofrem em silêncio passam a ser malvistos. Como nas cenas de desastre, o mais atingido ou geme baixinho: mas em redor dele a vizinhança vadia comenta, discute, esbraveja e encontra uma gloriosa vingança em perder tempo com loquacidade. Todos opinam; o prazer da opinião parece mesmo estar em proporção direta com o desconhecimento do assunto”.

Sem educação e cultura, a comunicação do desenvolvimento fica desprovida do desenvolvimento da comunicação. O desenvolvimento da comunicação se dá com a liberdade de expressão qualificada pela responsabilidade argumentativa. A cultura e a educação não podem se resignar às migalhas que caem da mesa do poder, interessado predominantemente na exploração marqueteira dos valores do espírito para alavancar o prestígio de suntuosas nulidades e o narcisismo de obscuros embusteiros. A respeito, Karla Saraiva, doutora em Educação pela UFRGS, no artigo “Identidades na Babel eletrônica” (Identidades no contexto escolar, 2013), expressa parecer de destaque: “se as mídias unidirecionais promovem a exibição de uma legião crescente de celebridades instantâneas (que têm os 15 minutos de fama preconizados por Warhol), na internet cada um pode promover a si mesmo a celebridade. Cada um pode produzir o seu próprio show do eu".  

O “show do eu” dói em nós. O que dizer do legado cultural e educacional deixado por Cristiano Araújo, músico sertanejo falecido recentemente? A intimidade como espetáculo idiota: “Bará bará bará,/Berê berê berê/Bará bará bará,/Berê berê berê/Cristiano Araújo fazendo bará, berê/E quando eu te pegar, você vai ficar louca/Vai ficar doidinha, doidinha dentro da roupa/Quando eu te pegar vou fazer diferente/Tenho certeza vai pirar a sua mente/A bebida tá subindo, a cabeça enlouquecendo/O clima tá esquentando, só vai dar eu e você/Pra gente então fazer/Bará bará bará,/Berê berê berê”. 

Bará ou Berê, eis a questão! No espectro cultural brasileiro, há um vácuo entre arte popular e arte tradicional. No gap entre as duas, irrompeu a indústria audiovisual de entretenimento, hoje hegemônica. O público, além de introjetar valores desta indústria, assiste à contaminação da cultura do espírito e da cultura popular pela anódina cultura de massa. Lembro-me do saudoso Itamar Assumpção, em Cultura Lira Paulistana (1998), chamando a atenção para a seguinte calamidade pública: “porcaria na cultura tanto bate até que fura”. Portanto, a Sociedade da Informação só vai se transformar em Sociedade do Conhecimento, se ela priorizar, como forma e conteúdo, a arte de transgredir o cinismo e a falência da crítica.


* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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