sábado, 20 de junho de 2015

CORPO LETRADO


Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Título do poema: “A palavra é meu viagra/minha pílula de felicidade”. Eis os versos: “Anabolizante no corpo sem falha/Silicone no espírito das ideias/Vasectomia/na reprodução da língua/ Cirurgia plástica na/ fisionomia do texto/ Implante na/ gramática dos sentidos/Tatuagem na anatomia da fala/Bronzeamento na pele da letra/Ginástica na musculatura/dos signos”. Neste texto que integra o livro Corpo letrado (2009), o poeta e músico Babilak Bah renova o debate sobre os postulados da genealogia da escritura, apresentada como phármakon. Jacques Derrida, em A farmácia do Platão (1972), já discutia o caráter ambivalente de um phármakon: remédio ou veneno, a depender da dose e do contexto em que for aplicado. Considerando a palavra como fármaco que nos auxilia a quebrar a cadeia da impotência, Babilak destaca o gozo expressivo a ser desfrutado, na interação, pelos seres de linguagem. A palavra como potência erótica (remédio), ressaltada por Babilak Bah, só pode ser viabilizada quando, movidos pela expressão da alteridade, percebemos que o significado de qualquer signo é inteiramente relacional e contextual. Mas existe também a palavra como impotência ideológica (veneno). Para tratar deste mal, Babilak, como já vimos, indica: “silicone no espírito das idéias//vasectomia na reprodução da língua”.

Um dos campos de observação potencialmente mais ricos para o observador dos fenômenos ideológicos é, com certeza, o da linguagem. Os movimentos da linguagem simultaneamente ocultam e revelam os movimentos dos desejos, dos medos, dos preconceitos e dos conhecimentos dos seres humanos. No uso cotidiano, não temos tempo para fixar nos termos que utilizamos toda a atenção que eles merecem. Quando, porém, nos debruçamos sobre eles e nos empenhamos em reconstituir o caminho que percorreram, notamos que, de fato, eles têm mais a dizer do que costumamos supor. Por isso, é recomendável fazer “ginástica na musculatura//dos signos”, conforme a sugestão precisa de Babilak Bah.

Em sua gênese, em seu emprego, as palavras põem a nu os “valores” das sociedades que as criam e veiculam, e proporcionam elementos significativos para a discussão em torno do que tais “valores” têm de universal e de restritamente particular.

Os portugueses do século 16, mobilizados pelo ímpeto da expansão colonial, consideravam insensatos aqueles que se revoltavam contra a dominação que lhes era imposta. Quando os habitantes das ilhas Molucas se rebelaram, em 1570, e mataram muitos colonizadores portugueses a pauladas, a consternação em Lisboa foi imensa. Foi então que os lisboetas passaram a usar uma palavra que designava os ilhéus “subversivos” e lhes caracterizava a “loucura”: “malucos”.

A linguagem indica, às vezes, a profundidade e a extensão do temor às diferenças. Quem chegava de outras terras era vista com suspeita: “estrangeiro” e “estranho” têm a mesma raiz. Os habitantes das cidades viam com maus olhos os homens do campo, considerados rudes, grosseiros. Na Roma antiga, as casas situadas fora do perímetro urbano eram chamadas de “vilas”. E foi com base nesse termo que se formou o adjetivo “vilão” (o "bandido”).

Em latim, povo era “vulgus”, termo do qual deriva o adjetivo “vulgar”. Juntos, os homens do povo constituíam uma “turba”; e a partir dessa palavra se formou o verbo “perturbar” e surgiu o substantivo “turbulência”. O próprio número dos elementos populares os tornava assustadores: o termo “multo” (muitos), que deu “multidão”, deu também “tumulto”.

Quando se deixavam ensinar (“docere”) e aprendiam as normas de conduta que  lhes eram recomendadas pelos detentores do poder, os homens do povo eram elogiados, sendo chamados de “dóceis”. Quando, no entanto, insistiam em seguir preceitos próprios e divergiam dos princípios constituídos, eram comparados aos arados que saíam do sulco marcado pela charrua, eram acusados de “delirare”. Se por acaso pediam algo, os pobres eram tolerados, desde que se expressassem com humildade (pedir, em latim, era “regare”). Se contudo, ousavam “reivindicar” (em latim: “arrogare”), passavam a ser vistos como criaturas “arrogantes”.

Como podemos acompanhar, “a letra estrala/entre vértebras./Trevas adentro”, conforme adverte Babilak Bah, em outro poema do seu fabuloso livro. Segundo alguns autores dedicados a investigações etimológicas, a palavra “ladrão”, por exemplo, deriva de “lateranus”, que era, em latim, o termo que designava os soldados que caminhavam ao lado do magistrado, zelando pela segurança da autoridade e aproveitando para roubar os circunstantes. Até o século 17, o termo “polícia” designava o conjunto da organização política e administrativa da sociedade. A partir do século XVIII, ele passou a ter a acepção mais restrita de um serviço de controle, de uma organização repressiva, destinada a preservar a ordem através da prevenção e da coerção. A noção de agente de segurança pública foi ficando enfraquecida. Em seu lugar, cresceu a impressão do policial como “carrasco fardado”. Por esse motivo, entende-se o fundamento histórico da crítica expressa por Sérgio Sampaio, na canção Polícia, bandido, cachorro e dentista (2006): “eu tenho medo de polícia, de bandido, de cachorro e de dentista/Porque polícia quando chega vai batendo em quem não tem nada com isso/Porque bandido quase sempre quando atira não acerta no que mira/Porque cachorro quando ataca pode às vezes atacar o seu amigo/Porque dentista policia minha boca como se fosse bandido/Porque bandido age sempre às escuras como se fosse cachorro/Porque cachorro não distingue o inimigo como se fosse polícia/Porque polícia bandideia minha boca como se fosse dentista”.

Não é, portanto, na brincadeira de pega-pega que a linguagem melhor se apresenta. Mas no brincar de esconde-esconde. O verbo se faz carne onde o corpo letrado dança.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.



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