domingo, 14 de junho de 2015

A PROVA DOS NOVE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Inesquecível a voz entusiasmada de Jair Rodrigues, cantando Disparada (1966), letra de Geraldo Vandré e música de Theo de Barros: “Boiadeiro muito tempo, laço firme, braço forte/Muito gado, muita gente pela vida segurei/Seguia como num sonho e boiadeiro era um rei/Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo/E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando/As visões se clareando, até que um dia acordei/Então não pude seguir, valente, lugar tenente/E o dono de gado e gente, porque gado a gente marca/Tange, ferra, engorda e mata/Mas com gente é diferente/Se você não concordar não posso me desculpar/Não canto pra enganar, vou pegar minha viola/Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar”.

A violência como marca da escravidão e da banalização do mal ganha em tempos atuais uma sinistra “matemática moderna” no Brasil, conforme destaca o escritor César Cardoso, em texto publicado na revista Caros Amigos (junho de 2003). Em texto cortante, promovendo afiada reflexão sobre a barbárie e a divulgação/promoção da crueldade através dos meios de comunicação, o autor, pela voz narrativa, assim se pronuncia:

“João foi à feira com 5 reais e comprou duas couves, meia dúzia de laranjas e cinco tomates. Ficou com 1 real e 70 centavos de troco e, na volta para casa, foi atingido por uma bala perdida, morrendo na calçada antes da chegada de uma ambulância.
Joana foi ao shopping com um cartão de crédito e comprou dois tops, um par de sandálias e três batons. Gastou 124 reais e 70 centavos e, na saída do shopping, foi atingida por uma bala perdida, morrendo sem que se tenha identificado o autor do disparo.
Sabendo que a morte de João saiu num canto da página 10 e que a de Joana foi manchete de primeira página por uma semana;
Sabendo que o preço de um anúncio de jornal na primeira página é 178 por cento mais caro que o mesmo anúncio na página 10;
E sabendo que João e Joana estão mortos;
Responda:
Qual o valor da vida humana?”

À primeira vista, a imprensa proclama em alto e bom som que seu primeiro dever é “informar objetivamente”. O que quer significar “revelar a verdade dos fatos”. Cabe ao jornalista possuir sensibilidade noticiosa para selecionar, dentre os vários estímulos factuais, o que interessa e é útil ao público. Primando pelo interesse público, o periodista, ao atingir a adequação perfeita do enunciado aos fatos, zela pela verdade, principal fator de qualidade de um produto noticioso. Admitir a pluralidade de versões para o mesmo conjunto de fatos mostra o bom senso dinâmico do jornalista, evitando posições extremistas que desqualificam a perspectiva necessária para informar e opinar com lisura. Aconselhou o repórter Joel Silveira (1918-2007), jornalista não é quem toca na banda, mas quem vê a banda passar. Por isso, convém afirmar que o periodista é a ponte entre as fontes informativas e opinativas. O jornalista trabalha com o saber dos outros e costura essas composições epistemológicas de tal forma que a opinião pública tenha mais elementos para compor, com mais riqueza de detalhes, seus quadros interpretativos.  E isso é, em parte, verdade. 

Diria mais. A imprensa, não raro, também desinforma. Primeiro por seu silêncio total ou parcial. Ela escolhe as notícias. E algumas simplesmente cala-as. A imprensa desinforma pela maneira como aborda um tema. Se toda a sociedade fosse madura, culta, esse mal seria menos relevante. Mas, numa sociedade, como a nossa, cuja cabeça se vai formando ao sabor dos noticiários, a maneira de informar torna-se tão ou mais importante que a própria notícia. É o famoso adágio: “o importante não é o fato, mas a versão do fato”.

Toda que vez que ficamos presos ao simples fato de informar, o que informar, como informar, não tocamos o problema central da imprensa. Tem-se que ir mais fundo. Aristóteles já tinha intuído o caminho de solução quando afirmava de modo direto que a “verdade” e o “bem” se convertem, isto é, um é o outro e vice-versa. Aqui parece estar um ponto de saída. Não se trata tanto de informar, mas de ir à verdade da realidade e nela encontrar o bem. A verdade da informação existe em vista unicamente do bem. Informar por informar não é nenhum critério ético, mas simples atitude técnica. Informar a verdade que seja fonte de bem é o grande critério ético do existir humano.

A tecnificação como ambiente (de)formativo e a estética da violência no jornalismo como apropriação da racionalidade instrumental só fazem confirmar a tragédia anunciada por Max Horkheimer, em Eclipse da Razão (1947), que vem contaminando até hoje o ambiente sociomidiático: “Parece que enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte da atividade e do pensamento humanos, a autonomia do homem enquanto indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente mecanismo de manipulação de massas, o seu poder de imaginação e o seu juízo independente sofreram aparentemente uma redução. O avanço dos recursos técnicos de informação se acompanha de um processo de desumanização. Assim, o progresso ameaça anular o que se supõe ser o seu próprio objetivo: a ideia de homem”.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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