quinta-feira, 4 de junho de 2015

O CONVIDATIVO E O IMPOSITIVO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Educação significa: modificação do não saber para o saber. No processo educacional, busca-se também a modificação da heteronomia moral para a autonomia moral. Pretende-se que as pessoas aprendam a decidir, por si próprias, como agir, com base em um entendimento do por que agir de um modo e não de outro. Há, ainda, outra busca de modificações desejadas com base na instrução educativa: o saber lidar adequadamente com as emoções, na direção do desenvolvimento criterioso da justa autoestima alta. As pessoas precisam estar bem consigo próprias, mas com bases sólidas para esse estar bem.

No âmbito escolar, a educação politicamente se comporta como forma de intervenção intencional na maneira de funcionar a sociedade. O homem educado não é só aquele que reúne um grande cabedal de conhecimentos singulares ou de informações, mas, principalmente, aquele que tem uma visão de totalidade, permitindo-lhe uma leitura coerente dos fatos e acontecimentos que o circundam. A escola precisa oferecer ao educando um quadro referencial básico, no qual ele possa exercitar uma visão biopsicossocial importante para o bem viver. 

Uma comunidade escolar que alimenta o propósito de favorecer uma formação ética dos seus educandos não pode simplesmente submeter-se às exigências de um sistema regido pelos princípios neoliberais, mercadológicos e de competitividade que afastam e rivalizam os indivíduos na contramão do sentido ético que é o de congregar e solidarizar. Caso a educação seja confundida com doutrinação hegemônica, ganhará voz o sentido de adestramento atrelado ao ato de educar, conforme especifica o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: “fazer (o animal) obedecer, domar”. Impera, nesse modelo, a liderança autocrática exercida pelo “educador impositivo”. 

Convém salientar que não se defende aqui um modelo escolar que represente algo como uma “bolha” ética protegida da contaminação do social. Ao contrário, escola e sociedade devem estar intimamente relacionadas, mas não no sentido de que o educativo deva simplesmente colocar-se a serviço do sistema. A educação deve dar-se a partir da realidade sociocultural e econômica, pois é nela que os educandos vivem hoje e irão viver no futuro como profissionais; mas isso não pode ocorrer pelo fomento de uma atitude de condescendência com os traços desumanos, injustos, destrutivos e antiéticos que esta realidade ostenta. O preço que a escola paga pela submissão acrítica aos ditames da razão instrumental é a perda da dimensão ético-política do projeto histórico de emancipação. A pedagogia da autonomia, defendida por Paulo Freire, apresenta como norte a educação na especial condição de processo voltado diretamente para o desenvolvimento físico, intelectual e moral de um ser humano. Para que isso ocorra, o educando precisa ser despertado para os problemas fundamentais do sujeito, da comunidade e do mundo de modo geral. É primordial para a viabilização desse paradigma valioso o papel social desempenhado pela liderança democrática, promovida pelo “educador convidativo”. 

É bem verdade, portanto, que não se pode ensinar virtudes. Ensinar (do latim in-signare) significa imprimir um sinal, um conhecimento, uma ideia, dentro de alguém; é uma ação em que o sujeito principal é aquele que a cumpre, que ensina – o docente –, cujo êxito depende essencialmente da sua preparação e da sua capacidade comunicativa. O outro tem um papel passivo no processo, e a dinâmica é fundamentalmente receptiva. Esse modelo unilateral de ensino foi chamado de “educação bancária”, por Paulo Freire. Representa também, nas palavras de Foucault, a “burocratização do conhecimento”. A epistemologia clássica identifica o conhecimento com a ordem, e que um problema deixa de sê-lo quando pode ser subdividido analiticamente. Busca-se esconder a incerteza congênita do processo de aprendizagem com uma série de tarefas escalonadas e através de uma sucessão de níveis de complexidade.

Por seu turno, educar (do latim e-ducere; conduzir para fora de) pode ser, metaforicamente, comparada a um parto. É um ato de colaboração com um processo cujo sujeito principal é aquele que é educado. Necessita-se, para o êxito desta empreitada, que o destinatário assuma em primeira pessoa a responsabilidade do próprio caminho, tornando-o seu criativamente. A educação é uma atividade que visa promover o bem do outro, que é posto na condição de prover a si mesmo o próprio bem. Na etimologia do termo educare, há referimento ao verbo ducere, conduzir, e este evoca a tarefa de guia, a ação de quem conhece a estrada e assume a responsabilidade de acompanhar o outro no caminho. Neste “acompanhar”, o elemento decisivo não é tanto o discurso, mas o estilo prático com o qual o educador desempenha sua função, com o seu comportamento, o que significa ser virtuoso. Educar a uma virtude é possível, mas somente se o educador se dá conta que cabe a ele por primeiro realizá-la, se deseja “contagiar” o outro. Concretiza-se, com esse movimento cultural avançado, a seguinte proeza: “os conscientes hão de brilhar como relâmpagos, os que educaram a muitos para a justiça brilharão para sempre como estrelas” (Dn 12, 3).  

Logo, a educação de qualidade abrange a formação de cidadãos democráticos, o que demanda modelos de identidade política que estendem radicalmente os princípios de justiça, liberdade e dignidade às esferas públicas constituídas pela diferença e por formas múltiplas de comunidade. Estas identidades práticas têm sido construídas como parte de uma pedagogia em que o composto social diferenciado se torna uma base para a solidariedade e a cidadania, e não para a competição e a discriminação. 

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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