sexta-feira, 19 de junho de 2015

NEGRISMO E ALTERIDADE


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Para Emmanuel Levinas, na obra Entre nós: ensaio sobre a alteridade (1991), a filosofia ocidental foi sempre uma tentativa de reduzir o Outro ao Mesmo. É preciso entender que esta redução não esgota o sentido daquilo que escapa à qualquer assimilação e à qualquer neutralização da diferença. Em Levinas, não há síntese da diferença pela identidade. É justamente essa desmedida do Outro (Alteridade) em relação ao Eu que possibilita a Levinas questionar a autossuficiência e violência do ser e, consequentemente, fundar um sentido ético, enquanto tensão permanente entre o Mesmo e o Outro, sem redução de um ao outro. Referir-se ao Outro como primeiro mandamento ético implica de fato uma descentralização do Eu como condição do sentido ético.

Examinando os mecanismos de expressão da alteridade, considerando o amplo leque de representações voltados a compreender a comunidade afro-brasileira, Luiz Henrique Silva de Oliveira, professor do CEFET-MG e doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG, parte do corpus literário para discorrer sobre o negrismo, condição externa à negritude e, portanto, dotada de uma rede de sentidos que vai destacar o negro apenas como horizonte temático. O autor do alentado livro Negrismo: percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984), assim, posiciona o centro da discussão: “Na linhagem negrista, a visão de mundo ainda se prende à cópia de modelos europeus e à assimilação cultural, entendidas como vias de expressão. Desta maneira, o negrismo ainda reflete o discurso do colonizador em seus matizes passados e presentes, configurando-se como discurso do mesmo, embora até promova ressignificações sobre a experiência negra em diversos tempos e espaços”.     

Tecendo algumas considerações teóricas envolvendo etnicidade e identidade, Claude Dubar, no livro A Socialização (1991), destaca, na produção das identidades, o processo biográfico (identidade do eu, o self) e o processo relacional, sistêmico, comunicacional (identidade para o outro). A atribuição de identidade não pode ser dissociada dos sistemas de ação em que o indivíduo está implicado e deriva das “relações de força” entre todos os atores envolvidos e da legitimidade das categorias utilizadas. A política identitária, portanto, se coloca em um ambiente de tensões conflitivas constantes no âmbito da afirmação do negro, uma vez que a justaposição de vozes hegemônicas a respeito costuma privilegiar o viés folclórico e exótico, considerando a realidade do racismo cordial brasileiro. Luiz Henrique, enfático em suas ponderações, profere: “o discurso negrista, pois, não rompe com os contratos de fala e escrita ditados pelo discurso branco, tampouco consegue expressar decisiva reversão de valores”.

Mesmo havendo “um interesse meramente paternalista pelas alteridades”, relativiza o pesquisador, o elemento africano convocado pelo discurso negrista contribuiu para a ressignificação do nativismo e contemplou um plêiade significativa de temas substantivos: “abordou a abolição, centrando-se em muitos momentos dela; discutiu a falta de projetos para a integração do negro na sociedade; trouxe a chave risível, a fim de inserir, por meio dela, a figura do afrodescendente; questionou a violência incidente contra os de pele escura; resgatou personagens históricas afro-brasileiras; recontou capítulos pouco conhecidos do nosso passado; discutiu imagens de negros recorrentes ao longo de nossa literatura; e, por fim, tratou da miscigenação e do branqueamento como saídas para os problemas étnicos do país”. 

Luiz Henrique propõe compreender o negrismo como “etapa de transição entre a literatura etnocêntrica e a literatura afro-brasileira”. Convém observar que a identidade étnica implica sentimentos de pertença e autoestima, o que desde logo remete para uma estreita ligação com a socialização familiar e grupal. Na configuração das identidades étnicas há que ter em conta os aspectos dinâmicos e situacionais; conjuga-se o passado com o presente, as heranças sociais e culturais e a adaptação às circunstâncias históricas, bem como os fatores primordiais e os instrumentais. As fronteiras étnicas são fluidas e dinâmicas, sendo atualizadas e reatualizadas em situação de interação quer entre os membros do grupo, quer entre não membros. As diferenças e oposições entre o “Nós” e os “Outros” evidencia a saliência das fronteiras entre os “insiders” e os “outsiders”.

Contemplando Macunaíma (Mário de Andrade), Xica da Silva (João Felício dos Santos), A marcha (Afonso Schmidt), Tambores de São Luiz (Josué Montello), A casa da água (Antônio Olinto) e Viva o povo brasileiro (João Ubaldo Ribeiro), Luiz Henrique observa em comum nestes romances a suavização da força discursiva da literatura afro-brasileira, por meio do “tempero negrista”. Mesmo que a questão étnica, nestes autores, não tenha sido problematizada a partir do ponto de vista inteiro, convém assinalar, por exemplo a relevância da personagem de Viva o povo brasileiro, Maria da Fé, mulher negra e detentora de um discurso político, eivado de consciência moral e ideais de liberdade e igualdade entre as pessoas. 

Se a boa-consciência brasileira não se dispor a trabalhar, sem discriminações, para o desenvolvimento coletivo da vida em plenitude, razão de sobra continuará tendo o discurso de Maria da Fé, ao ser julgada por um tenente do exército como bandida: “Como queria o senhor que um povo conservado na mais profunda ignorância pudesse compreender que não é a República a responsável por tudo de mau que lhe vem acontecendo? Se tudo piora, se a miséria aumenta, se a opressão se faz sempre mais insuportável, se a fome e a falta de terras são o destino de cada dia, enquanto os senhores salvam a Nação na Capital, escrevendo leis para favorecer a quem sempre foi favorecido? Se nada deve o povo à Monarquia, menos ainda deve à República. Que nos dá República? Manda o seu exército para nos matar. Se não nos rebelássemos, que nos mandaria? Mandaria a fome para nos matar”.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.


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