domingo, 14 de junho de 2015

ODE AO BURGUÊS


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A construção da história vivida é, na verdade, um processo decorrente das necessidades do próprio homem. Afinal, todos nós precisamos nos alimentar, nos vestir e estabelecer relações sociais, conforme escreveram Karl Marx e Friedrich Engles, no livro A ideologia alemã (1933): “Temos que começar constatando o primeiro pressuposto de toda existência humana e portanto de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens precisam estar em condições de viver para poderem ‘fazer história’. Mas para viver é preciso antes de mais nada comer e beber, morar, vestir, e ainda algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é portanto engendrar os meios para satisfação dessas necessidades, produzir a vida material mesma, e isto é um ato histórico, uma condição básica de toda a história que ainda hoje, como há milênios, precisa ser preenchida a cada dia e a cada hora, tão-somente para manter os homens vivos”. 

Garantidas as condições básicas de sobrevivência, o próximo passo histórico se refere à promoção de condições sustentáveis de convivência ética e pacífica entre os povos. Um dos obstáculos mais prejudicais para a efetivação deste princípio solidário se encontra na “história da luta de classes” que, segundo Marx e Engels, no Manifesto Comunista (1848), determina o desenvolvimento das forças materiais que ficam concentradas, predominantemente, nas mãos dos detentores dos meios de produção. Inserido neste sistema produtivo desigual, a força de trabalho passa a ser lida especificamente como o complexo das capacidades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um ser humano, e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer espécie.

No poema Perguntas de um trabalhador que lê, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), consciente do protagonismo coletivo, questiona a importância dada tradicionalmente pela história registrada aos ‘heróis’ e aos ‘grandes homens’: “Quem construiu a Tebas de sete portas?/Nos livros estão os nomes dos reis./Arrastaram eles os blocos de pedra?/E a Babilônia várias vezes destruída,/Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas/Da Lima dourada moravam os construtores?/Para onde foram os pedreiros, na noite em que/A Muralha da China ficou pronta?”. A leitura desse texto permite perceber que a partir do materialismo histórico, ampliou-se o reconhecimento dos trabalhadores como sujeitos históricos. Mesmo assim, adverte o historiador Edgar de Decca, em 1930: o silêncio dos vencidos (1981), “quem se põe ao lado do materialismo histórico sabe que todos aqueles que até agora venceram participam do cortejo triunfal, onde os senhores do momento pisoteiam os corpos dos vencidos de hoje”. Basta, no caso brasileiro, acompanhar as reflexões do empresário Antonio Oliveira Santos, presidente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). 

Santos, no livro O Brasil no século XXI (2006), responsabiliza a forte presença do Estado como obstáculo para o crescimento da iniciativa privada. O pleno funcionamento do livre mercado, portanto, deve ser o horizonte principal da governabilidade, argumenta o empresário. A causa do efeito-cascata, segundo Santos, se concentra na seguinte queixa: “o setor público retira do setor privado cerca de 40% do valor do PIB, 36,6% como tributos e o restante com operações de crédito”. Salta aos olhos a gula empresarial em ampliar suas margens de lucro, nem que para isso o Estado seja condescendente com o patrimonialismo exorbitante que nos assola culturalmente. Ao invés do empresariado brasileiro ser proativo no tocante à solução sustentável da crise econômica, jogar a culpa no Governo é mais cômodo. Parece que ajuste fiscal só cabe nas contas públicas. Ledo engano. Ressentido pela redução nas margens de lucro, o setor privado comprime os salários, reduz os investimentos e a geração de empregos. Trata-se de um ferrenho cabo de guerra disputado entre o Estado e o Mercado. Quem banca o prejuízo deste duelo é a sociedade brasileira. 

Cazuza, George Israel e Ezequiel Neves, no alto do rock-protesto intitulado Burguesia (1989), proclamavam: “A burguesia fede/A burguesia quer ficar rica/Enquanto houver burguesia/Não vai haver poesia”. Realmente, não há lirismo poético que segure a aridez existencial presente nos pareceres do empresariado retrógrado. Reclamando de barriga cheia, o setor privado, assim, se defende. Com a palavra, o mencionado presidente do CNC:

“Dessa forma, na atual conjuntura, a forte presença do Estado, superdimensionado e orçamentariamente desequilibrado, produz dois efeitos negativos e explosivos: 1) constrange o crescimento da economia, pela recessão do consumo e dos investimentos; e 2) torna-se o maior responsável pelas pressões inflacionárias, eis que, na medida em que aumenta sua participação no bolo da Renda Nacional, desencadeia um processo de reajustes de preços e de salários, que tendem a realimentar a inflação (chamada inflação inercial)”.

Estado e Mercado precisam urgentemente de medidas fundamentais no que tange à gestão salutar, objetivando o saneamento de suas contas e a aplicação ética dos rendimentos na promoção coletiva da vida em plenitude. Uma economia despolitizada do seu papel social já era alvo de críticas feitas pelo saudoso escritor modernista Mário de Andrade, no poema Ode ao burguês (1922): “Fora os que algarismam os amanhãs!”. Há que se responsabilizar “o burguês-níquel”, conforme advertia Mário, pela campanha irresponsável de mutilar o Estado Democrático de Direito, colaborando, assim, para a promoção do 'horror econômico' em progressão assustadora. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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