domingo, 14 de junho de 2015

DO ERRO MÉDICO


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Recentemente, um erro médico levou embora a vida de uma colega de trabalho. Pessoa que aprendi a admirar pelo bom humor e pela disposição em sempre colaborar. Fiquei emocionado, ao rememorar nossos encontros e saber que ela gostaria de ter suas cinzas depositadas no gramado da Esplanada dos Ministérios, local onde dedicou grande parte da sua vida como servidora pública. O triste episódio deve chamar a atenção da sociedade para o tema da responsabilidade civil na área médica. Ao analisar essa questão, é bom ter em mente, com muita clareza, que o fundamental ato do cuidado médico é a assunção da responsabilidade, e a prática cirúrgica é a assunção completa da responsabilidade pelo bem-estar do paciente.

A responsabilidade civil médica vem de tempos de antanho. Já era conhecida na Antiguidade, nos Códigos de Hamurabi e de Manu, que estabeleciam penas específicas para os médicos e cirurgiões que acarretassem lesões a seus pacientes ou que empregassem meios que os conduzissem à morte. O Código de Hamurabi, inclusive, continha estritas prescrições sobre as penas aplicadas no caso de mau procedimento cirúrgico. O mesmo ocorrendo na Lei das XII Tábuas e na Lei Aquilia. É importante – e esse seria o ponto nodal da questão relativa à responsabilidade civil na área médica e um dos aspectos que se deve mesmo ter em conta – a forma com que os pacientes são tratados.

É preciso sempre ter presente que o paciente, quando chega ao médico, é uma criatura absolutamente indefesa, atemorizada, e a sua expectativa é sempre a mais periclitante possível, ou seja, quando chega na busca da prestação do serviço médico, ele o faz debaixo de tal pressão, que o tratamento alcança não só a patologia da qual eventualmente possa estar sofrendo, mas também a própria situação psíquica, diante da falta de riqueza do conhecimento extraordinário que está por trás da Medicina.

Na realidade, o sistema de saúde tem por objetivo a cura, que é alcançada com um tratamento correto. Miguel Kfouri Neto fez um estudo muito precioso sobre a responsabilidade civil no campo médico e mostrou que o exercício profissional da Medicina acarreta, muitas vezes, uma falha que pode ter consequências irremediáveis, porque a vida que se perde é absolutamente irrecuperável: “Com respeito à dignidade humana, a relação contratual que se estabelece entre o médico e o paciente deverá sempre estar impregnada de humana consideração pelo semelhante, pelos valores espirituais que representa e, portanto, a função médica encerra mais do que um ato de justiça social, um dever imposto pela fraternidade social, tornando mais suportáveis a dor e a morte”.

Não é outro o efeito retratado por um neurologista inglês chamado Oliver Sacks. Nos Estados Unidos, tratando de um paciente com a Síndrome de Korsakov, sem encontrar solução razoável para o caso, escreveu para um grande especialista, professora A. R. Luria, que era, naquela época, o mais famoso na matéria. Pedia que lhe desse alguma opinião, alguma orientação, sobre o que fazer. O cientista respondeu ao professor Sacks, dizendo eu fizesse aquilo que sua perspicácia e seu coração sugerissem: “Há pouca ou nenhuma esperança de recuperar a memória do seu paciente, mas o homem – dizia o professor – não é apenas memória, tem sentimento, vontade, sensibilidade, existência moral, aspectos sobre os quais a neuropsicologia não pode pronunciar-se, e é aí, além da esfera de uma psicologia unipessoal, que poderá encontrar o modo de atingi-lo e de mudá-lo”. 

As circunstâncias do trabalho desenvolvido pelo neurologista, no entanto, eram muito favoráveis, pois trabalhava em um asilo, que era como um pequeno mundo, muito diferente das clínicas e instituições onde trabalhara. “Em termos neuropsicológicos” – concluiu o professor Luria –, “há pouco ou nada a fazer, mas, no que respeita ao indivíduo, talvez você possa fazer muito”. Essa lição, apresentada pelo professor Sacks, no seu livro O homem que confundiu a sua mulher com um chapéu (1997), é primorosa, porque talvez acompanhe toda a linha da moderna terapia da interação de amor entre o médico e o paciente.

Nessa mesma direção, o médico francês Phillippe Meyer, em obra chamada A irresponsabilidade médica (2002), assinala que a responsabilidade médica é inerente a uma profissão construída desde a sua origem com a compaixão, o altruísmo, a humanidade, a vontade admirável de tirar o outro de um mau passo. O sociólogo pernambucano Paulo Henrique Martins, em Contra a desumanização da medicina (2003), trabalha sob a égide reflexiva de Marcel Mauss e do paradigma da dádiva, segundo o qual “a sociedade se constitui a partir de uma regra social primeira, a obrigação de dar-receber-retribuir, e que a constituição do ‘vínculo social’ é mais importante do que a produção de ‘bens’”. A reflexão seria válida para se pensar o campo médico, definido como território de organização das práticas médicas e de organização de um mercado de bens simbólicos de curas. Martins defende que “a generalização da ideologia utilitarista e mercantilista do campo médico está em vias de produzir uma desumanização ou tecnificação importante do sistema como um todo, e das práticas de cura em particular”.

Um dos pontos nucleares da responsabilidade médica é exatamente o de identificar o erro. Assim, como se pode conceituar o erro do médico? O professor Júlio de Moraes oferece, com sobriedade, um ajuizado parâmetro: “O erro do médico, na medida em que o médico não é infalível, é aquele que um profissional de média capacidade, em idênticas condições, não cometeria”.


* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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