domingo, 28 de junho de 2015

SHOW DO EU

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A principal transformação recente nas sociedades contemporâneas envolve uma verdadeira revolução digital em que são dissolvidas as fronteiras entre telecomunicações, meios de comunicação de massa e informática. Convencionou-se nomear esse novo ciclo histórico de Sociedade da Informação, cuja principal marca é o surgimento de complexas redes profissionais e tecnológicas voltadas à produção e ao uso da informação, que alcançam ainda sua distribuição através do mercado, bem como as formas de utilização desse bem para gerar conhecimento e riqueza.

Para a Sociedade da Informação se transformar em Sociedade do Conhecimento, faz-se necessário investir em educação e cultura como agentes formadores do cidadão esclarecido e bem-intencionado. Educar não é somente qualificar para o emprego, nem arte é apenas adorno que aguça a sensibilidade. Há uma dimensão humana que, sem educação e cultura, nada agrega como experiência coletiva, nem alcança a plenitude como experiência individual capaz de discernir e ser livre para escolher. E, sem isso, não podemos dizer que somos realmente humanos. 

Formar o cidadão é dar-lhe a dimensão dos seus direitos e deveres, em relação à sua família, em relação à sua comunidade, em relação à vida política, em relação ao seu trabalho e em relação à sua pátria. Como pensar em cidadania no último país a abolir a escravidão? Em vez de escravizados, deveríamos ter estudantes, professores, trabalhadores, intelectuais, artistas, ombro a ombro, exigindo o direito de todos ao saber e à plenitude da experiência de estar no mundo. 

A educação, entendida exclusivamente como formação profissional, abandonando a formação do cidadão e do ser humano, fica reduzida ao papel subalterno de adestramento para a produção, preparação de mão-de-obra amesquinhada, linha auxiliar do acirramento da já perversa concentração de renda. A respeito, tem razão o escritor Ferréz, ao destacar, em Cronista de um tempo ruim (2009), que: “somos manobrados, de uma religião até o time preferido, e só inteligência e a criatividade para nos manter vivos em primeira instância, e depois proliferando o grande plano de controle a que estamos submetidos, nos tiraram tudo, e hoje quando sentamos em frente a uma praça nos sentimos culpados, parados, devíamos estar trabalhando, produzindo, lutando, comprando, é para isso que servimos, recarga do capitalismo”. 

Essa conjuntura trágica eleva-se ao quadrado, quando nos deparamos com a insuficiente escolarização da população, a ineficiência do modelo educacional, a esquizofrênica separação entre educação e cultura, e a elitização da cultura. Infiltrando-se simultâneas, funcionam como uma bomba com o silencioso rastilho aceso. Na crônica “Desordem do mundo” (Jornal de Notícias, em 26/06/1948), Cecília Meireles aponta para a existência de uma Sociedade do Ruído, na qual o grotesco da fala devora o sublime da escuta: 

“O mundo é uma grande casa em desordem, onde todos se sentem com o direito de gritar. Os que gritam não se entendem; e os poucos que saboreiam falar proveitosamente, como poderão ser ouvidos, em tamanha confusão? De tal modo cresceu e generalizou o hábito da queixa e do protesto que os que sofrem em silêncio passam a ser malvistos. Como nas cenas de desastre, o mais atingido ou geme baixinho: mas em redor dele a vizinhança vadia comenta, discute, esbraveja e encontra uma gloriosa vingança em perder tempo com loquacidade. Todos opinam; o prazer da opinião parece mesmo estar em proporção direta com o desconhecimento do assunto”.

Sem educação e cultura, a comunicação do desenvolvimento fica desprovida do desenvolvimento da comunicação. O desenvolvimento da comunicação se dá com a liberdade de expressão qualificada pela responsabilidade argumentativa. A cultura e a educação não podem se resignar às migalhas que caem da mesa do poder, interessado predominantemente na exploração marqueteira dos valores do espírito para alavancar o prestígio de suntuosas nulidades e o narcisismo de obscuros embusteiros. A respeito, Karla Saraiva, doutora em Educação pela UFRGS, no artigo “Identidades na Babel eletrônica” (Identidades no contexto escolar, 2013), expressa parecer de destaque: “se as mídias unidirecionais promovem a exibição de uma legião crescente de celebridades instantâneas (que têm os 15 minutos de fama preconizados por Warhol), na internet cada um pode promover a si mesmo a celebridade. Cada um pode produzir o seu próprio show do eu".  

O “show do eu” dói em nós. O que dizer do legado cultural e educacional deixado por Cristiano Araújo, músico sertanejo falecido recentemente? A intimidade como espetáculo idiota: “Bará bará bará,/Berê berê berê/Bará bará bará,/Berê berê berê/Cristiano Araújo fazendo bará, berê/E quando eu te pegar, você vai ficar louca/Vai ficar doidinha, doidinha dentro da roupa/Quando eu te pegar vou fazer diferente/Tenho certeza vai pirar a sua mente/A bebida tá subindo, a cabeça enlouquecendo/O clima tá esquentando, só vai dar eu e você/Pra gente então fazer/Bará bará bará,/Berê berê berê”. 

Bará ou Berê, eis a questão! No espectro cultural brasileiro, há um vácuo entre arte popular e arte tradicional. No gap entre as duas, irrompeu a indústria audiovisual de entretenimento, hoje hegemônica. O público, além de introjetar valores desta indústria, assiste à contaminação da cultura do espírito e da cultura popular pela anódina cultura de massa. Lembro-me do saudoso Itamar Assumpção, em Cultura Lira Paulistana (1998), chamando a atenção para a seguinte calamidade pública: “porcaria na cultura tanto bate até que fura”. Portanto, a Sociedade da Informação só vai se transformar em Sociedade do Conhecimento, se ela priorizar, como forma e conteúdo, a arte de transgredir o cinismo e a falência da crítica.


* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

ESTÉTICA DA OUSADIA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


As águas da inteligência e da sensibilidade se encontram no rio sem fim da leveza humana chamada Adriana Calcanhoto. Cantora do mais fino talento, ela, em Senhas (1992), compôs o mel do melhor em matéria de estética da ousadia: “Eu não gosto do bom gosto/Eu não gosto de bom senso/Eu não gosto dos bons modos/Não gosto/Eu aguento até rigores/Eu não tenho pena dos traídos/Eu hospedo infratores e banidos/Eu respeito conveniências/Eu não ligo pra conchavos/Eu suporto aparências/Eu não gosto de maus tratos/Mas o que eu não gosto é do bom gosto/Eu não gosto de bom senso/Eu não gosto dos bons modos/Não gosto/Eu aguento até os modernos/E seus segundos cadernos/Eu aguento até os caretas/E suas verdades perfeitas/O que eu não gosto é do bom gosto/ Eu não gosto de bom senso/Eu não gosto dos bons modos/Não gosto/Eu aguento até os estetas/Eu não julgo competência/Eu não ligo pra etiqueta/Eu aplaudo rebeldias/Eu respeito tiranias/E compreendo piedades/Eu não condeno mentiras/Eu não condeno vaidades/O que eu não gosto é do bom gosto/Eu não gosto de bom senso/Eu não gosto dos bons modos/Não gosto/Eu gosto dos quem têm fome/Dos que morrem de vontade/Dos que secam de desejo/Dos que ardem”. 

A voz poética de Calcanhoto parece dizer que a estética da ousadia representa uma desconstrução criativa das regras costumeiras. A artista brasileira expõe, com argúcia, que o belo agrada sem conceitos, sendo que a imaginação e a intuição é que desempenham papel importante na criação artística da vida. O juízo estético é um princípio intermediário entre a ordem intelectiva e a ordem racional, com suas leis próprias. O juízo teórico (julgamento racional) se preocupa com a verdade. O julgamento prático (o da moral), com a relação de meios e fins, portanto a utilidade. O julgamento estético, entretanto, é contemplativo: não é um julgamento teórico, nem prático, portanto desprovido de conceitos e não-teleológico. Se para Kant, o juízo é um meio termo entre o entendimento e a razão, Calcanhoto discute a tirania do gosto, quando este migra da atração sensível para o interesse moral habitual. Pelas portas abertas da percepção, a cantora promove a estética como a superação do mundo fechado do conceito. 

Coube, liricamente, a Adriana Calcanhoto defrontar-se com uma noção clássica de inteligência como amiga da regularidade, da estabilidade. Se inteligência tem por ponto de partida o estático, a intuição parte do movimento. Senhas representa a poética do ser que acompanha o real nas suas sinuosidades, desconfiando, assim, dos “puros conceitos” que costumam desligar a estética da ética, favorecendo a etiqueta trivial. A artista, com irreverência crítica, combate o simbolismo chuvoso a que se reduz geralmente a linguagem estética, que vive do inerte e do espacial, deixando, à margem, o fluxo da vida, a variação, a surpresa, a criação. O bom gosto, o bom senso e os bons modos, alerta Calcanhoto, contribuíram muito mais para construir muros do que pontes entre as pessoas.

Em Senhas, Adriana Calcanhoto valoriza o processo interno de maturação do sujeito sensível à procura do estético libertário. O estético aprisionado condena as borboletas ao casulo eterno. A cantora brasileira propõe compreender a vida como um jogo criativo, uma tarefa artística que se concretiza na peleja diária pela aquisição humana de virtudes, sem apelar para a rigidez de uma obediência infracriadora de normas internas e externas, cujas motivações nem sempre são as mais racionais e pode, até mesmo se apoiar no calculismo, na covardia ou mesmo em interesses inconfessáveis. A respeito, Friedrich Schiller, em Cartas sobre a educação estética da humanidade (1795), já revelava preocupação com o falseamento grotesco que inibe a autenticidade humana: “toda a imoralidade real parece, portanto, brotar da colisão do bem com o agradável ou, o que conduz ao mesmo, dos apetites com a razão, e ter como fonte por um lado à potência dos impulsos sensíveis, por outro lado à fraqueza da faculdade da vontade moral”.

Salienta a artista brasileira, pelo caminho da contestação inventiva, que a “imoralidade real” está diretamente vinculada à monotonia existencial, à redundância afetiva e à indigência intelectual. Adriana Calcanhoto percebeu muito bem que a condição humana perde substância e energia vital toda vez que se sente plenamente confortável com a maneira como as coisas já estão, rendendo-se à sedução do repouso e imobilizando-se na acomodação. Em oposição à cultura do conforto apático, a cantora assume sua admiração pelos “quem têm fome/dos que morrem de verdade/dos que secam de desejo/dos que ardem”. 

O bom gosto, o bom senso e os bons modos adoram um banquete, mas detestam lavar a louça. Quem lava a louça do sistema é a arte. Por isso, ela sofre com o policiamento sistemático dos “caretas” e de suas “verdades perfeitas”. Por que tamanho desprezo tirânico dirigido à estética da ousadia artística? Porque ela aplaude “rebeldias”, acentua, com primor, Calcanhoto. Porque a arte é “uma divagação sem relógio de ponto”, como diria a poeta Cecília Meireles, na crônica “Os artistas” (A Manhã, de 13/06/1945). Neste texto, a autora de Romanceiro da Inconfidência ressalta, ainda, que a estética da ousadia é temida porque se opõe ao imediatismo galopante da produtividade automática, materialista e tacanha: “A atividade artística é mais detestada porque praticamente não conduz a nada. Não se pode esperar que um quadro produza incontinenti a baixa do preço do feijão, nem que um poema cure a asma. À vista disso, morram os artistas!, porque o gênero humano precisa de coisas urgentes e satisfações elementares como essas duas. É quase preciso defender os artistas como se fossem assassinos ou ladrões, a fim de permitir a sua presença entre esses baluartes sociais que se veem ameaçados com a sua inútil existência”.  


* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

sábado, 27 de junho de 2015

COMPLEXO DE PITBULL

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Há, na mitologia grega, a figura do salteador Procusto, derrotado por Teseu, que vivia na serra de Elêusis e ficava perambulando pelas estradas em busca de suas vítimas. Quando as encontrava, Procusto costumava puni-las em sua casa, em um leito que tinha tamanho fixo e forma imutável. Se a vítima fosse maior que o leito, suas pernas eram cortadas, se fosse menor, eram esticadas. A vítima devia caber em seu leito obrigatoriamente. Assim acontece também com os pensamentos e valores. O ser humano, quando incorre no erro da generalização, tenta adequar a vida e as situações aos seus leitos mentais e emocionais. Natural que todos tenham referências e que elas sirvam de baliza para se conduzir na vida e analisá-la. No entanto, à proporção que o ser amadurece, conceitos e entendimento são relativizados, permitindo que a dúvida tempere a certeza para que a verdade não se transforme em convicção. A compreensão é um ato de alteridade que significa valorização e inclusão da diferença como elemento fundamental da riqueza e da beleza da vida. Pensar, assim como sentir, pede resiliência. 

O que é resiliência? Propriedade de um material em recuperar a sua forma ou posição original após sofrer choque ou deformação; elasticidade. No sentido figurado: poder de recuperação, capacidade de superar, de se recuperar de adversidades. E alteridade, o que seria? Capacidade de compreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença. Sem resiliência e alteridade, somos um pote até aqui de mágoas. Muitos mantêm essa postura durante toda a vida, negando a dor emocional, que somatizam mas não curam, lembrando uma frase comum de para-choque de caminhão e adesivos de vidro de carro, observadas nas estradas brasileiras: “eu capoto mas não freio”. Muitas doenças decorrentes das mágoas acumuladas na alma são evitáveis e representam a escolha do indivíduo em não se curar, ficando preso aos ganhos do papel de vítima da vida. O ressentimento não salva nem os campeões, não é mesmo, caro Dunga?

Informa o Correio Braziliense, de 27/06/2015, com manchete violenta: “Pediu pra apanhar”. Eis o miolo da matéria: “Um repórter pediu para o técnico dizer se a pressão sobre a geração do 7x1 é maior do que a sofrida pela Seleção da época dele – campeã da Copa América de 1989 e do Mundial de 1994; mas eliminada nas oitavas de 1990, na Itália. O então jogador Dunga foi culpado por não ter passado Maradona no lance em que o craque deu passe para o gol de Caniggia. 'Simples. Nós éramos ruins com sorte, os outros eram bons com azar. Aquela Seleção tinha uma cobrança de 40 anos sem Copa América e 24 anos sem uma Copa do Mundo. Eu até acho que eu sou afrodescendente de tanto que apanhei e gosto de apanhar. Os caras olham para mim: ‘Vamos bater nesse aí’. E começam a me bater, sem noção, sem nada. ‘Não gosto dele’ e começam a me bater', desabafou Dunga”. Continua tendo razão o abolicionista Joaquim Nabuco: “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. 

Dunga e seu racismo estrutural. Dunga e sua falta de autocrítica. Dunga e sua arrogância peculiar. Dunga e sua mania de perseguição. Pare de promover o massacre da bola quadrada, dentro e fora dos campos. Ninguém fica imune ao confrontamento de tudo aquilo que tenha promovido em si mesmo ou no outro, visto que a lei da justiça a tudo prevê, com equilíbrio, retornando ao ser, em seu corpo, em seu psiquismo e em circunstâncias o fruto de seu plantio, mais cedo ou mais tarde. Dunga, por que tanta sede de vingança? Por que tanta fome de sangue? O desejo de se fazer canal de justiça, que move os guerreiros e valentões, no cumprimento do “olho por olho, dente por dente”, escraviza o ser exatamente às emoções perturbadas, bem como vincula-o às criações mentais que reforçam os padrões de ódio, angústia e infelicidade. 

Aviso ao comandante da Seleção Brasileira: é necessário encarar a sombra, seus desafios, sua beleza oculta, sem medo, com amorosidade, questionando-se sempre a respeito de seus reais objetivos e interesses, manifestos ou ocultos, diante de seu sentimentos e realizações. Caso contrário, o medo negado se transforma em confrontamento, comportamento de risco que não reconhece limites ou perigos, e a sua vivência exacerbada será a eterna sensação de pânico. A tristeza não vivida, não sentida, será melancolia, e exacerbada será depressão. Negada, dá origem a mágoas; exacerbada, vira agressividade. Raiva é a resposta defensiva do mundo íntimo diante de uma ameaça de qualquer natureza, real ou imaginada. Na raiz de toda mágoa há raiva, reprimida ou reconhecida. 

Alguém que tenha a característica de liderança pode se tornar submisso ou autoritário, dependendo do “volume” de sua liderança, o que pode colocar a perder a característica que seja o seu ponto forte. Dunga, você é campeão do mundo, mas não consegue ganhar da própria petulância. Há aqueles, como o técnico da Seleção Brasileira, que gostam e envaidecem-se de dizer: “Aqui mando e sou obedecido”, sem lhes ocorrer que paira no ar um adendo revelador: “E sou detestado”. Aquele que é verdadeiramente respeitado o é pela seriedade, comprometimento e honradez com que se porta na vida, fazendo-se aceito por sua conduta, sem a necessidade de levantar a voz para que o outro lhe acolha; quando tal postura se faz necessária, no estabelecimento de limites que às vezes as relações requisitam, o faz com clareza de intenções e argumentações sobre o que propõe ou pensa. Dunga é o retrato de um país desbotado pelo ranger de dentes diário. Se antes, o Brasil vivia “o complexo de vira-lata”, como alertou Nelson Rodrigues, agora sofremos com o complexo de pitbull.  

* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

sábado, 20 de junho de 2015

CORPO LETRADO


Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Título do poema: “A palavra é meu viagra/minha pílula de felicidade”. Eis os versos: “Anabolizante no corpo sem falha/Silicone no espírito das ideias/Vasectomia/na reprodução da língua/ Cirurgia plástica na/ fisionomia do texto/ Implante na/ gramática dos sentidos/Tatuagem na anatomia da fala/Bronzeamento na pele da letra/Ginástica na musculatura/dos signos”. Neste texto que integra o livro Corpo letrado (2009), o poeta e músico Babilak Bah renova o debate sobre os postulados da genealogia da escritura, apresentada como phármakon. Jacques Derrida, em A farmácia do Platão (1972), já discutia o caráter ambivalente de um phármakon: remédio ou veneno, a depender da dose e do contexto em que for aplicado. Considerando a palavra como fármaco que nos auxilia a quebrar a cadeia da impotência, Babilak destaca o gozo expressivo a ser desfrutado, na interação, pelos seres de linguagem. A palavra como potência erótica (remédio), ressaltada por Babilak Bah, só pode ser viabilizada quando, movidos pela expressão da alteridade, percebemos que o significado de qualquer signo é inteiramente relacional e contextual. Mas existe também a palavra como impotência ideológica (veneno). Para tratar deste mal, Babilak, como já vimos, indica: “silicone no espírito das idéias//vasectomia na reprodução da língua”.

Um dos campos de observação potencialmente mais ricos para o observador dos fenômenos ideológicos é, com certeza, o da linguagem. Os movimentos da linguagem simultaneamente ocultam e revelam os movimentos dos desejos, dos medos, dos preconceitos e dos conhecimentos dos seres humanos. No uso cotidiano, não temos tempo para fixar nos termos que utilizamos toda a atenção que eles merecem. Quando, porém, nos debruçamos sobre eles e nos empenhamos em reconstituir o caminho que percorreram, notamos que, de fato, eles têm mais a dizer do que costumamos supor. Por isso, é recomendável fazer “ginástica na musculatura//dos signos”, conforme a sugestão precisa de Babilak Bah.

Em sua gênese, em seu emprego, as palavras põem a nu os “valores” das sociedades que as criam e veiculam, e proporcionam elementos significativos para a discussão em torno do que tais “valores” têm de universal e de restritamente particular.

Os portugueses do século 16, mobilizados pelo ímpeto da expansão colonial, consideravam insensatos aqueles que se revoltavam contra a dominação que lhes era imposta. Quando os habitantes das ilhas Molucas se rebelaram, em 1570, e mataram muitos colonizadores portugueses a pauladas, a consternação em Lisboa foi imensa. Foi então que os lisboetas passaram a usar uma palavra que designava os ilhéus “subversivos” e lhes caracterizava a “loucura”: “malucos”.

A linguagem indica, às vezes, a profundidade e a extensão do temor às diferenças. Quem chegava de outras terras era vista com suspeita: “estrangeiro” e “estranho” têm a mesma raiz. Os habitantes das cidades viam com maus olhos os homens do campo, considerados rudes, grosseiros. Na Roma antiga, as casas situadas fora do perímetro urbano eram chamadas de “vilas”. E foi com base nesse termo que se formou o adjetivo “vilão” (o "bandido”).

Em latim, povo era “vulgus”, termo do qual deriva o adjetivo “vulgar”. Juntos, os homens do povo constituíam uma “turba”; e a partir dessa palavra se formou o verbo “perturbar” e surgiu o substantivo “turbulência”. O próprio número dos elementos populares os tornava assustadores: o termo “multo” (muitos), que deu “multidão”, deu também “tumulto”.

Quando se deixavam ensinar (“docere”) e aprendiam as normas de conduta que  lhes eram recomendadas pelos detentores do poder, os homens do povo eram elogiados, sendo chamados de “dóceis”. Quando, no entanto, insistiam em seguir preceitos próprios e divergiam dos princípios constituídos, eram comparados aos arados que saíam do sulco marcado pela charrua, eram acusados de “delirare”. Se por acaso pediam algo, os pobres eram tolerados, desde que se expressassem com humildade (pedir, em latim, era “regare”). Se contudo, ousavam “reivindicar” (em latim: “arrogare”), passavam a ser vistos como criaturas “arrogantes”.

Como podemos acompanhar, “a letra estrala/entre vértebras./Trevas adentro”, conforme adverte Babilak Bah, em outro poema do seu fabuloso livro. Segundo alguns autores dedicados a investigações etimológicas, a palavra “ladrão”, por exemplo, deriva de “lateranus”, que era, em latim, o termo que designava os soldados que caminhavam ao lado do magistrado, zelando pela segurança da autoridade e aproveitando para roubar os circunstantes. Até o século 17, o termo “polícia” designava o conjunto da organização política e administrativa da sociedade. A partir do século XVIII, ele passou a ter a acepção mais restrita de um serviço de controle, de uma organização repressiva, destinada a preservar a ordem através da prevenção e da coerção. A noção de agente de segurança pública foi ficando enfraquecida. Em seu lugar, cresceu a impressão do policial como “carrasco fardado”. Por esse motivo, entende-se o fundamento histórico da crítica expressa por Sérgio Sampaio, na canção Polícia, bandido, cachorro e dentista (2006): “eu tenho medo de polícia, de bandido, de cachorro e de dentista/Porque polícia quando chega vai batendo em quem não tem nada com isso/Porque bandido quase sempre quando atira não acerta no que mira/Porque cachorro quando ataca pode às vezes atacar o seu amigo/Porque dentista policia minha boca como se fosse bandido/Porque bandido age sempre às escuras como se fosse cachorro/Porque cachorro não distingue o inimigo como se fosse polícia/Porque polícia bandideia minha boca como se fosse dentista”.

Não é, portanto, na brincadeira de pega-pega que a linguagem melhor se apresenta. Mas no brincar de esconde-esconde. O verbo se faz carne onde o corpo letrado dança.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.



EM PONTO DE BALA


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


No livro Literatura para quê? (2009), Antoine Compagnon salienta que como “exercício de reflexão e experiência de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo”. Inspirado no engajamento social da literatura, Compagnon ainda pontua que “a literatura é de oposição: ela tem o poder de contestar a submissão ao poder”. Credita à literatura o papel de agente emancipador da inteligência coletiva: “Fonte de inspiração, a literatura auxilia no desenvolvimento de nossa personalidade ou em nossa ‘educação sentimental’, como as leituras devotas o faziam para os nossos ancestrais. Ela permite acessar uma experiência sensível e um conhecimento moral que seria difícil, até mesmo impossível, de se adquirir nos tratados dos filósofos. Ela contribui, portanto, de maneira insubstituível, tanto para a ética prática como para a ética especulativa”.

Antonio Candido, por seu turno, em O direito à literatura (1988), considera: “a literatura é o sonho acordado das civilizações”. O crítico brasileiro destaca o papel fundamental da literatura no processo de formação educacional do sujeito: “A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante”.

Considerando conjuntamente os dizeres de Compagnon e Candido, podemos atestar que o livro Em ponto de bala (2013), escrito por Ricardo Evangelista, expressa, pelo menos, duas virtudes literárias: (I) “o poder de contestar a submissão ao poder” (Compagnon), e (II) “negação do estado de coisas predominante” (Candido). Em especial, destacaremos aqui como a temática ambiental é acolhida, com esmero e zelo crítico, por parte do poeta mineiro. “Estranhas Minas”, por exemplo, colabora para a construção e o fortalecimento da consciência coletiva sobre a necessidade de manutenção do equilíbrio do meio ambiente, quando a voz poética de Ricardo Evangelista denuncia a ordem econômica como responsável direita pelo achatamento brutal da dimensão ecológica que essencialmente nos rege: “Minas estranha/o que te dá nome/estraga vossas estranhas./Minas,/extirpam suas tripas/de ouro, calcário/diamante ferro brita./Estupram vossas matas/rios, lagos e grutas./Exportam pro estranja/China, Europa, Japão./Poucos imaginam, mas esse apito do trem/é um grito do minério que te roubam às escondidas./Oh! Minas Gerais! Que esvai em feios vagões./No caminho que tu andas não restará nem os Gerais”.

Cabe ressaltar que os valores ambientais estão espalhados por toda a nossa Carta Magna. Desse modo, vale mencionar, como valores ambientais constitucionais: a dignidade humana (consagrada princípio fundamental da República – art. 1º., III), a ordem social baseada no primado do trabalho e com objetivo de proporcionar o bem-estar e a justiça sociais (art. 193), a ordem econômica que, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por objeto assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170), a garantia a todos, pelo Estado, do pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional (art. 215, δ 1º.), a previsão de que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial que sejam portadores de referência dos grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216). Porém, para o discurso ecológico da integridade se concretizar, faz-se necessário transcender a questão dos recursos naturais e sua exploração, com objetivo de se chegar ao tema crucial das condições de vida, do bem-estar da população. Nesse sentido, alerta Ricardo Evangelista: “→ $erra da Moeda/Aprecie a vista/antes que seja tarde/antes que seja aço/antes que venda a prazo/e a preço de bagaço”. 

O poeta mineiro ressalta que o meio ambiente precisa deixar de ser conceituado como um espaço onde se encontram os recursos naturais para ser ressignificado como conjunto das condições de existência humana, que integra e influencia o relacionamento entre os homens, sua saúde e seu desenvolvimento. O que ainda notamos é a existência de uma enorme distância que nos separa da realização de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que permita igualmente a existência humana e a das demais espécies. Ricardo Evangelista prossegue, advertindo a opinião pública sobre o descaso ambiental, em outras duas oportunidades: (I) “Serra do Cipó/Levado o precioso diamante/herdaremos o pó”, e (II) “Serra do curral/levaram a serra/deixaram-me um cartão postal”. 

Estamos, infelizmente, longe do desenvolvimento solidário defendido pelo economista Paul Singer, segundo o qual forças produtivas respeitem a natureza e submetam os avanços científicos e tecnológicos ao crivo permanente dos valores ambientais, da inclusão social e da autogestão. Resistente e perseverante, a voz poética de Ricardo Evangelista, em “AM e FM Natureza”, consegue, mesmo diante da fragilizada consciência ecológica, sublinhar os encantos da nossa fauna e flora: “Eu curto am e fm natureza/feita de ondas de rio e mar/não aceita jangada de jabá/só toca/som de cachoeira/canto de sabiá/groove de grilo/grunhido de gralha/trinado de trinca ferro/algazarra de arara/peripécias de periquitos/patrocínio: criador do infinito”.      

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

DIFERENÇA NÃO É DISTÂNCIA


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A tolerância requer de nós aceitar as pessoas e consentir suas práticas mesmo quando as desaprovamos fortemente. Tolerância então envolve uma atitude intermediária entre a absoluta aceitação e a oposição imoderada. Trocando em miúdos: aceitar a existência de pontos de vista diferentes, conviver com eles, ainda que divergindo deles. Talvez o melhor exemplo dessa tradição seja a frase atribuída a Voltaire, que teria dito para Rousseau: “Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo”. Há que se considerar também o talento poético de Ricardo Evangelista, presente no texto Tolerância, um verdadeiro hino de respeito à diversidade:

“Sem-teto lavrador polícia/Patrão operário sindicalista/Fiscal camelô florista/Juiz torcedor jornalista/Pederasta puta machista/Negro índio turista/Diferença não é distância/Ambulante pedinte logista/Roqueiro punk sambista/Diretor arte e crítica/Estagiário doutor diarista/Faxineiro freguês frentista/Católico muçulmano israelita/É preciso haver tolerância/Protestante ateu hare-krhisna/Padre pastor ou budista/Caipira candango nortista/Engenheiro arquiteto ecologista/Paciente médico dentista/Nisei paraibano paulista/Com a outra ponta do ponto/Poeta editor contista/Americano cruzeirense galista/Vascaíno fluminense flamenguista/Coxa colorado gremista/Flanelinha pedestre motorista/Primitivo popular e erudita/No outro ponto de vista/Porteiro pintor artista/Intelectual boêmio esportista/Viajante cobrador maquinista/Grávida velho taxista/Cego professor autista/Vizinho vendedor visita”.

Palavras-chave do poema publicado no livro Mojepotara (2004): “Diferença não é distância/É preciso haver tolerância/Com a outra ponta do ponto/No outro ponto de vista”. Em relação ao convívio na diferença, devemos primar pelo respeito à opção ideológica de cada indivíduo e pela cautela na comunicação tenaz que se proclama. A palavra tolerância deriva do latim tolerare (sustentar, suportar). É um termo que define o grau de aceitação diante de um elemento contrário a uma regra moral, cultural, civil ou física. Na presente abordagem, propusemos a visão minuciosa em torno da relação terminológica na vida social. Tomás de Aquino concebe o termo tolerância como sendo o mesmo que a paciência. Não significa que se tolere a imoralidade ou desobediência, mas, sobretudo, exercer a capacidade de compreensão e argúcia na interpretação dos fenômenos que surgem ao longo do percurso quotidiano. 

No século 19, em luminoso livro, Sobre a liberdade, o filósofo inglês John Stuart Mill (1806-1873) forneceu um excelente argumento em defesa da tolerância. Argumento sustentado no princípio da ignorância universal dos humanos. Somos seres confinados em incontáveis circunstâncias particulares, a partir das quais pretendemos construir juízos de validade universal. Trata-se, mais do que de impostura, de um autoengano básico: tudo o que sabemos convive com zonas de sombra; cada acréscimo cognitivo abre o abismo de um campo sobre o qual muito ignoramos; quanto mais sabemos, mais ignoramos. Em suma, somos visceralmente incapazes de demonstrar a superioridade no campo dos valores últimos morais.

Relativismo? Nem tanto: o reconhecimento da ignorância deve conduzir à razoabilidade e à defesa da liberdade individual, duas cláusulas pétreas, portanto não relativas. Trata-se de bela fundamentação para a tolerância que, no entanto, deixa em aberta a questão: como tolerar os intolerantes?  Na nossa época e no futuro, penso que a tolerância deverá exercitar-se com menos ênfase sobre a boa vontade dos indivíduos e muito mais sobre a afirmação dos direitos substanciais protegidos pelas coletividades e por suas organizações públicas. A cidadania é uma forma de tolerância que não é baseada na vontade nobre de uma minoria iluminada, mas, sim, na capacidade de organização dos recursos e das instituições que existem na comunidade. A tolerância como ética do respeito da igualdade dos seres humanos se transforma em ética de acesso às oportunidades materiais e afetivas de que uma comunidade dispõe. 

A vida social seria, pois, idealmente habitada por sujeitos moralmente autônomos, movidos por um imperativo categórico: o de não desejar para outros o que não desejariam para si mesmos. A tolerância é “moralidade fina”, não sendo, portanto, “consenso sobreposto”. Caso contrário, ela amputaria o apetite de conhecimento, de compreensão real da alteridade, e dinamitaria a necessidade de debater. Em nome da tolerância, deve-se convocar a aceitação do “outro”, evitando-se a ignorância amável da opinião diferente, a suspensão da diferença como instância plural elementar. Para a vivência da verdadeira tolerância, é necessário o desacordo acompanhado da crítica à opinião tolerada. O elogio nos contenta; a crítica nos apura. Tolerar não apenas o que queremos ouvir, mas principalmente o que precisamos escutar. 

Em suma, a tolerância é o remédio anti-tolice. A tolice aprisiona o Homem, torna-o escravo de si mesmo, ao ponto de levá-lo a crer que a sua voz é a única coisa que merece ser ouvida enquanto o outro fala. Insensatos não escutam. Só falam. A capacidade de ouvir, empenhando-se para compreender o outro, não costuma ser um hábito cultivado pelo insensato. Salomão tinha razão quando proferiu: “o insensato não tem prazer no entendimento, senão em externar o seu interior” (Pv 18.2). 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.



QUESTÃO DE LIDERANÇA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Um bom líder tem confiança em si, motiva seus liderados, apresenta visão clara de onde quer chegar, possui ótima capacidade de comunicação, toma decisões, experimenta a calma em momentos de crise e visualiza o sistema como um todo. Faz-se necessário, portanto, destacar o papel do líder como modelo de autoridade respeitável. Nesse sentido, ele utiliza o poder para designar a capacidade de provocar a compreensão das diretrizes a serem acompanhadas; a legitimidade para designar a aceitação do exercício do poder, porque este corresponde aos valores dos colaboradores, a partir de um trabalho de equipe sintonizado; e a autoridade para designar a combinação dos dois, isto é, o poder que é considerado legítimo. 

A capacidade administradora de um líder, normalmente, é medida pela sua capacidade de gerenciar, com excelência, uma organização social. Segundo Margarida Kunsch, em Planejamento de Relações Públicas na Comunicação Integrada (1986), “para um perfeito desempenho das organizações, (...) é imprescindível que haja um centro aglutinador que comanda diretamente os setores, em função de um sistema integrante, onde as pessoas passam a interagir de uma forma mais grupal, perseguindo muito mais as metas supra-individuais”. 

Ao promover o “centro aglutinador”, o líder consegue desenvolver políticas de “consentimento” que vão nortear a ordem social na organização. Sua competência como exímio conselheiro se faz presente nas orientações provenientes de experiências gerenciais ambientadas em tempos de tempestade e bonança. Por isso, uma de suas habilidades especiais se refere também à “administração de controvérsia pública”. É decisivo, sob esse aspecto, o valor da competência comunicativa, baseada em uma perspectiva de troca, de reciprocidade e de comunhão de ideias cujo objetivo é qualificar as decisões e torná-las mais eficientes em sua dimensão coletiva. 

Muito mais do que um bom orador, cabe ao líder desempenho excelente na arte da “escutatória”, na feliz expressão de Rubem Alves. A liderança se torna sábia quando se valoriza o papel do conselho, principalmente em dinâmicas conturbadas, conforme salienta Rainer Maria Rilke, em Cartas ao jovem poeta (1929): “não acredite que quem procura consolá-lo vive sem esforço, em meio às palavras simples e tranquilas que às vezes lhe fazem bem. A vida dele tem muita labuta e muita tristeza e permanece muito atrás dessas coisas. Se fosse de outra maneira, nunca teria encontrado aquelas palavras”. Face ao exposto, o líder, imune aos mantras do otimismo escapista, pode desfrutar de lições preciosas como exímio aprendiz do fracasso. Agindo assim, o sujeito ativará os mecanismos dialéticos da existência, capazes de tornar as forças eficazes e as fraquezas irrelevantes. Encontra-se nesta perspectiva o ideal de liderança inteligente. Seu objetivo é viabilizar a formação de um conjunto de pessoas empenhadas em promover ações significativas para a excelência das organizações em matéria de responsabilidade social e desenvolvimento sustentável. 

Idalberto Chiavenato, em Introdução à teoria geral da administração (1993), destaca três estilos de liderança: a autocrática, a liberal e a democrática. O primeiro modelo é centralizador e tirânico, sendo as decisões tomadas de forma impostiva e agressiva pelo líder, o que prejudica a manifestação espontânea da equipe e, consequentemente, o relacionamento interpessoal. O segundo tipo é marcado pela delegação total de poderes concedidos pelo líder ao grupo, o que dificulta o funcionamento adequado dos mecanismos de direção, imperando o individualismo voraz e a pouca respeitabilidade em torno do líder.  O terceiro perfil, por seu turno, se caracteriza pela condução motivadora do líder, o que desencadeia um processo de participação democrática das pessoas. Nesse regime, comunicações espontâneas, francas e cordiais favorecem uma grande integração grupal dentro de um clima de satisfação. 

Cabe para o bem da realidade brasileira a manifestação de formas alternativas de direção: a liderança rebelde e a liderança sensível. O primeiro perfil, conforme ilustra Paulo Freire, em Educação e mudança (1981), se apresenta no seguinte contexto: “quanto mais dirigidos são os homens pela propaganda ideológica, política ou comercial, tanto mais são objetos e massas. Quanto mais o homem é rebelde e indócil, tanto mais é criador, apesar de em nossa sociedade se dizer que o rebelde é um ser inadaptado”. Exemplo de liderança rebelde aparece no samba Zé do Caroço (1985), de Leci Brandão: “E na hora que a televisão brasileira/Distrai toda gente com a sua novela/É que o Zé põe a boca no mundo/Ele faz um discurso profundo/Ele quer ver o bem da favela/Está nascendo um novo líder/No morro do Pau da Bandeira”. Por sua vez, Jorge Ben Jor, na canção O rei chegou, viva o rei (1975), propõe diretrizes para um líder sensível: “Que ele governe com sabedoria/Julgue com justiça e simpatia (...) Que ele seja o portador da paz/E da prosperidade, um homem/de boa vontade”. “Use o conhecimento com/perseverança e consciência/Pratique, transmute a vontade/com lealdade/e sinceridade”, recomenda também o cantor, em Luz polarizada (1975). Rebelde e sensível, um líder de verdade atua, antes de tudo, como um educador que incentiva o ímpeto criador do homem e sua consciência crítica.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

TEMPEROS DO TEMPO


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Carla Andrade​, talentosa poeta mineira, é autora do livro Artesanato de perguntas (2013). Um poema, em especial, motivou nossa reflexão sobre os temperos do tempo. Eis os versos reunidos sob o título “Arquitetura do deserto”: “Tempo,/flanela das remelas/dos dias./Tempo, escavadeira de/esperanças./Tempo, bailarina no/deserto./Leve embora suas pernas oleosas/para onde não haja as mãos da/saudade”. A consciência da finitude da vida é certamente a principal razão da angústia que afeta o Homem, na sua condição de ser pensante e capaz de fazer projeções sobre o futuro. No melhor dos casos, o sofrimento pode ser mitigado pela atitude que o Homem tenha diante do mundo, atitude que deve ser inspirada no Amor, no sentido mais amplo do termo: amor aos semelhantes, amor à natureza e, por certo, ao conhecimento. A finitude humana faz do tempo um fator decisivo para percepção que o Homem tem de sua situação no mundo. Enquanto se tem “reverência pela vida”, é possível assistir à passagem do tempo sem maior sofrimento. 

O saudoso ator Antônio Abujamra (1932-2015), com ironia corrosiva, costumava dizer que “a vida é uma causa perdida”. A respeito, doçura se encontra nas palavras do mestre Rubem Alves (1933-2014), em O retorno e terno (1992): “Mas, o que é a vida? Vida são olhos que saúdam as madrugadas, acariciam as noites, acolhem sorrisos; ouvidos que recebem o barulho dos ventos, ouvem gemidos de dor, escutam palavras de amor; bocas que experimentam o deleite dos frutos e dos beijos e que recitam poemas; narizes que sentem o cheiro da maresia, da comida que se cozinha no fogão e dos corpos suados. Pernas que andam pelos bosques e levam mensagens a lugares distantes; braços que plantam jardins, e que se estendem para os abraços e para as lutas. A vida é um poema enorme, uma explosão de gestos e de sentidos espalhados pelo espaço. Mas como tudo o que é humano, a vida também cansaço que anseia pelo sono”. É preciso reaprender a sabedoria sagrada: se há um tempo de nascer, há também um tempo de morrer. Nestas modalidades de tempo se aplicam as noções de ordem (sucessão, simultaneidade), duração e direção, que recobrem relações variáveis entre acontecimentos, ora com apoio nos estados do mundo físico, ora nos estados vividos, ora na enunciação linguística. 

Um dos textos mais conhecidos a respeito do tempo é o de Santo Agostinho, em Confissões, escrito por volta do ano 386 da era cristã. Ao interrogar-se a respeito da existência de tempos passados, presentes e futuros, ele conclui que “é impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das coisas presentes e presente das coisas futuras”. O passado não existiria porque haveria se transformado de ser em não-ser. O futuro, que ainda não é, ao vir a ser, rapidamente passaria a não ser mais, por ter passado. Se passado e futuro não existem de fato, como medi-los? Não se mede o que não existe, pensa Santo Agostinho. O que se sabe sobre o antes e o depois é uma impressão que a sucessão de acontecimentos deixa gravada na alma. “Porém a sua imagem [de alguma coisa do passado], quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória”. Assim, Santo Agostinho propõe a existência de um tempo psicológico, baseado na duração interior de imagens que se sucedem na alma. Tendo o tempo um elemento transitório (de sucessão) e um permanente (de duração), a consciência os apreende e elabora como localização (espaço) e anterioridade.

A poética de Carla Andrade sugere que o tempo se configura como dança (“bailarina no deserto”) capaz de embalar e abalar a condição humana, segundo o ritmo ditado pelo despertar (“flanela das remelas dos dias”) e pelo cessar (“escavadeira de esperanças”) em torno das experiências referentes à dinâmica do viver. A invenção do tempo engendra algumas questões que perpassam o bojo da existência humana e sua finitude, uma vez que existir, para a realidade humana, é temporalizar-se. Ao inscrever-se enquanto ser humano, enquanto existência, o indivíduo é registrado em uma categoria temporal, na qual a sua condição de ser finito é, por assim dizer, decretada por essa entidade infinita chamada tempo. Muitas vezes concebido como algo exterior ao homem, de existência própria e permanente, o tempo é extensão e criação da realidade humana. Tal criação, aliás, surge para lidar com a contradição ontológica do homem, que é a tensão entre a sua permanência e a transitoriedade no mundo, seu poder e sua impotência em face dessa condição de finitude a que está submetido. A invenção do tempo nasce não somente para ordenar as ações humanas, mas também como tentativa de negar a morte, de superar Chronos, representado por um ancião que trazia consigo uma foice que ceifava vidas.

Interessa-nos de perto compreender o desejo do eu-poético diante do tempo: “Leve embora suas pernas oleosas/para onde não haja as mãos da/saudade”. A contemplação poética da finitude humana feita por Carla Andrade nos faz pensar sobre a linha tênue que separa saudade de nostalgia. A nostalgia não é a saturação memorial e memorável do passado, como na tradição da saudade, mas antes a experiência imprescritível da perda. Nostalgia é saber o que se perdeu e, sobretudo, que se perdeu. Nostalgia é saudade do que foi vivido. Parece que a voz poética, destacada por Carla Andrade, quer escapar da melancolia, dessa saudade do que não foi vivido ou, para ficarmos com Victor Hugo, dessa "felicidade de estar triste".  


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.



TEMPOS EXTREMOS

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


O capitalismo tradicional, produtor de bens, passou a ficar menos interessante do que o capitalismo de vento, de nuvens, de mentiras. O capitalismo virtual, financeiro, que não produz nada e vive da velocidade da internet, é muito mais lucrativo. Muitas empresas foram perdendo a vergonha, a ética, o “desconfiômetro”, e começaram a maquiar os balanços, a embutir prejuízos. Descobriram que no mundo virtual, sem a âncora dos produtos, é muito mais fácil mudar de zeros da esquerda para a direita e confundir “dever” com “haver”. Cada vez mais a sociedade vira um detalhe. E a vida passa a ser comandada por grandes corporações, para as quais a grande utopia seria uma sociedade sem política e sem direito, apenas com economia e finanças. Até sem povo. Ou seja, não somos mais necessários – ou como dizem em Wall Street: “Never give a sucker an even break”. Tradução: nunca dê colher de chá aos babacas – que somos nós.

O escritor Fernando Sabino, muito anos atrás, tinha um pesadelo recorrente. Sonhava com uma manchete de jornal apavorante, em que se lia em letras garrafais: “O inevitável aconteceu!”. Ele acordava suando frio, porque a suprema tragédia do mundo havia, enfim, acontecido. Pois estamos começando a viver um pesadelo histórico, e não é o inevitável. Está surgindo no mundo um personagem terrível, o insolúvel: “Como é seu nome, senhor?”. “Insolúvel. Insolúvel de Oliveira, muito prazer”. Nada mais tem solução, enquanto a democracia for considerada apenas um meio para se chegar a um fim econômico. 

Quando a máquina da boçalidade se desencadeia, ninguém segura mais a produção de erros. Eduardo Galeano já nos chamava a atenção para a existência de uma “ditadura financeira internacional”, cuja ordem de funcionamento se alimenta vorazmente da “obrigação de fazer vista grossa para os manobrismos do mundo dos negócios”. Nem a beleza, nem a justiça ficam livres da contaminação nefasta. Assim, o saudoso jornalista uruguaio, em O teatro do bem e do mal (2002), ilustra os tempos sombrios que se avolumam tragicamente: “As potências donas do planeta raciocinam bombardeando. Elas são o poder, um poder geneticamente modificado, um gigantesco Frankenpower que humilha a natureza: exerce a liberdade de transformar o ar em sujeira e o direito de deixar a humanidade sem casa; chama erros aos seus horrores, esmaga quem se antepõe em seu caminho, é surdo aos alarmes e quebra o que toca”.

O processo de globalização econômica vem condicionando as relações sociais e o comportamento humano a sustentar irresponsavelmente um regime de patrimonialismo secular. Este processo resultou, entre outras coisas, no desenvolvimento da tecnologia, na maximização do lucro e no aumento da carga de trabalho, na “presentificação” e aceleração do tempo em função do encurtamento das fronteiras, na desterritorialização, na sobreposição das culturas mais influentes sobre outras e na indefinição da identidade individual como problemática existencial. A respeito, basta acompanhar o perfil pessoal que está sendo incentivado pela necessidade capitalista de maximização do lucro. É o caso ilustrativo da protagonista do romance Tempos Extremos (2014), desenvolvido pela escritora e jornalista Míriam Leitão: “Da vida de economista do setor financeiro, Sônia havia ficado com esse talento. Sabia vender e comprar, entrar e sair, falar e calar. Tudo na hora certa. Só sua vida era incerta, escondida, como um segredo. O que se conhecia era um amor longo e infrutífero, seguido de amores breves e inúteis. Era melhor na alocação de ativos e na distribuição de recursos em carteiras de investimento”. 

Em Ideologia Alemã (1845-1846), Marx e Engels destacam a relação entre trabalho e modo de vida: “o que os indivíduos são depende das condições materiais de sua produção”. O que somos, portanto, está ligado ao que produzimos e como produzimos. Produz-se cada vez mais tecnologia e produtos sofisticados que não são destinados aqueles que os fabricam, o grande contingente de mão-de-obra, e sim a uma restrita porção do mercado de consumo. Vivemos então em um “sonho de consumo” com “pesadelo de carência”, pois grande número de pessoas permanece ligado ao processo de produção, mas não tem pleno acesso a este mercado. Tudo o que acontece na política global é a repetição cansativa de um mesmo erro de raiz: Estado mínimo, Mercado máximo e Sociedade sem poder.

No campo das relações interpessoais, convivemos dentro de uma sociedade altamente narcísica, na qual a colaboração cedeu lugar à competitividade e ao individualismo. O “outro” é concebido como rival, ou uma ameaça. Jean-Paul Sartre, grande filósofo existencialista, manifestou uma frase que ilustra muito bem esta estrutura narcísica social: “o inferno são os outros”. Uma leitura psicológica nos permite afirmar que a projeção deste mal-estar reflete uma condição de “inferno interior”, produzido em grande parte pelos próprios desafios da convivência em sociedade. Ora, sabemos que não podemos sobreviver sem o convívio social, sem afeto, pois o processo de troca é fundamental na construção do ser humano. A essência desta problemática não está no fato de termos que conviver em sociedade, mas na maneira como se estruturam nossas relações.

Martin Heidegger, em O Ser e o Tempo (1927), compreende os tempos contemporâneos como “uma época que se caracteriza pelo ‘esquecimento do ser’, por uma vida que se vive mergulhada nas coisas do mundo, assumidas como se fossem a realidade única e sem nem mesmo suspeitar uma realidade originária que seja seu princípio. Essa perda do sentido do ser e do próprio problema que suscita constitui a decadência espiritual de nossa terra, uma decadência extrema porque recusa até reconhecer-se como tal”. A sociedade de consumo, de ultravalorização dos bens materiais e do capital, proporcionou o abandono do ser em si, do sujeito enquanto experiência rica de interioridade.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.



sexta-feira, 19 de junho de 2015

NEGRISMO E ALTERIDADE


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Para Emmanuel Levinas, na obra Entre nós: ensaio sobre a alteridade (1991), a filosofia ocidental foi sempre uma tentativa de reduzir o Outro ao Mesmo. É preciso entender que esta redução não esgota o sentido daquilo que escapa à qualquer assimilação e à qualquer neutralização da diferença. Em Levinas, não há síntese da diferença pela identidade. É justamente essa desmedida do Outro (Alteridade) em relação ao Eu que possibilita a Levinas questionar a autossuficiência e violência do ser e, consequentemente, fundar um sentido ético, enquanto tensão permanente entre o Mesmo e o Outro, sem redução de um ao outro. Referir-se ao Outro como primeiro mandamento ético implica de fato uma descentralização do Eu como condição do sentido ético.

Examinando os mecanismos de expressão da alteridade, considerando o amplo leque de representações voltados a compreender a comunidade afro-brasileira, Luiz Henrique Silva de Oliveira, professor do CEFET-MG e doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG, parte do corpus literário para discorrer sobre o negrismo, condição externa à negritude e, portanto, dotada de uma rede de sentidos que vai destacar o negro apenas como horizonte temático. O autor do alentado livro Negrismo: percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984), assim, posiciona o centro da discussão: “Na linhagem negrista, a visão de mundo ainda se prende à cópia de modelos europeus e à assimilação cultural, entendidas como vias de expressão. Desta maneira, o negrismo ainda reflete o discurso do colonizador em seus matizes passados e presentes, configurando-se como discurso do mesmo, embora até promova ressignificações sobre a experiência negra em diversos tempos e espaços”.     

Tecendo algumas considerações teóricas envolvendo etnicidade e identidade, Claude Dubar, no livro A Socialização (1991), destaca, na produção das identidades, o processo biográfico (identidade do eu, o self) e o processo relacional, sistêmico, comunicacional (identidade para o outro). A atribuição de identidade não pode ser dissociada dos sistemas de ação em que o indivíduo está implicado e deriva das “relações de força” entre todos os atores envolvidos e da legitimidade das categorias utilizadas. A política identitária, portanto, se coloca em um ambiente de tensões conflitivas constantes no âmbito da afirmação do negro, uma vez que a justaposição de vozes hegemônicas a respeito costuma privilegiar o viés folclórico e exótico, considerando a realidade do racismo cordial brasileiro. Luiz Henrique, enfático em suas ponderações, profere: “o discurso negrista, pois, não rompe com os contratos de fala e escrita ditados pelo discurso branco, tampouco consegue expressar decisiva reversão de valores”.

Mesmo havendo “um interesse meramente paternalista pelas alteridades”, relativiza o pesquisador, o elemento africano convocado pelo discurso negrista contribuiu para a ressignificação do nativismo e contemplou um plêiade significativa de temas substantivos: “abordou a abolição, centrando-se em muitos momentos dela; discutiu a falta de projetos para a integração do negro na sociedade; trouxe a chave risível, a fim de inserir, por meio dela, a figura do afrodescendente; questionou a violência incidente contra os de pele escura; resgatou personagens históricas afro-brasileiras; recontou capítulos pouco conhecidos do nosso passado; discutiu imagens de negros recorrentes ao longo de nossa literatura; e, por fim, tratou da miscigenação e do branqueamento como saídas para os problemas étnicos do país”. 

Luiz Henrique propõe compreender o negrismo como “etapa de transição entre a literatura etnocêntrica e a literatura afro-brasileira”. Convém observar que a identidade étnica implica sentimentos de pertença e autoestima, o que desde logo remete para uma estreita ligação com a socialização familiar e grupal. Na configuração das identidades étnicas há que ter em conta os aspectos dinâmicos e situacionais; conjuga-se o passado com o presente, as heranças sociais e culturais e a adaptação às circunstâncias históricas, bem como os fatores primordiais e os instrumentais. As fronteiras étnicas são fluidas e dinâmicas, sendo atualizadas e reatualizadas em situação de interação quer entre os membros do grupo, quer entre não membros. As diferenças e oposições entre o “Nós” e os “Outros” evidencia a saliência das fronteiras entre os “insiders” e os “outsiders”.

Contemplando Macunaíma (Mário de Andrade), Xica da Silva (João Felício dos Santos), A marcha (Afonso Schmidt), Tambores de São Luiz (Josué Montello), A casa da água (Antônio Olinto) e Viva o povo brasileiro (João Ubaldo Ribeiro), Luiz Henrique observa em comum nestes romances a suavização da força discursiva da literatura afro-brasileira, por meio do “tempero negrista”. Mesmo que a questão étnica, nestes autores, não tenha sido problematizada a partir do ponto de vista inteiro, convém assinalar, por exemplo a relevância da personagem de Viva o povo brasileiro, Maria da Fé, mulher negra e detentora de um discurso político, eivado de consciência moral e ideais de liberdade e igualdade entre as pessoas. 

Se a boa-consciência brasileira não se dispor a trabalhar, sem discriminações, para o desenvolvimento coletivo da vida em plenitude, razão de sobra continuará tendo o discurso de Maria da Fé, ao ser julgada por um tenente do exército como bandida: “Como queria o senhor que um povo conservado na mais profunda ignorância pudesse compreender que não é a República a responsável por tudo de mau que lhe vem acontecendo? Se tudo piora, se a miséria aumenta, se a opressão se faz sempre mais insuportável, se a fome e a falta de terras são o destino de cada dia, enquanto os senhores salvam a Nação na Capital, escrevendo leis para favorecer a quem sempre foi favorecido? Se nada deve o povo à Monarquia, menos ainda deve à República. Que nos dá República? Manda o seu exército para nos matar. Se não nos rebelássemos, que nos mandaria? Mandaria a fome para nos matar”.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.


LIVRO DE VIDRO


Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Considerando a matriz grega como um dos fundamentos importantes no desenvolvimento da civilização ocidental, as esculturas nasceram para venerar os deuses, os únicos, até então, a merecerem tamanho destaque. Convém salientar que os deuses gregos eram concebidos à imagem e semelhança dos homens, sendo movidos, portanto, a paixões e pensamentos que estavam presentes em reles mortais. A forma humana era alimentada pelo afã divino de ganhar corpo e simultaneamente buscar constantemente a perfeição. Estaria aí o fascínio encantador das esculturas: projetar a arte como engenho mental e sensível projetado na composição criativa do ritmo, do equilíbrio e da harmonia ideal. A plasticidade versátil, ao longo da História, vem sendo gravada em suportes diversificados (pedra, madeira, argila, vidro), representando, com primor, o amor artístico pela beleza, considerada motor estético para projeções especulativas, motivadas pelo jogo movimentado de perguntas e respostas, ancoradas por uma dimensão totalmente plurissignificativa. 

Dessacralizar a arte se fez possível graças ao empenho do escultor em percebê-la também ao “rés-do-chão”, experimentando, assim, uma perspectiva ousada que suplementa a dimensão sublime, já muito consagrada. O escultor, como sujeito-ponte, misturou as estações plenas e planas da existência, alcançando um nível de horizontalidade ímpar, o que proporcionou artísticas criações, sendo elas formadas, mas também deformadas, segundo a tentativa louvável de ilustrar matrizes animadas e inanimadas. Assim, ganham brilhantismo escultural as emanações imaginárias e realistas que brotam do humanismo autoral despojado.

Cabe ao artista conduzir harmoniosamente o arranjo escultural, sempre atento à escuta dos significados múltiplos que povoam o processo criativo. Existem também os momentos de temperar a obra com profundas inquietações, pertinentes ao manejar lúcido e lúdico, que são embalados e abalados pelo frescor das ideias e pelo fogo das convicções. Não se deve temer a locomotiva sensível que leva o escultor a mundos desconhecidos. O retorno dessa viagem se faz arte, arte esculpida segundo o gosto do previsto e o sabor do acaso. O escultor também se dedica a misturar realismo com a beleza propriamente dita. Em decorrência disso, as obras esculpidas possuem múltiplos vetores de percepção, permitindo leituras diversificadas. Esculpir significa manipular a realidade, orientando-a para sustentar linhas e curvas artísticas capazes de ressaltar o fruto processual do labor criativo em composição. 

Grande escultor italiano, Michelangelo (1475-1564), questionado sobre como fazer uma escultura, habilidosamente respondeu: “simplesmente retiro do bloco de mármore tudo que não é necessário”. Esculpir, portanto, comunica que o suficiente é o bastante. Belo adágio da sabedoria minimalista, por sinal. Poeticamente, Regina Mello, no fabuloso livro Cinquenta (2010), apresenta um conjunto de versos que podem muito bem simbolizar o objetivo escultural: “não se define o sol claro/que clareia e colore o mundo/não quero o sol/quero um raio seu”. Ou seja, esculpir é, diante do sol, encontrar satisfação com um raio dele. 

Nascida em Itaúna-MG, a poeta especialmente mencionada é Bacharel em Escultura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, além de artista plástica pela Escola Guignard. Gestora cultural, curadora e artista-pesquisadora, Regina Mello também se destaca pela realização de inúmeras exposições e eventos nacionais e internacionais, além de conduzir o Museu Nacional da Poesia (MUNAP), na condição de diretora-fundadora. Como se percebe, a multiartista possui uma ampla trajetória de formação que também abraça a escultura. Dentre seus trabalhos nesta área, está a notável obra intitulada Livro de Vidro (2005), cujo repertório comporta a relação entre Literatura e outros Sistemas Semióticos.

O livro-escultura é composto por placas de vidro com poesias da autora, esculpidas à base de um talento caligráfico-semântico primoroso. Um tom esverdeado domina a tela, abrindo um fantástico portal conectivo entre a natureza e a cultura, no sentido de promover o florescimento poético por todos os lados. O trabalho rememora parodicamente as tábuas de pedra utilizadas por Deus na escritura dos Dez Mandamentos, sendo estes entregues ao profeta Moisés para melhor difundi-los. Acontece que os poemas esculpidos de Regina Mello se apresentam como “Obra Aberta”, conforme designação de Umberto Eco, pois oferecem ao público espectador uma rede de sentidos que movimentam a reestruturação constante do pensamento e da sensibilidade. 

Nesse sentido, diálogo frutífero há entre o Livro de Vidro (2005), de Regina Mello, e O jogo das contas de vidro (1943), produzido pelo escritor alemão Hermann Hesse, considerando, especialmente, esta emblemática passagem: “tudo se afigura não só como se tivéssemos duas maneiras diferentes de exprimir-nos e falar, cada uma delas só podendo ser traduzida na outra na forma de insinuações, porém, mais ainda, como se fôssemos dois seres absoluta e radicalmente distintos, que jamais poderão chegar a se entender mutuamente. Parece-me extremamente duvidoso apurar quem de nós dois seria propriamente o ser humano, autêntico e de pleno direito, tu ou eu, se é que um dos dois o é realmente”. 

Alimentando-se desse tipo de peleja especulativa transbordante, o Livro de Vidro, polissêmico e polifônico, coloca-se, ao mesmo tempo, leve e pesado, literal e metaforicamente falando. A obra de Regina Mello nos ajuda a problematizar a temporalidade histórica, cuja preferência hegemônica se molda conforme o enquadramento coercitivo do mundo-vitrine, ignorando o fato de que ele é composto por pessoas-vidraças. Face ao exposto, os poemas em vidro, esculpidos por Regina Mello, se revelam como grande chance para o público ficar “vidrado” no que realmente vale a pena conferir de perto. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.


Livro de Vidro (2005), de Regina Mello​:



quinta-feira, 18 de junho de 2015

NÃO OLHE PARA TRÁS COM RANCOR

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Virtude teve a banda britânica Oasis, ao incentivar multidões, pelo mundo afora, a cantar Don’t look back in anger (1995). Em uma tradução livre, o título da canção, em português, pode significar: “não olhe para trás com rancor” ou “não olhe para o passado com rancor”. Diante desse oportuno conselho entoado musicalmente, fica a pergunta: visando promover uma agenda pacífica para o contemporâneo, como o indivíduo pode colocar-se para além do ressentimento? 

O termo “ressentimento” designa um fenômeno do gênero do rancor, ódio, cólera e sede de vingança, que surge no homem em função de uma ofensa ou agressão, diante da qual ele não pôde reagir de forma imediata e nem tampouco assimilar os sentimentos mórbidos decorrentes daquela agressão. O termo nomeia, assim, um fenômeno do campo da psicologia ocasionado, porém, por uma fraqueza fisiológica que se traduz na inibição da descarga dos afetos para fora e também na incapacidade de assimilação, de digestão pelo organismo daqueles afetos que são lançados para o interior do homem.

Luiz Felipe Pondé, em A era do ressentimento (2014), ressalta a relação direta entre rancor e narcisismo. O cúmulo da vaidade humana é compreendida pelo filósofo como manifestação de uma vida interior retraída e conduzida à reboque da pequena ética movida pelas aparências sociais convenientes: “O narcisismo não é a marca de alguém que se ama muito, mas a marca de alguém que vive lambendo suas feridas porque é um miserável afetivo. Mas por viver se lambendo, pensamos ser ele alguém que se ama muito, sendo que, no entanto, é justamente o contrário. Incapaz de ter vínculos, o narcisista vive a serviço de si mesmo. [...] Não será a coragem, a disciplina, o medo, o desespero existencial que farão a história das mentalidades de nossa era, mas o sentimento de que merecemos mais do que temos”. A carência afetiva elevada ao exibicionismo do ego em progressão geométrica apresenta como pano de fundo um grande vazio existencial que só pode ser problematizado com avaliações autênticas e posturas existenciais profundas. Caso o contrário, o ressentimento toma conta ferozmente de nossa subjetividade tiranicamente poderosa. 

Com a era do ressentimento sendo promovida imprudentemente, como se tornar virtuoso e produzir os frutos delicados da convivência em uma sociedade em que imperam outros ideais e táticas para ganhar mais dinheiro, subir na escala social, promover-se, ter mais bens e mais poder sobre os outros? O que significa ser virtuoso em nossa sociedade pós-moderna? Associar os cidadãos a uma melhor qualidade de decisões supõe dizer a complexidade das coisas para apelar à lucidez das pessoas. Não olhar para trás com rancor representa acreditar incondicionalmente no poder mediador da comunicação como resolução de conflitos que coloquem verdadeiramente em xeque nossos orgulhos e caprichos individualistas. A raiz profunda do ressentimento se encontra, como bem observa Pondé, no “pânico diante da indiferença no universo vazio”, desrazão esta que movimenta, por sua vez, “a tendência de nos tornar superficiais”. Convocar o sentido relacional dinâmico e sincero se faz fundamental, pois tal prática reveste-se de gentil compreensão da estranheza, preservando e estimulando, assim, os registros de autenticidade necessária para a manutenção saudável dos elos sociais. 

Marcia Tiburi, em Filosofia prática (2014), colabora para o debate em questão, alertando que o ressentimento pode também ser lido como “um ódio barato vigente em nossa cultura”. Ações rancorosas levam sujeitos arrogantes, com demasiado poder, a fundamentar a constituição nefasta de um cenário humilhante, marcada pela expansão perigosa da impotência em termos generalizados. Adverte a filósofa, com pesar e senso crítico apurado:

“O efeito mais claro da humilhação é a morte da subjetividade enquanto morte da expressão que é, em outros termos, morte da alma, do corpo-alma, e morte da política enquanto atividade desse corpo-alma. O menosprezo, a desvalorização de alguém estão no cerne da humilhação como característica da estrutura social, como estratégia de manutenção do poder. A humilhação é a destruição da subjetividade, também pela desmontagem dos processos de ‘intersubjetividade’ enquanto laço que uniria pessoas na forma da produtividade social do diálogo e de outras ações entre elas”.

Outro prejuízo comportamental proporcionado pelo clima de ressentimento refere-se à propagação de traumas individuais e coletivos que suspendem a naturalidade das nossas emoções, represando violentamente toda a sua carga de expansividade racional e sensível. No campo da física, a palavra “trauma” se refere à pressão que os materiais sofrem. Psicologicamente, o referido termo foi absorvido clinicamente para identificar o sofrimento de quem passou por situações muito fortes que deixaram marcas emocionais com sequelas por toda uma vida. Por trás dos nossos rancores, ressentimentos e traumas, encontra-se também presente a nossa inabilidade em lidar com a morte, a dor e o fracasso.

Diante de tamanha fragilidade, como podemos não olhar para trás com rancor, conforme indica a banda Oasis? Salve, Jorge! Em Luz polarizada (1975), Ben Jor orienta: “Domine a imagem/Use força inferior superior/Use o conhecimento com perseverança e consciência/Pratique, transmute a vontade com lealdade e sinceridade/Seja atento e assíduo porque/a qualquer hora, a qualquer momento/pode estar nascendo o amor”.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

** Agradeço a Edilane Gonçalves Godinho​, pela indicação da música Don’t look back in anger, gravada pela banda Oasis.