domingo, 28 de junho de 2015

ESTÉTICA DA OUSADIA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


As águas da inteligência e da sensibilidade se encontram no rio sem fim da leveza humana chamada Adriana Calcanhoto. Cantora do mais fino talento, ela, em Senhas (1992), compôs o mel do melhor em matéria de estética da ousadia: “Eu não gosto do bom gosto/Eu não gosto de bom senso/Eu não gosto dos bons modos/Não gosto/Eu aguento até rigores/Eu não tenho pena dos traídos/Eu hospedo infratores e banidos/Eu respeito conveniências/Eu não ligo pra conchavos/Eu suporto aparências/Eu não gosto de maus tratos/Mas o que eu não gosto é do bom gosto/Eu não gosto de bom senso/Eu não gosto dos bons modos/Não gosto/Eu aguento até os modernos/E seus segundos cadernos/Eu aguento até os caretas/E suas verdades perfeitas/O que eu não gosto é do bom gosto/ Eu não gosto de bom senso/Eu não gosto dos bons modos/Não gosto/Eu aguento até os estetas/Eu não julgo competência/Eu não ligo pra etiqueta/Eu aplaudo rebeldias/Eu respeito tiranias/E compreendo piedades/Eu não condeno mentiras/Eu não condeno vaidades/O que eu não gosto é do bom gosto/Eu não gosto de bom senso/Eu não gosto dos bons modos/Não gosto/Eu gosto dos quem têm fome/Dos que morrem de vontade/Dos que secam de desejo/Dos que ardem”. 

A voz poética de Calcanhoto parece dizer que a estética da ousadia representa uma desconstrução criativa das regras costumeiras. A artista brasileira expõe, com argúcia, que o belo agrada sem conceitos, sendo que a imaginação e a intuição é que desempenham papel importante na criação artística da vida. O juízo estético é um princípio intermediário entre a ordem intelectiva e a ordem racional, com suas leis próprias. O juízo teórico (julgamento racional) se preocupa com a verdade. O julgamento prático (o da moral), com a relação de meios e fins, portanto a utilidade. O julgamento estético, entretanto, é contemplativo: não é um julgamento teórico, nem prático, portanto desprovido de conceitos e não-teleológico. Se para Kant, o juízo é um meio termo entre o entendimento e a razão, Calcanhoto discute a tirania do gosto, quando este migra da atração sensível para o interesse moral habitual. Pelas portas abertas da percepção, a cantora promove a estética como a superação do mundo fechado do conceito. 

Coube, liricamente, a Adriana Calcanhoto defrontar-se com uma noção clássica de inteligência como amiga da regularidade, da estabilidade. Se inteligência tem por ponto de partida o estático, a intuição parte do movimento. Senhas representa a poética do ser que acompanha o real nas suas sinuosidades, desconfiando, assim, dos “puros conceitos” que costumam desligar a estética da ética, favorecendo a etiqueta trivial. A artista, com irreverência crítica, combate o simbolismo chuvoso a que se reduz geralmente a linguagem estética, que vive do inerte e do espacial, deixando, à margem, o fluxo da vida, a variação, a surpresa, a criação. O bom gosto, o bom senso e os bons modos, alerta Calcanhoto, contribuíram muito mais para construir muros do que pontes entre as pessoas.

Em Senhas, Adriana Calcanhoto valoriza o processo interno de maturação do sujeito sensível à procura do estético libertário. O estético aprisionado condena as borboletas ao casulo eterno. A cantora brasileira propõe compreender a vida como um jogo criativo, uma tarefa artística que se concretiza na peleja diária pela aquisição humana de virtudes, sem apelar para a rigidez de uma obediência infracriadora de normas internas e externas, cujas motivações nem sempre são as mais racionais e pode, até mesmo se apoiar no calculismo, na covardia ou mesmo em interesses inconfessáveis. A respeito, Friedrich Schiller, em Cartas sobre a educação estética da humanidade (1795), já revelava preocupação com o falseamento grotesco que inibe a autenticidade humana: “toda a imoralidade real parece, portanto, brotar da colisão do bem com o agradável ou, o que conduz ao mesmo, dos apetites com a razão, e ter como fonte por um lado à potência dos impulsos sensíveis, por outro lado à fraqueza da faculdade da vontade moral”.

Salienta a artista brasileira, pelo caminho da contestação inventiva, que a “imoralidade real” está diretamente vinculada à monotonia existencial, à redundância afetiva e à indigência intelectual. Adriana Calcanhoto percebeu muito bem que a condição humana perde substância e energia vital toda vez que se sente plenamente confortável com a maneira como as coisas já estão, rendendo-se à sedução do repouso e imobilizando-se na acomodação. Em oposição à cultura do conforto apático, a cantora assume sua admiração pelos “quem têm fome/dos que morrem de verdade/dos que secam de desejo/dos que ardem”. 

O bom gosto, o bom senso e os bons modos adoram um banquete, mas detestam lavar a louça. Quem lava a louça do sistema é a arte. Por isso, ela sofre com o policiamento sistemático dos “caretas” e de suas “verdades perfeitas”. Por que tamanho desprezo tirânico dirigido à estética da ousadia artística? Porque ela aplaude “rebeldias”, acentua, com primor, Calcanhoto. Porque a arte é “uma divagação sem relógio de ponto”, como diria a poeta Cecília Meireles, na crônica “Os artistas” (A Manhã, de 13/06/1945). Neste texto, a autora de Romanceiro da Inconfidência ressalta, ainda, que a estética da ousadia é temida porque se opõe ao imediatismo galopante da produtividade automática, materialista e tacanha: “A atividade artística é mais detestada porque praticamente não conduz a nada. Não se pode esperar que um quadro produza incontinenti a baixa do preço do feijão, nem que um poema cure a asma. À vista disso, morram os artistas!, porque o gênero humano precisa de coisas urgentes e satisfações elementares como essas duas. É quase preciso defender os artistas como se fossem assassinos ou ladrões, a fim de permitir a sua presença entre esses baluartes sociais que se veem ameaçados com a sua inútil existência”.  


* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

Nenhum comentário:

Postar um comentário