sábado, 13 de junho de 2015

DIVERSIDADE E MESTIÇAGEM

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Gostoso samba: Demanda (2014), de Cacá Pereira. A música em destaque se apresenta como abre-alas do realismo esperançoso: “quem sorrir/terá força na voz/ninguém tira de nós/o crer na utopia/de ver florir/a vida com prazer/amar e merecer/o sol de cada dia”. Uma revolução comportamental há de surgir para bem realizar as nossas boas intenções para com o mundo melhor: “se tanta dor não é bastante para um basta/se o perdão não vence a ira que degola/se tanto desejo de paz não faz escola/sabemos bem que o ódio não nos arrasta”. É preciso, porém, compreender a raiz da contradição para perceber de onde vem as mazelas que impedem prosperar o bem da compreensão respeitosa e pacífica entre os povos: “enquanto minha nação samba na praça/lá fora o mundo se contorce em agonia”. Carnaval para poucos. Fome total para muitos. Diante de tamanha desigualdade, “não posso me calar/essa é minha demanda”.

“Oxalá o mundo se brasilifique”, deseja Cacá Pereira. Para tanto, é preciso inovação. Inovação é a fantástica intersecção entre a imaginação de alguém e a realidade. A respeito, Kuque Malino apresenta um forreggae digno de encabeçar a lista das melhores definições sobre o que significa uma inovação verdadeiramente de ponta: “Não sei de nada/Sou eterno aprendiz/Se o som te agrada/Amigo, você é quem diz/E eu assumo agora/Tudo o que eu fiz/Fiz só/E esse som é diferente/Eu sei/Não mudei nada/Amigo, eu só inovei/Esse é o meu xote/Amigo, esse é o meu forró/Meu bob marley se chamava luiz/Não era o rei do reggae/E sim do baião/Minha jamaica é o nordeste/É o sertão/É o som da terra/Reggae, o pé da serra/Aqui nasce o forró/Forró pesado/Xote colado/E a menina na ponta do pé/Quer que eu te carregue/Forró com reggae/E a gente faz a poeira subir/Forró pesado/Xote colado/E a menina na ponta do pé/Quer que eu te carregue/Forró com reggae/Venha, se entregue/Então vamos fugir”.

Assim, acabamos de apresentar a letra da música chamada Inovação (2002). Kuque Malino renova a tradição criativa a partir de um talento individual que escapa ao melting-pot agora planetário para viabilizar um sistema cultural de valores cujo sadio prazer se encontra em reconhecer o papel construtivo das diferenças na composição autêntica da expressividade humana. Parece retomar, com qualidade perceptiva, a autodefinição de Macunaíma, criado por Mário de Andrade: “sou um tupi tangendo um alaúde”. Kuque Malino parte da prudência socrática – “não sei de nada/sou eterno aprendiz” – para determinar o seu lugar de fala, sem utilizar o arrogante argumento de autoridade para manifestar sua narrativa musical sobre o forreggae enquanto marco da brasilidade, cuja mistura se faz pelo envolvimento fascinante entre as riquezas elementares provindas de conjuntos distintos.

O músico se desvencilha do mito da originalidade inédita que prejudica uma melhor compreensão do fenômeno da criatividade como ponte dialógica entre fontes autorais. Na canção citada, a voz poética se coloca como “inovadora”, colocando-se no papel de “combinadora de referências”, somando-se, portanto, ao coral produtivo de manifestações múltiplas que reúnem “o mel do melhor” após à tarefa desafiadora de ir à cata dos detalhes não resumidos pelo afã do todo aglutinador. Kuque Malino propõe uma linha de montagem, cujo roteiro se destaca pelo registro diversificado de culturas que se interpenetram, gerando um amálgama multiautoral que projeta o Brasil como locus cultural reinventado por um espírito transgressor-harmônico: “Amigo, esse é o meu forró/Meu bob marley se chamava luiz/Não era o rei do reggae/E sim do baião/Minha jamaica é o nordeste/É o sertão/É o som da terra/Reggae, o pé da serra/Aqui nasce o forró”. Se, “em geral, as mestiçagens dos tempos modernos dão-se em águas turvas, em leitos de identidades quebradas”, conforme salienta Serge Gruzinski, em O pensamento mestiço (2001), a Poética da Relação, cantada por Kuque Malino, flerta com outro vetor, a saber: “forró com reggae”, que simboliza o privilégio de se pertencer a vários mundos numa só vida.

Kuque Malino apresenta um tipo de musicalidade que coloca o Brasil como país da diversidade que deu certo. Para tanto, é preciso reconhecer a importância de cada parceiro nesse processo, a partir de um viés horizontal no campo perceptivo das relações. A miscigenação se colocou essencialmente verticalizada, mesmo quando os propósitos pareciam ser os mais nobres em matéria de elogio à nossa mestiçagem fundacional. Ainda hoje vigoram: o amém na porta da frente; o axé na porta dos fundos. Já alertava Affonso Romano de Sant’Anna, em Que país é este? (1980): “Uma coisa é um país,/outra um ajuntamento./Uma coisa é um país,/outra um regimento./Uma coisa é um país,/outra o confinamento./[...]/Uma coisa é um país,/outra um fingimento./Uma coisa é um país,/outra um monumento./Uma coisa é um país,/outra o aviltamento”. Historicamente, em nome da mestiçagem, “sensazalamos casas-grandes/e sobradamos mocambos”, salienta Sant’Anna.

Não queremos mais viver só de futuro. Temos direito de olhar pro retrovisor. De também contemplar as belezas do horizonte. De, enfim, caminhar e aprender com as pedras do caminho. Fundamental reconhecer que esse futuro conhecido pode não passar de um passado enrustido. Como bem disse Bruno Nunes, na canção Dólar e sangue (2002): “O verde e o vermelho desse Portugal,/Bandeira que a gente não parou de dar,/Tremulam nesse anão, dito gigante,/Só que agora em dólar e sangue”. Para que o mundo se brasilifique, é preciso, fundamentalmente, que a gente se destaque como país de primeiro mundo em matéria de respeito e educação.


* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

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