quarta-feira, 3 de junho de 2015

AUTONOMIA E SOBERANIA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Qual a diferença entre autonomia e soberania? Responde o filósofo Mario Sergio Cortella, em Política: para não ser idiota (2010): “a palavra soberano vem do latim superanus, super (sobre), aquele que está acima de todos e não se subordina a ninguém. Autonomia, por sua vez, a partir do vocábulo grego autós (por si mesmo) e nómos (o que me cabe por direito ou dever) indica limites oriundos da vida em meio a outras pessoas, também elas autônomas”. Sujeitos autônomos preocupam-se com o coletivo antes de agir; sujeitos soberanos fazem apenas o que querem.

Em tese, quando se fala em defesa da soberania nacional, por exemplo, deveria se incentivar o empenho coletivo pela autonomia nacional. Considerando a globalidade como bem cultural, diplomático seria admitir que a mundialização por excelência depende do funcionamento harmônico do concerto das nações, sendo estas consideradas interdependentes entre si. Oportuno, nesse sentido, imaginar os países como usuários compartilhantes do planeta, regidos pelo registro dialético da “parte” e do “todo”, a exemplo dos versos barrocos de Gregório de Matos, em pleno século XVII: “O todo sem a parte não é todo,/A parte sem o todo não é parte,/Mas se a parte o faz todo, sendo parte,/Não se diga, que é parte, sendo todo”. Esta percepção aguçada remete ao encontro de um braço que, sendo supostamente de uma imagem do Menino Jesus, leva o eu-poético a mentalizar toda a sagrada figura ali representada. Logo, o Todo está em toda Parte...

Infelizmente, persiste como modelo afirmativo predominante entre as nações a soberania como potência superior. Ao jurista francês, Jean Bodin (1530-1596), se deve a definição clássica da soberania como o mais alto poder sobre os cidadãos e os súditos, livre da obediência às leis. No bojo da experiência política no reino da França, pelos idos da segunda metade do século XVI, Bodin preconizava que o poder soberano de um rei o tornava independente, superior a todas as autoridades subordinadas no dominium temporal. Ademais, o conceito de summum imperium, para o jurista, estaria no mesmo campo conotativo do termo "status Reipublicae”, que designa o “princípio” da República, a sua “forma” ou “alma”, ou seja, tratava-se da soberania. A autoridade soberana fica assim caracterizada por prerrogativas insuscetíveis de partilha ou delegação. Bodin ressalta, ainda, que a competência soberana de fazer as leis é o poder ao qual se subordinam necessariamente todos os outros, tratando-se de um comando supremo.

No atinente ao sentido político, ressalta-se que o ser humano é um ser que se relaciona com o mundo e nele se realiza. Isto porque o homem só acontece nas vicissitudes e reveses do mundo, sendo um ser-no-mundo e com-o-mundo. Com a divisão da Europa em novos Estados soberanos, devida à Paz de Vestfália, de 1648, e sua automatização dos vínculos ideológicos e religiosos, fundamentos da Civitas Christiana, advém dessa circunstância a formação da ideia moderna do Estado como pessoa artificial. A respeito, disserta o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), na obra Do cidadão (1651): “Devemos dizer que este [o Estado] é uma única pessoa, cuja vontade, em virtude dos pactos contraídos reciprocamente por muitos indivíduos, deve ser considerada como vontade de todos aqueles indivíduos, e, portanto, pode servir-se das forças e dos haveres individuais para a paz e a defesa comum”.

Aduz o filósofo que o homem, em época primitivas, vivia fora da sociedade, em estado de natureza. Os homens eram iguais e egoístas, tendo os mesmos direitos naturais, e sem a égide de nenhuma autoridade ou lei. O homem era o lobo do homem. Imperavam logo, a violência e a anarquia. Intentando deslindar esse período ininterrupto de violenta anarquia, os homens engendraram a Sociedade Política por um contrato, cedendo seus direitos naturais a um poder comum, a que se submeteriam por medo e que disciplinaria seus atos em benefício de todos.

No viés posto, portanto, a soberania, antes assentada em todos os homens, passa a ser propriedade da autoridade criada pelo contrato político, um mandatário portador de poderes ilimitados, absolutos e insofismáveis, tanto em matérias espirituais quanto temporais. O Estado, consequentemente, foi o resultado do contrato. É o Leviatã, monstro gigantesco, simbolizado em Hobbes pelo indomável e terrível dragão bíblico, que intimida e impõe a submissão do homem. A política, na circunstância apreciada, situava-se em um patamar mais alto, acima da moral e da religião.

O advogado francês Bigne de Villeneuve (1813-1899) trouxe uma contribuição reflexiva que, salvo melhor juízo, arejou a discussão sobre o tema em destaque. No seu entender, a soberania não é um poder. Ela é a qualidade do poder, cuja teleologia é salvaguardar e custodiar o bem público, fonte da legitimidade do Estado. Depreende-se, assim, que os elementos basilares do Estado para concretizar seus fins são a força, a competência e a beneficência.

Atento ao histórico debate envolvendo soberania e autonomia, o advogado Carlos Alberto do Carmo oferece alentada dissertação de mestrado, intitulada Crises da Soberania: desdobramentos na formação do Estado Brasileiro (UniCEUB, 2008). Nesta pesquisa pertinente, precisamente pontua-se: “São parecidos os passos dos Estados latinoamericanos na busca da autonomia, da verdadeira independência, da soberania. A evolução histórica desses países é semelhante. Conhecem as formas de governos mais antidemocráticas; no campo econômico permanecem dependentes. O Brasil, como seus pares latinoamericanos, enfrenta, até hoje, problemas derivados desse tipo de desenvolvimento. Libertando-se da dominação colonialista, em dois séculos de independência e soberania, não conseguiu realizar o sonho da verdadeira autonomia”.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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