quinta-feira, 18 de junho de 2015

ENTRE O ERÓTICO E O PORNOGRÁFICO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*



Chega, gentilmente, em minhas mãos o livro Uva Vulva (2014), do poeta e arte-educador José Edson dos Santos. No prefácio da obra, Fernando Canto apresenta o livro com ousado primor: “Uva Vulva, de José Edson dos Santos, é o anti-vulgo em alta voltagem. Nestes nanotextos o poeta suga o vinho e embebeda-se de uma via-láctea sexual ao cantar sua arte em versos-volumes invisíveis que impressionam, pois nascem e andam em velocidades que só sabe mani/estar/festar. É uma falsa valsa – temática – de sua experiência de mundo. Zé Edson acionou a chave da erupção vulcânica da sua fábula sintética. E fabricou conceitos e símbolos de uma linguagem urgente”.

A aproximação entre vida e obra, neste livro de José Edson, não esbarra no biografismo, isto é, na ideia distorcida de justificação do texto por meio da motivação real de vivência. O que se percebe, de fato, é a vida transfigurada em literatura, como sendo biografema, segundo termo cunhado por Roland Barthes, nos livros Sade, Fourier, Loiola (1971) e A câmara clara (1980). Transformando a linguagem do cotidiano existencial em ato literário, José Edson, pela via do biografema, imprime “pontes metafóricas entre realidade e ficção”. 

Iluminado por uma tradição literária minimalista, cuja ênfase se expressa perfeitamente na síntese poética – em suma, nos “nanotextos” – José Edson abre as cortinas do espetáculo com os versos: “Ivo viu vindima vulva abrir chuva vaga”. Em busca do clímax, os versos vão prosseguindo em ordem crescente, cada qual dos microtextos em uma página separada, acompanhada de ilustrações sugestivas e apimentadas propostas por Ravi Brito: “Vulcânica montanha em tormenta de Valquíria”/“Valva língua de válvula ígnea virtuosa”/“Vendaval tônico no hímen de vinho”/“Valdevino clitóris espreguiçando vigília”/“Vociferação lasciva na vinha rubra virginal”/“Vício edênico como água veluda na voz”/“Uva vulva em fermentação dentro concha voraz”/“Vulva uva vereda desarvorando visagem”.

No fervor das preliminares, vem pintando, em vários tons, o esquentar da transa: “Ivo vulva paisagem Valquíria no corpo vórtice”/“Volúpia vassala encarnada em uva vulva”/“Voluptuosa lua catártica na espacejada valsa/“Vulva música na voz de Eros vinhedo”/“Volátil penumbra do sol no dedo de Ivo vulva/“Vinho de virtude sob chuva vulnerável e vaga”/“Vertigem da virilha na ilha da volubilidade”/“Vulva maravilha rubra na tenacidade do vinho”/“Vizinho encanto de Ivo no divino vulvário”/“Vulva uva como imã ardente do corpo vulpino”/“Vinhedo no olhar da bebida paixão vulcânica”/“Ventríloqua Afrodite c’est la vie verdura”/“Ivo viu uva vulva Valquíria endoidar a vida”.

José Edson, em sua poética do gozo, apresenta uma textura de relações significativas que tem como finalidade a representação cultural da sexualidade. Ousadamente, o poeta macapaense, radicado em Brasília-DF, desde 1974, estampa a real mistura do erotismo com a pornografia, mobilizando o imaginário a respeito, através de textos e imagens, com o objetivo de envolver os leitores na co-promoção da fantasia que ocupa papel de destaque como leitmotiv do desfrute sexual.

O livro de José Edson se revela como um banquete de versos, com a finalidade de oferecer um conjunto de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor, notadamente por meio de uma disposição erótica. No livro O Erotismo (1957), Georges Bataille destaca: “a essência do erotismo é, assim, ser a transgressão por excelência, dado que ele é resultado da atividade sexual humana enquanto prazer e, ao mesmo tempo, consciência do interdito”. O filósofo ainda salienta que o erotismo se revela como “aquele ponto em que o homem é ao mesmo tempo social e animal, humano e inumano, além de si mesmo”. Estas múltiplas facetas do humano, demasiadamente humano, ganham dimensão poética na obra de José Edson, que transcende aos parâmetros do senso comum, concentrados no “teor” mais nobre do erotismo, em contraposição com o caráter “vulgar” da pornografia.

Em Introdução à filosofia da arte (1966), Benedito Nunes informa: “é o contagio afetivo que constitui para Tolstoi o efeito da Arte”. José Edson, em Uva vulva, explora bem essa propriedade expressiva para articular, sem moralismo, as dimensões implícitas e explícitas da festa dos corpos, na qual os envolvidos transitam entre o aceitável e o obsceno. Perguntas pululam, com a leitura do provocativo livro de José Édson: há limites entre o erotismo e a pornografia? Se existem, até que ponto o que é erótico passa a ser pornográfico? Indo um pouco mais longe, a partir de onde o que antes era pornográfico passa a ser erótico? É sob tais questionamentos que José Edson traz a questão do erotismo, beirando-se com o pornográfico.

No livro de José Edson, a transgressão triunfa sobre a interdição, a partir da livre expressão da sensualidade e da sedução em versos libertários. A libertinagem como fenômeno manifesta a utopia da liberdade sexual, a utopia do desejo sem restrições. Por um caminho dialético, envolvendo tanto o erotismo como a pornografia, o poeta macapaense propõe uma divertida obra, fazendo inteligente uso da poética textual e imagética, com o objetivo de promover a representação realista e imaginária de órgãos genitais ou condutas sexuais, que implica transgressão deliberada da moral e dos tabus sociais que cercam a cultura do sexo.



* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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