quinta-feira, 18 de junho de 2015

A SEMENTE PROFUNDA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*



Com importante papel na promoção cultural do movimento mangue beat, o grupo pernambucano, Mestre Ambrósio, lançou, em 1998, o álbum musical intitulado Fuá na casa de CaBRal. Neste texto, destacaremos uma canção em especial, por conta de sua originalidade criativa no tratamento da complexa questão que se refere ao conhecimento das raízes profundas da identidade humana. Refiro-me à música “Sêmen”, composta por Siba, Bráulio Tavares e Mestre Ambrósio. Eis a letra:  

“Nos antigos rincões da mata virgem/Foi um sêmen plantado com meu nome/E a raiz de tão dura ninguém come/Porque nela plantei a minha origem/Quem tentar chegar perto tem vertigem/Ensinar o caminho, eu não sei/Das mil vezes que por lá eu passei/Nunca pude guardar o seu desenho/Como posso saber de onde venho/Se a semente profunda eu não toquei?

Esse longo caminho que eu traço/Muda constantemente de feição/E eu não posso saber que direção/Tem o rumo que firmo no espaço/Tem momentos que eu sinto que desfaço/O castelo que eu mesmo levantei/O importante é que nunca esquecerei/Que encontrar o caminho é meu empenho/Como posso saber de onde venho/Se a semente profunda eu não toquei?

Como posso saber a minha idade/Se meu tempo passado eu não conheço/Como posso me ver desde o começo/Se a lembrança não tem capacidade/Se não olho pra trás com claridade/Um futuro obscuro aguardarei/Mas aquela semente que sonhei/É a chave do tesouro que eu tenho/Como posso saber de onde venho/Se a semente profunda eu não toquei?

Tantos povos se cruzam nessa terra/Que o mais puro padrão é o mestiço/Deixe o mundo rodar que dá é nisso/A roleta dos genes nunca erra/Nasce tanto galego em pé-de-serra/E por isso eu jamais estranharei/Sertanejo com olhos de nissei/Cantador com suingue caribenho/Como posso saber de onde venho/Se a semente profunda eu não toquei?

Como posso pensar ser brasileiro/Enxergar minha própria diferença/Se olhando ao redor vejo a imensa/Semelhança ligando o mundo inteiro/Como posso saber quem vem primeiro/Se o começo eu jamais alcançarei/Tantos povos no mundo e eu não sei/Qual a força que move o meu engenho/Como posso saber de onde venho/Se a semente profunda eu não toquei?/E eu/Não sei o que fazer/Nesta situação/Meu pé.../Meu pé não pisa o chão”. 

Pelo tom especulativo e indagador da canção de Mestre Ambrósio, existe, e parece difícil de negar, uma grande ambiguidade nas teorias sobre a compreensão acerca da natureza humana essencial. Hobbes, que tinha uma perspectiva negativa, concebia o homem como um ser por natureza belicoso (em Leviatã, de 1651); Rousseau, seu grande antagonista, por sua vez, tinha do homem uma concepção extremamente positiva, já que o entendia como pacífico por natureza (em O contrato social, de 1762). A história das ideias lembra-nos que o homem já foi definido como ser vivo dotado de palavra e pensamento (zoon logon echon); como ser vivo que, agindo, dá à sociedade a forma de cidade regida por leis (zonn politikon); como ser que produz utensílios (homo laborans); como ser que assegura sua subsistência por meio da planificação comunitária (homo oeconomicus). As definições, como podemos perceber, abundam e se multiplicam.

Na letra de “Sêmen”, considerando especialmente seu mote reflexivo – “Como posso saber de onde venho/Se a semente profunda eu não toquei?” – sublinha-se que o homem não é um ser imutável, encarnando, para tanto, diversificadas formas de ser. Para os compositores da referida canção, o homem detém variadas definições em torno dele, é uma ponte de múltiplos sentidos, muito mais do que um fim conceitual em si mesmo; digno de ser amado nele é que é um passar e um sucumbir, conforme destacou Nietzsche, em Assim falou Zaratustra (1883). Enquanto os demais animais tendem a se repetir condicionalmente, o homem, por sua natureza intrínseca, não pode continuar – na verdade, recusa-se a continuar – sendo o que já é. Nesse sentido, compreendemos melhor a intrigante sentença proferida por Albert Camus, em O homem revoltado (1951): “O homem é a única criatura que se recusa a ser o que é”.

Prosaicamente e poeticamente, o homem habita a Terra, constituindo-se uma substância individual de natureza racional e emotiva. É alguém que se destina a se transcender, a ir para além de si mesmo. Nós, o homem, não nos amoldamos aos retratos em branco e preto produzidos pelos diversos sistemas morais. E por qual razão? – seria pertinente perguntar. É que todo homem é conjunção de contrários, conforme ilustra a seguinte passagem da canção de Mestre Ambrósio: “Esse longo caminho que eu traço/Muda constantemente de feição/E eu não posso saber que direção/Tem o rumo que firmo no espaço/Tem momentos que eu sinto que desfaço/O castelo que eu mesmo levantei”. 

Esse estilo polissêmico que faz do humano uma “metamorfose ambulante”, como salientava Raul Seixas, encontra condição especial para se propagar, conforme ressalta Nietzsche, em Para além do bem e do mal (1886): “No homem, criador e criatura se unem; no homem há matéria, fragmento, excesso, barro, lixo, disparate e caos; mas no homem há também o criador, o escultor, a dureza do martelo, a contemplação divina do sétimo dia; você entende esse contraste?”. Inclassificável, o homem se faz uma grande interrogação até para si mesmo, uma verdadeira incógnita – ou seja, a intocável “semente profunda”, conforme expressado, de maneira lapidar, na música de Mestre Ambrósio. E é exatamente dessa complexidade ontológica que advém a grande moral do homem, sua dimensão ética singular e sua estatura existencial ímpar. Dela provém sua dignidade, reconhecendo o outro como o “eu próprio” e, partindo desse ponto, saber respeitar sua singularidade de indivíduo, de tal forma que não pode ser tratado como coisa.    



* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. 

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