Marcos
Fabrício Lopes da Silva*
Alfabetizado é todo aquele que, embora saiba
decodificar os sinais gráficos de seu idioma, ainda não se apropriou plenamente
das habilidades de leitura e escrita. São aqueles indivíduos que passaram por
uma escola, porém leem com dificuldade e pouco escrevem e, quando o fazem,
produzem apenas gêneros discursivos considerados mais simples. Ao discorrer
sobre o letramento, Magda Soares comenta este princípio como sendo “o estado ou
condição de quem exerce as práticas sociais de leitura e de escrita, de quem
participa de eventos em que a escrita é parte integrante da interação entre
pessoas e do processo de interpretação dessa interação”. Este parecer,
compartilhado pela autora, no artigo Novas
práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura (2002), encontra
respaldo em um contexto de prática socioculturalmente estabelecida que permite
à pessoa apoderar-se de suas vantagens e participar ativamente nas decisões da
comunidade a que pertence.
No contexto do letramento digital, acrescentamos
que ser letrado é poder interagir em ambientes digitais, isto é, realizando
práticas de leitura e escrita que diferem das práticas tradicionais. É saber
pesquisar, selecionar, utilizar as diversas ferramentas disponíveis para
cumprir propósitos variados, é se relacionar com seus pares, aprender
constantemente, construir, transformar, reconstruir, exercer autoria,
compartilhar conhecimento, sempre utilizando os recursos da Web, quer para sua
vida pessoal ou profissional. Nesse contexto, Marcelo El Khouri Buzato, na
dissertação de mestrado intitulada O
letramento eletrônico e o uso do computador no ensino de língua estrangeira:
contribuição para a formação de professores (Unicamp, 2001), salienta que a
especificidade do letramento eletrônico está em “ele incluir o conhecimento e
habilidade necessários para fazer marcas numa era eletrônica com dispositivos
eletrônicos”.
Buzato defende a tese de que haja estágios de
formação que representam o letramento digital, destacando-se o iletrado
eletrônico, o semi-letrado eletrônico e o letrado eletrônico. O iletrado
eletrônico é comparado ao analfabeto no sentido tradicional, sendo incapaz de
atribuir qualquer sentido a uma palavra qualquer no computador. Os semi-letrados
eletrônicos, por operar na camada básica, ou seja, no sentido do letramento
alfabético, conseguem identificar boa parte das teclas ou reconhecer elementos
que estejam mais correlacionados com o texto impresso. Todavia, falta a eles as
convenções peculiares do meio eletrônico, sem as quais ele se torna incapaz de
construir sentido efetivo a partir do que se apresenta na tela. Por fim, o
letrado eletrônico “dispõe não só de conhecimento sobre propriedades do texto
na tela que não se reproduzem no mundo natural como também sobre as regras e
convenções que o habilitam no sentido de trazer o texto à tela”.
Em Canção
quase disco (2014), o músico e compositor Mamutte, pela voz poética, conta
os caminhos e descaminhos vividos pelo artista em busca de um letramento
eletrônico compatível com a difusão pública de sua obra. Ciente da repercussão
ventilada pelas redes sociais, o artista mineiro, com irreverência crítica,
descreve, com riqueza de detalhes, o percurso operacional extenso de quem se
habilita a fazer uso comunicacional da plataforma digital para fins artísticos
e culturais:
“É desse jeito/Que se sente um instrumento/Se
estuda seu talento/E se propõe um áudio-som/É com essa forma/Que se desenha a
tessitura/Se percebe suas alturas/E se tira o tom da música/É nesse meio/Que se
tenta algum contato/Se mantém um entrelaço/E se descola uma ajuda/Se não tem
jeito/Vai embora pro teu quarto/Liga o seu notebook/E vai aprender a gravar/É
multipista/O recurso dessa track/Se só salvar, mix down/Sem Save as, já perde o
resto/Baixa o programa/Esse software é crakiado/Já deu Bug, faz logoff/Logo
perco meu trabalho/É desse jeito/Que se faz o itinerário/Grava no fundo do
quarto/Sendo um arte-sonoplasta/Tem que entender/Dos aparelhos e dos seus
fios/Plug banana-banana/Macho/Fêmea é onde in-fia/Tem que saber/Das novas
tecnologias/Da ciência, matemática/E ser também eletricista/É desse jeito/Que
se pensa um argumento/Regionaliza seu projeto/E se insere no incentivo/Pra ser
aprovado/Tem que fazer uma ciranda/Uma moda de viola, um batuque e ou uma
Zanza/É desse modo, pede ajuda para os amigos/Faz um vídeo, um artifício/E se
produz um quase disco/Bem não se esqueça/De acessar a rede socite, a web/E
divulgar on line, o MP3 do quase-disco./É desse jeito que se faz um quase
disco”.
Pela letra em questão, percebe-se que, além da
natureza e dos homens, as coisas também se configuram como agentes de educação
do sujeito humano, pois viabilizam a aquisição de experiência sobre os objetos.
A canção de Mamutte, com inteligência irônica, trata da proliferação magnânima
dos objetos técnicos, como acontece na sociedade contemporânea, na qual a
interação intersubjetiva abre espaço cada vez maior para uma interobjetividade
instrumental, em que objetos se comunicam entre si, e para uma interatividade
social, em que os indivíduos interagem aceleradamente por meio da tecnologia
eletrônica. Considerando o protagonismo humano à frente, a voz poética de
Mamutte, nas entrelinhas, desconfia da potência própria e soberana do objeto.
Uma das razões que explica o aspecto “quase” ressaltado pelo cantor pode ser
apresentada assim: não é mais o sujeito que deseja, é o objeto que seduz.
Engana-se quem acha que tudo parte do objeto e a ele tudo retorna, como tudo
parte da sedução e não do desejo.
* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e
doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
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