quinta-feira, 18 de junho de 2015

CHACAL, CRÍTICO DA PUBLICIDADE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Existe uma conjuntura nebulosa que deixa claro que a felicidade – a despeito de todo o ornamento poético e de todo o conhecimento científico que a recobrem de glórias – pode mobilizar premissas e aspirações problemáticas, responsáveis tanto por intensificar o amesquinhamento dos horizontes ético e político quanto por promover o embrutecimento de nossas opções existenciais. Em torno da felicidade, constrói-se ideologicamente, enquanto recurso persuasivo caro à publicidade, a promoção do conforto como valor social, principalmente o de natureza patrimonial. O sentido da felicidade não escapa aos atravessamentos culturais e vem sofrendo uma radical mutação antropológica no contexto da cultura do consumo. A mutação radical na vida do homem contemporâneo revela o enfraquecimento dos sentimentos essenciais. 

Através dos objetos, o mercado cria imagens que prometem felicidade e nos induz a acreditar que acabaremos conquistando-a se tivermos acesso aos bens que ele coloca à nossa disposição. Este propósito se encontra distante da sabedoria filosófica que define a felicidade como a atividade da alma que visa à excelência humana. Isto é, alcançar a felicidade requer, portanto, muito esforço voltado para o autoconhecimento. Em sua obra, Ética a Nicômacos, Aristóteles garante que a eudaimonia (a palavra que designa felicidade, em grego) depende de nós mesmos e precisa ser buscada sempre; o meio para atingi-la seria a virtude que o indivíduo possui naturalmente. A busca pela felicidade, na visão de Aristóteles, seria uma eterna corrida, com vários obstáculos a serem superados, riscos a serem enfrentados e árduo trabalho, porém, sem garantias de que no final o objetivo máximo fosse alcançado.

A busca da felicidade pautada nos ideais consumistas tem nos levado, com muita frequência, à situação oposta. Não é difícil, entretanto, perceber que a expansão do consumismo não tem sido garantia de felicidade, pois permanecemos constantemente frustrados com os objetos, porque nunca coincidem com os sonhos que nos prometem. Em Minima moralia (1951), Adorno salienta que a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. O filósofo chama a atenção para o movimento de expansão do que ele muito apropriadamente denominou “consciência coisificada”. 

Objetos e coisas são, com frequência, utilizados para demarcar relações sociais, estilos de vida, hábitos e preferências entre as pessoas. Sobre esse fenômeno de expansão sem fronteiras da “consciência coisificada”, a promessa de felicidade encampada pela linguagem da sedução publicitária também é o centro das atenções na poética de Chacal. Conhecido como um dos grandes nomes da poesia marginal, que marcou época nos anos 70, Chacal é autor do poema "Reclame", publicado originalmente no livro Olhos vermelhos (1979). Eis o poema na íntegra: “Se o mundo não vai bem/a seus olhos, use lentes/... ou transforme o mundo/ótica olho vivo agradece a preferência”.

Segundo o dicionarista Antenor Nascentes (1988), reclame vem do francês reclame e significa “propaganda”, ou ainda, “artigo, prospecto ou cartaz o qual procura mostrar as qualidades de uma mercadoria ou obra artística ou literária”. Os dois sentidos apontados anteriormente atendem aos propósitos do texto de Chacal. Utilizando-se dos recursos inerentes à técnica publicitária: a ordem, a persuasão e a sedução, o poema serve como anúncio cujo objetivo é divulgar as vantagens do produto – “lentes” – e da marca/anunciante – “ótica olho vivo”. O primeiro verso – “Se o mundo não vai bem” – começa apresentado uma condição que precisa ser superada, pois causa desconforto. Este começo desanimador de Reclame é a “situação-problema” que precisa ser destacada para que o “produto-marca-solução” resolva o conflito, oferecendo a saída para os que sofrem algum tipo de problema de visão. O alívio imediato são as lentes da ótica olho vivo. Lembrando que, na prática publicitária, prometer facilidade e rapidez é uma prática costumeira. Todo este esforço é para que o consumidor consiga alcançar o conforto sem muito custo.

A apropriação da linguagem publicitária pelo uso poético é irônica. Para bem se relacionar com o mundo, ou o indivíduo modifica a sua maneira de vê-lo (distorcendo as imagens de acordo com a sua conveniência) ou trata de modifica-lo. Transferir para o objeto a capacidade ativa do sujeito é um dos mecanismos publicitários mais utilizados: a ideia é humanizar a mercadoria, conferindo-lhe propriedades especiais de caráter subjetivo, ou seja, promover a identificação do portador de desejos e aspirações com um determinado produto. Segundo o poema de Chacal, para o mundo consumista alimentado pela publicidade, ter visão não é transformar o mundo por ações que obrigariam o sujeito a ter uma postura radical de contestação, saindo assim de sua zona de conforto para enfrentar as zonas de crises presentes no panorama caótico do mundo. É muito mais cômodo/fácil acreditar que, para o indivíduo ter visão de mundo, basta comprar as lentes na “ótica olho vivo”.

Cabe ressaltar que o fato de a ótica ser chamada “olho vivo” demonstra a preocupação da empresa com a saúde dos olhos do público, além de esperteza e sagacidade da mesma em se tratando de negócios. Indiretamente, só são considerados espertos aqueles que adquirirem as lentes na “ótica olho vivo”, enquanto as pessoas que preferirem transformar o mundo são menosprezadas ou colocadas em segundo plano. Ao final do reclame, a ótica (a empresa produtora da maneira de ver mais confortável) agradece a preferência daquele que certamente pode vir a ser seu cliente.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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