sábado, 13 de junho de 2015

OSCAR WILDE EXPLICA MICHAEL JACKSON

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Maior artista pop do mundo, Michael Jackson, em 50 anos, dedicou cerca de 45 deles a sua arte de cantar, compor, dançar, atuar e produzir. Para avaliar a contribuição do artista para a cultura do século XX, é preciso lembrar que seu nome está ligado às várias pontas da indústria do entretenimento. Ele fez a ponte mais sólida entre a música negra, o rock e a canção pop; trouxe a dança das ruas para a linha de frente do cenário do show business; fez da exibição de canções no formato de pequenos e médios vídeos na televisão um novo modelo de criação e divulgação; envolveu-se com campanhas humanitárias carreando seu prestígio e trazendo muitos artistas a reboque. Um artista completo, um homem que revolucionou os negócios no setor, um ser humano complexo em sua relação consigo, com a família, os amigos, os parceiros e os desafetos. 

Tudo o que fez no campo da arte tinha a marca da inventividade e do gênio. O que Michael Jackson construiu na carreira de 750 milhões de discos vendidos foi a descoberta de um segredo dado a poucos: a fusão entre o gosto popular e a qualidade. O que assombrava ainda mais era a capacidade de conjugar elementos aparentemente tão diferentes em torno de uma personalidade confusa e imatura. Há algo de imponderável nesse processo. Para realizar sua obra, teve à disposição o patrimônio pessoal de criatividade e vivência, que ele recriou com o repertório da cultura negra norte-americana, abrindo um diálogo universal, partindo do gueto criativo. No entanto, mesmo o reconhecimento da qualidade de suas músicas e performances não esconde a limitação de seu criador em termos pessoais. 

Autor do clássico da solidariedade pop, We are the world (1985), Michael Jackson morreu em 25 de junho de 2009, confirmando que o mundo é um só, mas no que tem de pior: a sede de tornar tudo um evento. Ele não foi vítima, mas personagem de um tempo vazio, que o consumiu. Com seu talento, no entanto, ajudou a tornar tudo um pouco mais suportável e bonito. A sua imagem traz em si dimensões de uma alma conturbada, em todas as suas variações e configurações, simbolizando o que há de mais decadente em nossa cultura atual: o fato de negar-se a si mesmo em sua autoimagem, revelando traços de uma personalidade marcada pela “automutilação”, pela rejeição de sua exterioridade física e pela negação de sua própria identidade. 

A representação, midiática e simbólica, de Michael Jackson pode muito bem estar associada à figura de uma personagem, fictícia, do romance de Oscar Wilde (1854-1900), cujo título se chama O retrato de Dorian Gray (1890). O livro nos conta a história do jovem Dorian Gray, um aristocrata inglês do século XIX, que ao se tornar modelo de um retrato pintado pelo artista Basil Haellward (outra personagem do texto), acaba se transformando em um ególatra, amante de si mesmo e da arte que o representa. O seu objetivo é manter-se eternamente jovem, conservando, assim, sua imagem, intacta, que nunca envelhece; é ele quem nos diz:

“Se eu pudesse ser sempre moço, se o quadro envelhecesse!... Por isso, por esse milagre eu daria tudo!... daria até a alma!”. É desse pacto que surge um indivíduo cruel e amoral, que preserva a sua fisionomia, enquanto em seu retrato registram-se as marcas que suas ações impingem em sua alma, como se pode ver na imagem do quadro que se transfigura em monstro. O que daí se processa, da relação perversa que Dorian estabelece com o quadro e seu “reflexo”, é o estado de terror que ele passa a experimentar e que o leva a esfaquear a sua própria imagem, impressa no quadro, e a culminar na sua morte, com ele, Dorian Gray, desfigurado e o seu retrato retomando a sua antiga forma. Michael Jackson foi fruto de uma metamorfose semelhante, retrato de uma imagem que se desfez e que refletia uma alma estraçalhada, pois o seu exterior era a face tangível de sua interioridade. De um lado, Dorian Gray, que se autodestrói destruindo o que ele não quis enxergar sobre si mesmo; de outro lado, Michael Jackson que se anulou – às custas do seu próprio extermínio –, fugindo dos seus demônios mais íntimos.

Para a mídia o que representa Michael Jackson? É o sujeito de carne e osso ou o objeto artístico que brota da especulação financeira? Michael Jackson mesmo morte cumpre uma sina: sua imagem é comercializada, sua obra convertida em mercadoria. Com isso, o que vale a pena mesmo é comprar, a qualquer preço, os produtos do artista que estão disponíveis em lojas e prateleiras dos shoppings centers. O mercado é quem dita as regras do jogo, é quem estabelece o que é bom ou ruim para as pessoas, é quem impõe – goela abaixo – o que se deve comprar. Ninguém está a salvo desse processo. Podemos, então, dizer que o ícone da música pop, Michael Jackson, sintetiza uma concepção que se traduz na busca pela mercantilização da nossa cultura musical.

Convém não esquecer que Michael Jackson morreu vítima de nossa própria artificialidade, de pessoa que virou coisa e de coisa que se personificou em gente, encarnando em si a degradação de um paradigma estético-publicitário que a ele esteve vinculado, em toda a sua trajetória artística. Por trás de seu rosto, de sua máscara plástica, escondia um menino impedido de se revelar, protegido por uma carapuça de pop-star que o isolou de si mesmo. Tudo em prol de uma imagem transformada em objeto de troca, pronto a ser cultuado pela religião oficial do mercado. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.


Nenhum comentário:

Postar um comentário