segunda-feira, 4 de julho de 2016

FERNANDO BRANT, CRÍTICO DA IMPRENSA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Toda atividade crítica é logo entendida no sentido de corrigir, constatar e suprir erros e deficiências. Muito além da idéia de criticar para progredir, o media criticism nasceu com o sentido de resgatar a função social dos meios de comunicação, que muitas vezes é esmagada por deslizes éticos cometidos ilimitadamente pelos media. Nesse contexto, surge a essência da expressão media criticism – ou crítica da mídia –, onde a existência desses críticos é importante quando o direito à informação não é direcionado em seus múltiplos sentidos: os veículos informando ao público e o público se informando sobre os veículos. 

No texto "Media Criticism: um espaço mal-dito" (1982), Alberto Dines argumenta que o crítico deve abnegar um espaço de destaque na profissão para que sua vigilância não esteja presa aos limites das organizações: "Ridicularizaram, criticaram, desmascararam jornais, jornalistas ou desempenhos jornalísticos que em sua ótica estava errados. Mas não feriam a estrutura nem o processo como um todo [...]. O media critic não pode focalizar desempenhos ou comportamentos sem enquadrar a estrutura que cria, estimula e orienta tais desempenhos ou comportamentos [...]. O media critic que bombardeia áreas sensíveis de determinado veículo ganha fatalmente o estigma de maldito pelo resto da instituição [...]. O media critic deve capacitar-se de que é um maldito, um renunciante, abrindo mão de um lugar ao sol no establishment. Caso contrário, suas posições serão mal-ditas, isto é, levianas".

A imprensa é, portanto, um importante elemento de mediação. Isto porque é, ao mesmo tempo, uma força política da sociedade, como também uma interlocução com o poder na função de fiscalizar a prática deste, alertando a população, a quem idealmente esta serve, dos abusos cometidos e privilégios praticados que não em benefício da sociedade. Logo, é intrínseco a ela reconhecer as vozes do público e dar a ele espaço para exercer sua cidadania. Porém, se a imprensa – que tem como principais funções intermediar as relações de poder, fiscalizar as forças da sociedade e informar os cidadãos de forma independente – está comprometida com os interesses privados, que órgão haveria de regular o exercício da própria imprensa para que o seu fim fosse, efetivamente, alcançado, e garantisse ao leitor seu papel também de cidadão?

Se de um lado a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt defendia que “a comunicação cuida da assimilação dos homens, isolando-os” e “todos os meios de comunicação altamente desenvolvidos só servem para fortalecer as barreiras que separam entre si os seres humanos”, Jürgen Habermas rompe com essa perspectiva e propõe o conceito de “ação comunicativa”. Ele defende, como alternativa, a “fabricação de opiniões”, a reinvenção do espaço público no fazer comunicação com a extensão da participação da sociedade, numa “razão comunicativa, de natureza intersubjetiva, que se constitui no curso da interação social entre os homens”. A razão comunicativa de Habermas retira a mídia da sua condição exclusivamente de manipulação e emancipa o receptor da condição de alienado, abrindo a questão às mediações e reinventando o sujeito.

As teorias da recepção inserem no debate as condições sociais de produção de sentido, tendo a “informação como processo de comportamento coletivo e os conflitos de interesse em jogo na luta por produzir, acumular ou veicular informações e, por conseguinte, os problemas da desinformação e do controle”. Entra em jogo a perspectiva de um receptor produtor de sentido. Insere-se o conceito de criticidade por parte do sujeito e de elementos mediadores, de ressignificação da cultura e do indivíduo. Dá-se lugar às relações constituídas nas relações, sendo o espaço dos meios de comunicação elemento estratégico num processo de negociação de sentidos.

Nesse sentido, a responsabilidade das mídias é enorme, mas, como estão muitas vezes comprometidas com interesses e valores pessoais – como a maioria está organizada em conglomerados de empresas privadas – escapam à defesa dos direitos dos cidadãos na comunicação e utilizam a sua força para abastecer sistemas de significação e representação cultural, em detrimento do exercício real da cidadania e da democracia. A respeito, o saudoso compositor e cronista mineiro, Fernando Brant (1946-2015) se apresentou arrojadamente como crítico da mídia, no texto “O lixo”, publicado no jornal Estado de Minas, de 24/02/2010: 

“Pensando no lixo, entro no mundo do lixo. Os detritos mais asquerosos estão nos jornais de todos os dias, que escancaram injustiça, violência, corrupção, mentiras, preconceitos. A desumanidade impera nas páginas. Ou então, essas se calam diante dos poderosos, aceitando passivamente a mentira, a ignorância e idiotia de mitos fabricados para enganar a maioria. O que vale para a imprensa escrita se multiplica quando assistimos aos meios audiovisuais. E as opiniões descabeladas que circulam pela rede digital? Será que o país foi sempre assim, desmiolado e sem qualidades, incapaz de pensar e produzir ideias, políticas, obras e espetáculos inteligentes?

É bom então que eu jogue ao lixo esses cadernos jornalísticos imprestáveis. E que emudeça o televisor, jogue fora o controle remoto, que nos oferece um circo de horrores e mau gosto. Parar de gastar o tempo de viver com o que não é essencial. Aproveitar o dia e a vida.

Não sei por onde anda meu companheiro de peladas de rua que, adolescente, encontrei trabalhando num caminhão de lixo. Pensando nele e nos profissionais da boa limpeza urbana, gostaria que houvesse, também, um serviço de coleta de porcarias culturais, políticas e sociais.

Enquanto esse sonho não se realiza, entro em meu refúgio e mergulho em leitura e releitura de Guimarães Rosa. Isso, sim, um luxo”.


* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

ESCOLA SEM PARTIDO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Uma escola sem partido está muito longe de uma educação democraticamente orientada. A educação moral pode ser um âmbito de reflexo que ajude a: detectar e criticar os aspectos injustos da realidade cotidiana e das normas sociais vigentes; construir formas de vida mais justas, tanto nos âmbitos interpessoais como nos coletivos; elaborar autônoma, racional e dialogicamente princípios de valor que ajudem a julgar criticamente a realidade; conseguir que os jovens façam seus aqueles tipos de comportamentos coerentes com os princípios e normas que pessoalmente construíram; fazer com que adquiram também aquelas normas que a sociedade, de modo democrático e visando à justiça, lhes deu. Dito de outro modo, a educação moral quer colaborar com os educandos para facilitar o desenvolvimento e a formação de todas aquelas capacidades que intervêm no juízo e na ação moral.

As escolas devem ser tomadas como “comunidades democráticas”, onde sejam respeitadas a liberdade de expressão e a responsabilidade argumentativa. A disciplina escolar remete às pautas de convívio, esboçadas a partir das rotinas, das expectativas e dos valores característicos das relações escolares, os quais balizam o que fazemos e o que pensamos sobre o que fazemos no dia-a-dia. Uma espécie de norte e, ao mesmo tempo, de combustível das relações – ambos deflagradores dos laços de respeito e parceria entre alunado e agentes escolares. Daí a proposta do contrato pedagógico.

A população, em especial, deposita fé em escolas que incentivam a promoção da cidadania, a visão crítica da realidade e a construção da participação social. Viver democraticamente pressupõe o livre fluxo das ideias, independente de sua popularidade, que permite às pessoas estarem tão bem informadas quanto possível. Acredita também na capacidade individual e coletiva de as pessoas criarem condições de resolver problemas. Tais posturas exigem o uso da reflexão e da análise crítica para avaliar ideias, problemas e políticas. Em termos éticos, viver democraticamente demanda preocupação com o bem-estar dos outros e com o “bem comum”, além de preocupação com a dignidade e os diretos dos indíviduos e das minorias. Por essas razões, não poderá haver democracias sustentáveis se não contarmos em escolas orientadas para a defesa intransigente da liberdade, da dignidade, da justiça, do respeito mútuo e demais motivos edificantes.

Sistema aberto em interação com o meio, a escola não pode ficar imune às tensões e desequilíbrios da sociedade envolvente e, por isso, poderá ver-se a indisciplina que atualmente perturba a vida de muitas escolas como um reflexo dos conflitos e da violência que grassa na sociedade em geral. As desigualdades econômicas e sociais, a crise de valores e o conflito de gerações são alguns dos fatores que podem explicar os desequilíbrios que afetam tanto a vida social como a vida escolar. Daí o inegável fato de que a educação contemporânea tem produzido o domínio disciplinar-atitudinal em detrimento do âmbito propriamente pedagógico-intelectual.

Educar é tomar partido da autonomia na luta contra os mecanismos opressivos que tomam conta da sociedade. Lamentavelmente, nem sempre essa força consegue superar a força centrípeta do egoísmo e nem sempre a nação dispõe de uma força motora para o progresso. Além disto, quando a política não é capaz de mover a nação ao progresso, a sociedade fica para trás em pobreza, violência, desigualdade, desencanto. Face ao exposto, uma escola sem partido lava perigosamente as mãos e, assim, comete uma série de assassinatos, a começar pela corrosão do caráter intelectual e sensível. Fica a pergunta no ar – escola: adaptação ou transformação social? Fazendo-se de agentes da neutralidade ideológica, as vozes conservadores ignoram cinicamente o abismo que separa o Brasil real do Brasil fictício. A respeito, muito tem a colaborar as reflexões trazidas pelo jornalista Carlos Alexandre, no Correio Braziliense, de 7/6/2016: “A cada dia que passa, torna-se evidente que a miséria brasileira não é apenas um problema econômico. Nossa sociedade bárbara está desprovida de educação, tolerância, respeito, cidadania, igualdade. Na ausência do Estado, prevalece o poder das armas, do machismo, da corrupção, da intolerância, do obscurantismo”.

Conforme explica Olgadir Amancia, professora da UnB: “o Projeto Escola sem Partido apresentado no Congresso Nacional pelo deputado Izalci Lucas (PSDB/DF), assim como similares encaminhados em diferentes assembleias estaduais e municipais, representa um ataque à educação, ao pluralismo de ideias e à autonomia dos educadores. Usando o falso argumento da ideologização da educação, da partidarização da escola, objetiva amordaçar professores, obstruir a construção dialógica e crítica do conhecimento. Busca impedira a escola de cumprir o seu papel constitucional de formação com vistas ‘ao pleno desenvolvimento da pessoa’ e para ‘o exercício da cidadania’, como prevê o artigo 205 da Constituição Federal de 1988”.

Alguns retrocessos na defesa da neutralidade e no elogio da etiqueta social encontram-se entrelaçados neste tipo de escola distante do mérito questionador que a define radicalmente. Exemplo: “Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Contudo, a independência de pensamento crítico é uma meta fundamental da escola. E essa meta depende, sim, de professores que trabalham com independência.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.


ABRAPALAVRA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

De Fagner e Brandão, a música Dois querer (1980): “A palavra liga os olhos/Liga o aceno, liga o adeus/A palavra só não liga/Dois querer que são os teus/Um querer é este mundo/Do jeito que se quer ter/Correndo e falando muito/Que é pra muito se ter/Outro querer é ficar/Sem nunca querer de ter/Um dia que se mudar/Por causa de outro querer/Tem muito querer debaixo/Dos pés desses dois querer/Como água no riacho/Barrada pra não correr/Por isso às vezes te abraço/Noutras te quero bater/Mas é melhor o mormaço/Que o céu azul sem chover/Mas é melhor essa vida/Do que viver sem querer”. É com a palavra e somente com ela que trabalhamos em nosso cotidiano, testemunhando o poder de regeneração. Ela promove o reposicionamento naquele que chega em sofrimento e está disposto a se livrar dele.

Desde os tratamentos inaugurais da psicanálise, como hoje a compreendemos, foi da boca de uma mulher que a verdade foi escutada. Ela trouxe a verdade mais íntima e singular, pois, assim dita, aliviava sua dor. Ela dizia ao médico que, ao falar, era como se fosse uma “limpeza na chaminé”. Felizmente, o médico era Sigmund Freud. A palavra refaz. Conecta-nos com o inconsciente, com o que não conhecemos e compreendemos em nós, fazendo mudanças na maneira como administramos o que é nosso e o que foi herdado do outro e nem sequer sabemos.

A palavra nos introduz na cultura. Aprendemos a falar para chamar pelo outro, por quem cuida de nós quando bebês. Falar a mesma linguagem nos permite expressar nossas necessidades e nos faz pertencer a uma comunidade indispensável à sobrevivência. Juntos, enfrentamos catástrofes, encontramos cura para as doenças, inventamos a roda e a escrita – enfim, construímos uma civilização. A palavra é um laço: tece e costura as nossas relações. Com ela podemos pedir socorro e ajuda. Demandamos aquilo de que precisamos para viver. Ela é, em última instância, um pedido de amor.

A palavra é o nosso recurso, a nossa aposta na vida comum. Quando falamos com alguém, abrimos o nosso universo particular convidando a que nos escutem, olhem para nós. Ela invoca, pede, suplica. A palavra permite que o outro saiba sobre nós e que fale conosco também. Convida a travarmos relações. E esse convite pode ser aceito ou recusado. A palavra lançada ao outro permite que ele diga o que pensa, concorde e discorde, dê conselhos, saiba mais e fale com terceiros sobre aquilo que lhe foi dito. A palavra dita jamais poderá ser recolhida, apagada. E pode ter consequências. Muitas vezes, banalizamos seu valor. Ela destrói e cura, é bendita ou maledicente. Ela declara guerras e amores, convida a entrar e também a sair de nossa singular e íntima jurisdição. Difícil saber administrá-la, pois é precisa como uma espada afiada. Por isso, silenciar nos protege melhor do que falar muito. Assim reza um antigo provérbio que se acredita ser de origem oriental: "o falar é de prata, o silêncio é de ouro". 

Desse modo, a palavra aparece como movimento em torno do silêncio. A respeito, versa, com categoria, o poeta Wélcio de Toledo, no livro Subversos (2015). Refiro-me aos versos do poema “A palavra”, mais especificamente: “a palavra/gravada no papel/realça o branco/das histórias/que ainda/estão por vir/o branco/do papel/que se molda/atrai palavras/recheadas de histórias/prenhes de existir”. Pelas palavras, as histórias são mais sobre o que a gente não sabe do que aquilo que nós nos conhecemos. Falar é preencher os espaços em branco, levando em conta que a noção muito cara de incompletude, pois todo dizer precisa da falta, todo discurso e todo sujeito são incompletos. “As próprias palavras transpiram silêncio” – revela a professora Eni Orlandi, em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos (2007). E o silêncio inspira palavras, acrescento.

A palavra abre sulcos na subjetividade e é capaz de suspender bloqueios que nos mantiveram cativos por toda uma vida. Ajuda-nos a suportar o peso da nossa própria dor de existir, seja de que origem ela venha. Seja de uma fantasia ou de uma verdade vivida como desamparo, desamor, rejeição ou violência que tenhamos experimentado, vinda da mão do outro, ou que tenha sido sentida ou interpretada dessa maneira por nossa fragilidade. A palavra deixa marcas de aluvião. Aluvião é a erosão na terra por onde passamas águas de enxurrada. Depois, torna-se o caminho por onde cada chuva ou enchente vai seguir. Nossa subjetividade é marcada por caminhos de aluvião. Cada vez que vivenciamos algo que tenha um ponto em comum com o nosso passado, é por esses caminhos que passarão as emoções. Repetiremos sentimentos conhecidos e marcados, como se o atual apenas confirmasse o que já tínhamos experimentado. E ali atua a palavra, criando novas passagens. O sentido da palavra talvez seja dar aos seres humanos consciência da grandeza que ignoram ter dentro de si.

Nós, seres humanos e falantes, precisamos de ideais que refreiem nossa agressividade. Infelizmente, eles nem sempre funcionam para todos. Necessitamos também de ética para nortear a nossa conduta. Precisamos das leis, pactos criados para que seja possível a manutenção da cultura, da vida em comum. A educação nos molda e nos ensina a nos espelhar em ideais. Faz isso justamente porque o ser humano é diferente dos animais. Somos capazes de mentir, odiar, agredir, roubar e matar não apenas por necessidade básica da sobrevivência, mas para nos dar bem, mesmo que seja sobre a desgraça dos demais. Por isso, precisamos das leis que defendam ideais como a fraternidade, para que o mais forte não vença sempre e domine os mais fracos, oprimindo-os. A fraternidade é um conceito ideal, difícil de praticar, mas somos responsáveis por sua invenção, pois precisamos do outro e sabemos que em nós existe grandeza, solidariedade e laços que nos unem pela via da palavra e dos pactos possíveis.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

A VIOLÊNCIA E A QUESTÃO MORAL

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Através de notícias diárias, toma-se conhecimento de como proliferam os caprichos dos insanos, e da facilidade com que mentem, violam, roubam e matam. Prejuízo coletivo maior comentem os sociopatas ou psicopatas evolutivos, que são socialmente diferenciados. Não raro, eles ocupam amplos espaços na sociedade; entretanto, se governam, o fazem sem justiça; se decidem, a irracionalidade preside seus atos, se julgam, desobrigam-se de obedecer à lei – à letra da lei. É flagrante a incapacidade de seguir o princípio de P. Jonhson-Laird: ‘‘para decidirem, julguem; para julgarem, raciocinem; para raciocinarem, decidam (sobre o que raciocinar)’’. Constituem estes alguns exemplos de um estado patológico, em que uma diminuição da racionalidade se faz também acompanhar de carência ou de completa ausência de sentimentos.

Posto isto, não há como discordar do ensaísta e psicanalista Ataulpho Ribeiro, em Reestruturas do pensamento: “o comportamento dos homens, ao longo de toda a história, de suas vicissitudes, o seu imutável perfil psicológico, seu perfil animal de rapina, de predador implacável – ‘todo homem leva dentro de si um animal selvagem’, sempre foi vincado pela violência, rapacidade, sofreguidão hedonista, corrupção, solércia, ambição de poder...’’. Vai além, citando o biologista Ardrey: ‘‘o ser humano, a última palavra em matéria de predador armado’’ e Nietzsche: ‘‘o homem é o mais cruel de todos os animais’’. Uma tragédia, pois, assim se pode antever um progressivo processo de degenerescência humana: a pequenez dos homens insensatos, insensíveis e indiferentes a silenciar sobre os apelos da equidade, da persuasão, da tolerância, da benevolência, da magnanimidade.

Renato Russo e a Legião Urbana, na canção Baader-Meinhof Blues (1984), criticavam a manifestação da agressividade por meio da tirania, da opressão, do abuso da força e do constrangimento exercido sobre alguma pessoa para obriga-la a fazer ou deixar de fazer um ato qualquer: "A violência é tão fascinante/E nossas vidas são tão normais/E você passa dia e noite e sempre/Vê apartamentos acesos/Tudo parece ser tão real/Mas você viu esse filme também/Andando nas ruas pensei que podia ouvir/Alguém me chamando, dizendo meu nome/Já estou cheio de me sentir vazio/Meu corpo é quente e estou sentindo frio/Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber/Afinal, amar ao próximo é tão demodê/Essa justiça desafinada é tão humana e tão errada/Nós assistimo televisão também, qual é a diferença?/Não estatize meus sentimentos pra seu governo/O meu estado é independente/Ô ô ô/Já estou cheio de me sentir vazio/Meu corpo é quente e estou sentindo frio/Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber/Afinal, amar ao próximo é tão demodê".

A violência ocorre nos escritórios com ar condicionado, tapete e toda parafernália eletrônica. A palavra não dita, omissa, é a pior violência. A omissão é um crime duplo. E o capital é a violência a que o trabalho morto (a máquina, a mercadoria) submete o trabalho vivo (a mão-de-obra). O desemprego não corta só orelhas, corta tudo: a dignidade, a vida. Violento é o neoliberalismo, doutrina de ricos, jamais liberais, para os pobres. Países ricos sempre foram protecionistas e o são cada vez mais. A selvageria do ‘‘livre’’ mercado é para os pobres se comerem uns aos outros. ‘‘As veias abertas da América Latina’’ e restante do Segundo e Terceiro Mundo alimentam os vampiros internacionais, que brincam na jogatina das bolsas de valores.

Vampirismo de um lado e contraviolência de outro. Os que são chamados violentos na verdade são contraviolentos, pois a verdadeira violência é sutil. É feita pelo gesto feito ou não feito, pela palavra dita ou não dita, escrita ou não escrita. O que diferencia um ato ou omissão bons ou ruins é a intenção. A violência contundente é o epifenômeno, o reflexo do gesto sutil. Se a essência e a aparência se confundissem, toda ciência seria supérflua, ensina Marx. Portanto, os que detêm o poder é que são violentos, quando há contraviolência contundente. O processo de esvaziamento ético, de destruição do valor social das posturas moralmente recomendáveis, que está levando a uma situação difícil em praticamente todos os domínios da vida social brasileira (ainda que nosso interesse principal seja o ambiente escolar), tem origem numa miríade de fatores. Entre eles, o próprio jeito cultural brasileiro de enfrentar desvios de conduta. Alguns desses temas, à medida que o debate avançar, devem se tornar alvos importantes.

Gilberto Freyre havia mostrado que vivemos um processo de formação moral da elite do País extremamente distorcido. Os filhos da Casa Grande tinham todos os direitos, inclusive os de serem absolutamente desumanos com os filhos da Senzala. Insensibilidade era uma palavra doce perto do que costumavam exprimir, em seus atos, os pequenos coronéis. Crueldade seria um conceito mais adequado.

Não deveria surpreender que, à medida que o País se urbanizasse e rompesse os laços da servidão rural, na ausência de um processo social fortemente reestruturador de valores e posturas, o que teria talvez exigido uma revolução social, em vez de vivermos um processo de elevação ética coletiva, vivêssemos o seu contrário, isto é, uma generalização da anomia moral. Antes privilégio da elite senhorial, tornou-se prerrogativa coletiva, até se tornar lema nacional com o ‘‘levar vantagem em tudo’’. Mas o curioso é constatar que nós enfrentamos o colapso moral não através da insistência numa socialização de conceitos, na recriação de um novo padrão ético, mas no desenvolvimento de posturas repressivas ou simplesmente impeditivas. Isto é, em vez de convencer a mudar o comportamento, jogamos toda nossa energia em promover a manifestação do comportamento aético, com o que o comportamento ético não é valorizado.



* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

A "FORÇA" DA GRANA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 1998, o escritor e economista indiano Amartya Sen trouxe certo ânimo para o que entendemos como “meio de vida”. Consiste, por assim dizer, em acesso à capacidade a bens (incluindo bens materiais e sociais) e a atividades, requeridos para a sobrevivência de um indivíduo. Um meio de vida é sustentável quando pode ser capaz de se recuperar de situações de choque e de estresse, ao mesmo tempo em que pode manter ou melhorar a capacidade e os bens do indivíduo, agora e no futuro, e que não deteriora os recursos ambientais básicos.

Em busca da palavra exata, porém, o campo econômico engasga-se num horizonte curto demais. Como resultado, uma concessão desencadeada e reveladora de “cadeias que libertem”, como diria a poeta Ana Cristina César, observadora atenta e crítica desse paradoxo absurdo que insiste em tirar o nosso sossego, tendo em vista a corrida vigente pelo santo pão de cada dia. Metaforicamente, Caetano Veloso, em Sampa (1978), já alertava sobre o padrão cinzento predominante no desenvolvimento econômico que não leva em conta a insustentável leveza do ser: “da força da grana que ergue e destrói coisas belas/da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas”. Esse “vulcão de neve” chamado economia nos transforma em “viras latas na via láctea”, como sugere o belo jogo de palavras articulado pelo músico Tom Zé.

Acionando novamente as reflexões de Amartya Sen, parece-me que o conceito de “capacidade” sugerido por ele pode até caber no cenário convencional de luta pela sobrevivência, mas o sentido nobre de viabilizar a convivência global ganha apenas impulso tímido. Capacidade, segundo o economista, refere-se à faculdade de possuir certas qualidades básicas, incluindo o que a pessoa é capaz objetivamente de fazer, como ela é capaz de enfrentar situações de estresse ou de choques e como ela faz uso das oportunidades de sobrevivência.

Capacidade, para mim, significa leitura poética, onde a verdade reside, é legenda se fazendo tecido, texto nunca acabado, como o que tecia Penélope à espera de Ulisses. O mesmo tecido que permanece inacabado hoje, neste tempo de carência e de indigência, “tempo em que os deuses fugiram e em que ainda não se pode falar do que virá”. Vejo mais capacidade na utopia do que na realidade. Utopia, no sentido que lhe empresta Ernest Bloch: “esperança concreta”. O discurso econômico se esconde no “absoluto matemático” para impor seu mandato na governança do mundo globalizado. Em torno do vil metal, o que se expressa em demasia é o que Michel Foucault chama de “panoptismo”. Isto é, vigilância, controle e correção imperam como as maiores características de nossa época. Porém, capacidade é doar saber para que todos, sem distinção, tenham poder.

Na lição do saudoso filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio, em O Direito Administrativo e o Poder Judiciário (2001), todo o poder emana do povo porque a democracia se firma como “governo do controle e do consenso”. Um dos princípios básicos do Estado constitucional é a adoção do caráter público como regra e do segredo como exceção: “Que todas as decisões e mais em geral os atos dos governantes devam ser conhecidos pelo povo soberano foi considerado um dos eixos do regime democrático, definido como o governo direto do povo ou controlado pelo povo”. Não é pérola jogada aos porcos o que bem expressa o artigo 37 da Constituição Federal de 1988: “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

Descolada da política, a economia vira patrimonialismo. A transparência perde espaço para a corrupção. Nos tempos da ditadura militar, o general Emílio Garrastazu Médici, em viagem presidencial ao Nordeste, pronunciou a famosa frase: “Estado rico, país pobre”. Atualizando a declaração para os tempos de hoje: “Estado rico, país pobre e mercado mais rico ainda”. O dinheiro divide o mundo e o mundo não divide o dinheiro. Estamos vivenciando mais uma vez o que Dante Alighieri expressou no romance A Divina Comédia. Destaca-se na bela poesia dantesca a perspectiva humana: os personagens que povoam o mundo do além ocupam posições relacionadas ao papel que desempenharam em relação à cidade do narrador, a sua amada Florença. Para os amigos, o céu; para os inimigos, o inferno, com a incômoda companhia do diabo em pessoa! Perspectiva bem moderna, aliás. Para os amigos, leia-se: os relacionados com a construção da pólis dos nossos sonhos, a eterna lembrança da bem-aventurança. Para os que conspiravam contra o nosso ideal cívico, o inferno do esquecimento!

Ecos do inferno dantesco: Cerca de 1% da população mundial detém quase 50% da riqueza produzida no planeta. Os outros 99% dividem, em partes também desiguais, os cerca de 50% restantes. A informação provém de uma instituição financeira respeitada mundialmente, o banco Credit Suisse. E, pior, segundo o estudo, a concentração da riqueza está aumentando. A pesquisa levou em conta dados patrimoniais de 4,8 milhões de adultos procedentes de mais de 200 países. Os números são estarrecedores. Como então relativizar o peso da economia sobre nossas cabeças? Ouvindo Martinho da Vila: “Dinheiro pra que dinheiro/Se ela não me dá bola/Em casa de batuqueiro/Só quem fala alto é viola...”. E aprendendo com Fernando Sabino, no saboroso livro O Encontro Marcado (1956): “Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro”.


* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

A CENTELHA DO ACASO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

A nossa existência parece ser uma sucessão infindável de encontros: encontro com o trabalho, com a família, com os amigos. Encontro com o amor. Encontro com o destino. Invariavelmente quando penso em encontros me vem ao pensamento o que disse Vinícius de Moares no seu Samba da benção (1962): “a vida é a arte do encontro”. Do seu revés, da sua negação, o poeta não se esqueceu, e assim completou o verso: “A vida é a arte de encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. É assim que os encontros se tornam mágica, pela superação dos seus reveses, dos desencontros. Muitas vezes o acaso é o grande promotor de encontros memoráveis, em que transforma o inesperado em um suave sorriso. Palmas para o acaso, que tão bem arquiteta encontros e bons momentos entre nós, esses seres humanos sempre em busca de diversões e companhias.

Existem reflexões, porém, que combatem a noção de acaso, tentando assim desvendar o que cerca a “compreensão do risco”. O livro O acaso e a necessidade (1970) defende a seguinte tese: tudo que acontece no processo evolutivo não ocorre apenas por puro acaso, mas, como afirma o título da obra fundamental de Jacques Monod, a evolução se dá por acaso e necessidade, ou seja, segundo João Paulo Monteiro, professor de filosofia na Universidade de Lisboa, “a seleção natural faz da evolução das espécies uma espécie de ‘algoritmo’, que realiza sua tarefa — a construção de um mundo cheio de espécies adaptadas a seus ambientes naturais —, sem que haja um desígnio superior a governar todo o conjunto”.

Cabe em nossa relação com o acaso a lógica da vida que ainda não assimilamos. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que não estamos preparados para lidar com o aleatório – e, por isso, não percebemos o quanto o acaso interfere em nossas vidas. A respeito, canta o grupo Titãs a poética da incerteza: “Devia ter amado mais/Ter chorado mais/Ter visto o sol nascer/Devia ter arriscado mais e até errado mais/Ter feito o que eu queria fazer/Queria ter aceitado as pessoas como elas são/Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração/O acaso vai me proteger/Enquanto eu andar distraído/O acaso vai me proteger/Enquanto eu andar...”. Alguns preferem chamar o acaso de “feliz coincidência” ou “providência divina”. Carl Jung construiu o conceito de “sincronicidade” para tentar dar conta deste grande desafio. Trata-se de um exercício reflexivo que visa explicar a coincidência entre dois ou vários eventos, sem relação causal entre si, mas possuindo um mesmo conteúdo significativo. Sincronicidade, segundo Jung, é um conceito que une dois ou vários acontecimentos sem união causal. Porém a sequência dos mesmos acontecimentos forma um todo, cuja interpretação é captada pelo sujeito, possuindo significado idiossincrático.

Mereceu também a temática do acaso um cuidado musical na bela canção de César Camargo Mariano: “Não sei se o acaso quis brincar/Ou foi a vida que escolheu/Por ironia fez cruzar/O meu caminho com o seu/Eu nem queria mais sofrer/A agonia da paixão/Nem tinha mais o que esquecer/Vivia em paz, na solidão/Mas foi te encontrar/E o futuro chegou como um pressentimento/Meus olhos brilharam, brilharam/No escuro da emoção/Não sei se o acaso quis brincar/Ou foi a vida que escolheu/Por ironia fez cruzar/O seu caminho com meu”. Pelos caminhos do acaso, em sua dimensão tortuosa, podemos pensar a estabilidade e o equilíbrio não como formas primeiras que antecedem a “fundação” da natureza das coisas, mas como efeitos solidários de um movimento universal que comporta em uma mesma medida o instável e o desequilíbrio.

O acaso nos lança para uma posição menos totalitária: a experiência estética deixa de ser exclusivamente a manifestação de um saber ou de um sentimento, e se assume como um universo pleno de movimentos, onde esse sujeito age ao mesmo tempo em que se transforma. Tomando o acaso como cruzamento de causas independentes, questionam-se visões excessivamente egocêntricas que visam a esgotar a presença do “indeterminado” entre nós. O medo e o fascínio promovidos pelo cenário de incerteza ganhou especial interrogação nas mãos do educador Rubem Alves, em Palavras para desatar nós (2011), a saber: “a vida toda não será assim uma luta contra o caos sem sentido em busca de uma beleza escondida?”. O que quer a dinâmica do acaso: fazer as pessoas sorrirem ou chorarem? Uma coisa é certa: que bom que de vez em quando surja alguém para nos lembrar o quanto temos vivido tão distraidamente desabraçados. Isto significa driblar o destino programado da solidão, do isolamento em meio à multidão inquieta e à minoria próspera. A complexidade do conceito de acaso já pode ser deduzida da quantidade de palavras que surgem em nosso cotidiano e que se relacionam ou se confundem com ele: sorte, azar, coincidência, acidente, contingência, indeterminação, destino, causa fortuita, aleatoriedade.

Quando se diz que alguma coisa é obra do destino, pode-se estar querendo dizer que é produto de um jogo de forças imprevisíveis da natureza, de cruzamentos não necessários, acidentais, enfim, uma afirmação do acaso. Mas pode ainda se referir a algo que já estava escrito, previsto num roteiro minuciosamente traçado do qual não se pode escapar, uma negação do acaso. Normalmente, quando começamos a contar uma história, buscamos encontrar sempre uma relação de causalidade entre diferentes acontecimentos. “Primeiro ocorreu isso, depois aquilo. Aquilo ocorreu por causa disso.” Há sempre um exercício mental de procurar por uma sucessão lógica do desenvolver dos fatos. Somos tentados a acreditar que sempre existe uma explicação, que há um motivo por trás das coisas. No entanto, sejamos sinceros: muitas vezes simplesmente não há um porquê, o que acontece se trata de um capricho do destino. Daí, surge talvez aquilo que Walter Benjamim descreve como “centelha do acaso”.



* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.