quinta-feira, 18 de junho de 2015

NÃO OLHE PARA TRÁS COM RANCOR

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Virtude teve a banda britânica Oasis, ao incentivar multidões, pelo mundo afora, a cantar Don’t look back in anger (1995). Em uma tradução livre, o título da canção, em português, pode significar: “não olhe para trás com rancor” ou “não olhe para o passado com rancor”. Diante desse oportuno conselho entoado musicalmente, fica a pergunta: visando promover uma agenda pacífica para o contemporâneo, como o indivíduo pode colocar-se para além do ressentimento? 

O termo “ressentimento” designa um fenômeno do gênero do rancor, ódio, cólera e sede de vingança, que surge no homem em função de uma ofensa ou agressão, diante da qual ele não pôde reagir de forma imediata e nem tampouco assimilar os sentimentos mórbidos decorrentes daquela agressão. O termo nomeia, assim, um fenômeno do campo da psicologia ocasionado, porém, por uma fraqueza fisiológica que se traduz na inibição da descarga dos afetos para fora e também na incapacidade de assimilação, de digestão pelo organismo daqueles afetos que são lançados para o interior do homem.

Luiz Felipe Pondé, em A era do ressentimento (2014), ressalta a relação direta entre rancor e narcisismo. O cúmulo da vaidade humana é compreendida pelo filósofo como manifestação de uma vida interior retraída e conduzida à reboque da pequena ética movida pelas aparências sociais convenientes: “O narcisismo não é a marca de alguém que se ama muito, mas a marca de alguém que vive lambendo suas feridas porque é um miserável afetivo. Mas por viver se lambendo, pensamos ser ele alguém que se ama muito, sendo que, no entanto, é justamente o contrário. Incapaz de ter vínculos, o narcisista vive a serviço de si mesmo. [...] Não será a coragem, a disciplina, o medo, o desespero existencial que farão a história das mentalidades de nossa era, mas o sentimento de que merecemos mais do que temos”. A carência afetiva elevada ao exibicionismo do ego em progressão geométrica apresenta como pano de fundo um grande vazio existencial que só pode ser problematizado com avaliações autênticas e posturas existenciais profundas. Caso o contrário, o ressentimento toma conta ferozmente de nossa subjetividade tiranicamente poderosa. 

Com a era do ressentimento sendo promovida imprudentemente, como se tornar virtuoso e produzir os frutos delicados da convivência em uma sociedade em que imperam outros ideais e táticas para ganhar mais dinheiro, subir na escala social, promover-se, ter mais bens e mais poder sobre os outros? O que significa ser virtuoso em nossa sociedade pós-moderna? Associar os cidadãos a uma melhor qualidade de decisões supõe dizer a complexidade das coisas para apelar à lucidez das pessoas. Não olhar para trás com rancor representa acreditar incondicionalmente no poder mediador da comunicação como resolução de conflitos que coloquem verdadeiramente em xeque nossos orgulhos e caprichos individualistas. A raiz profunda do ressentimento se encontra, como bem observa Pondé, no “pânico diante da indiferença no universo vazio”, desrazão esta que movimenta, por sua vez, “a tendência de nos tornar superficiais”. Convocar o sentido relacional dinâmico e sincero se faz fundamental, pois tal prática reveste-se de gentil compreensão da estranheza, preservando e estimulando, assim, os registros de autenticidade necessária para a manutenção saudável dos elos sociais. 

Marcia Tiburi, em Filosofia prática (2014), colabora para o debate em questão, alertando que o ressentimento pode também ser lido como “um ódio barato vigente em nossa cultura”. Ações rancorosas levam sujeitos arrogantes, com demasiado poder, a fundamentar a constituição nefasta de um cenário humilhante, marcada pela expansão perigosa da impotência em termos generalizados. Adverte a filósofa, com pesar e senso crítico apurado:

“O efeito mais claro da humilhação é a morte da subjetividade enquanto morte da expressão que é, em outros termos, morte da alma, do corpo-alma, e morte da política enquanto atividade desse corpo-alma. O menosprezo, a desvalorização de alguém estão no cerne da humilhação como característica da estrutura social, como estratégia de manutenção do poder. A humilhação é a destruição da subjetividade, também pela desmontagem dos processos de ‘intersubjetividade’ enquanto laço que uniria pessoas na forma da produtividade social do diálogo e de outras ações entre elas”.

Outro prejuízo comportamental proporcionado pelo clima de ressentimento refere-se à propagação de traumas individuais e coletivos que suspendem a naturalidade das nossas emoções, represando violentamente toda a sua carga de expansividade racional e sensível. No campo da física, a palavra “trauma” se refere à pressão que os materiais sofrem. Psicologicamente, o referido termo foi absorvido clinicamente para identificar o sofrimento de quem passou por situações muito fortes que deixaram marcas emocionais com sequelas por toda uma vida. Por trás dos nossos rancores, ressentimentos e traumas, encontra-se também presente a nossa inabilidade em lidar com a morte, a dor e o fracasso.

Diante de tamanha fragilidade, como podemos não olhar para trás com rancor, conforme indica a banda Oasis? Salve, Jorge! Em Luz polarizada (1975), Ben Jor orienta: “Domine a imagem/Use força inferior superior/Use o conhecimento com perseverança e consciência/Pratique, transmute a vontade com lealdade e sinceridade/Seja atento e assíduo porque/a qualquer hora, a qualquer momento/pode estar nascendo o amor”.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

** Agradeço a Edilane Gonçalves Godinho​, pela indicação da música Don’t look back in anger, gravada pela banda Oasis.

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