sexta-feira, 5 de junho de 2015

AXÉ E POLÍTICA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Uma das bandas precursoras do axé politizado brasileiro, Reflexu’s, em 1987, lançou importantes músicas de cunho afirmativo no que tange aos anseios legítimos da população negra. Em “Libertem Mandela”, por exemplo, o compositor Rey Zulu conta a tensão existente entre harmonia racial e embranquecimento, relação acirrada pela impossibilidade/incapacidade de reconhecer horizontalidade a igualdade entre todos no interior de uma pluralidade de raças e cores tratadas e pensadas hierarquicamente. Foi adotado, na referida canção, um ponto de vista empenhado em contar a história do racismo, a partir do regime do apartheid que se apoderou de África e se desdobrou como estrangulamento dos direitos das comunidades negras mundo afora: “Batalhas e conflitos/Vítimas de sofrimento/Sou eu um negro bonito/Desabafando meus sentimentos/De geração em geração/Que é discriminado o negão/E hoje somos cultura/Nosso grito de força é a nossa união/Tire tire o chapéu/E levante a mão/Diga não apartheid/E liberte Mandela/Nosso grande irmão”. 

Convoca-se, nesta canção, o deslocamento da ideia de nação mestiça para nação multirracial que, de um lado, implica a necessidade de reconhecer as diferenças étnico/raciais como constitutivas e perenes na construção da nação brasileira e, de outro lado, equacionar no âmbito econômico, jurídico e político a universalização da cidadania com base naquelas diferenças inatas e/ou construídas socialmente que, no entanto, continuam a gerar discriminações negativas, além de injustiças econômicas e simbólicas. 

Em “Madagascar Olodum”, Rey Zulu destaca: “[...] E viva pelo pelourinho/Patrimônio da humanidade/É pelourinho pelourinho/Palco da vida e negras verdades/Protestos, manifestações/Faz o olodum contra o apartheid/Juntamente com Madagascar/Invocando igualdade, liberdade a reinar/Iê ê ê sakalavas onaê/Ia a a sakalavas onaa/Madagascar, ilha, ilha do amor/Ayê ê ê Madagascar olodum/Ayê eu sou o arco-íris de Madascagar/E eu disse ayê/Ayê ê ê Madagascar olodum/Ayê eu sou o arco-íris de Madagascar”. A letra em questão contribuiu para o processo político de desconstrução de valores negativos atribuídos à população negra através da desnaturalização do “lugar do negro” como um espaço subalternizado. A igualdade reivindicada na canção citada reverberou no surgimento de ações afirmativas, visando promover a inserção do grupo discriminado em domínios de prestígio político e de relevância econômica. Somente desta maneira estar-se-ia restituindo a igualdade de oportunidades. Para a compreensão desse contexto, são providenciais as palavras de Gilberto Gil, em “Oração pela libertação da África do Sul”, música gravada pelo grupo Reflexu’s:

“Se o Rei Zulu já não pode andar nu/Se o Rei Zulu já não pode andar nu/Salve a batina do bispo Tutu/Salve a batina do bispo Tutu/Ó Deus do céu da África do Sul/do céu azul da África do Sul/tornai vermelho todo sangue azul/Já que vermelho tem sido todo sangue derramado/todo corpo, todo irmão chicoteado, Yô/Senhor da selva africana irmã da selva/americana nossa selva Brasileira de Tupã/Senhor irmão de Tupã fazei/com que o chicote seja por fim pendurado/revogai da intolerância a lei/devolvei o chão a quem no chão foi criado/Ó Cristo Rei branco de Oxalufã/Ó Cristo Rei branco de Oxalufã/zelai por nossa negra flor pagã/zelai por nossa negra flor pagã/Sabei que o Papa já pediu perdão/Sabei que o Papa já pediu perdão/varrei do mapa toda escravidão/varrei do mapa toda escravidão”.

Promovido pela banda Reflexu’s, o axé politizado ajudou no enfretamento qualificado do problema da “linha de cor”, como diria Du Bois, possibilitando importante questionamento sobre a chamada “democracia racial”. Ao essencializar a ideia de diferença, foram integradas as concepções relacionadas aos três grandes conceitos históricos paradigmáticos de inclusão e exclusão – raça, cultura e identidade – numa única categoria: ser negro. Em linhas gerais, o axé politizado agiu em duas frentes: na do combate à discriminação racial e na do desenvolvimento da identidade ou consciência negra. Para tanto, fizeram-se fundamentais a recuperação da herança africana no Brasil, redefinindo-a como negra, e a adoção de uma postura africanista, diaspórica, tanto no âmbito da política como no cultural. 

No bojo dessas mudanças, a ideia de nações que congregam muitas “raças” e múltiplas “culturas”, ao contrário do modelo assimilacionista da Revolução Francesa, fixa-se como uma alternativa política. A “mestiçagem” passa a sofrer, no campo democrático e anti-racista, a concorrência do “multirracialismo” e do “multiculturalismo”. No plano cultural brasileiro, o multiculturalismo significará para o negro o direito de não ser absorvido de modo genérico, como “brasileiro”, mas ser respeitado como “africano” ou “afro-descendente”; no plano político nacional, o negro passa a ser reconhecido como sujeito de direitos e não apenas como objeto das leis.

Como bem salientou Franz Fanon, em Os condenados da terra (1979), os descendentes dos mercadores de escravizados, dos senhores de ontem não têm, hoje, de assumir culpa pelas desumanidades provocadas por seus antepassados. No entanto, têm eles a responsabilidade moral e política de combater o racismo, as discriminações e juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros, construir relações raciais, sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto seres humanos, cidadãos. As políticas de ação afirmativa, portanto, constituem-se numa demanda legítima para que todo cidadão negro seja reconhecido na sua condição de igualdade universal e, por isso, tenha acesso aos bens econômicos, políticos e acadêmicos da sociedade brasileira. Neste sentido é que se requer que a igualdade seja pensada não somente como uma igualdade abstrata, mas como uma igualdade substantiva. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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