sábado, 20 de junho de 2015

TEMPEROS DO TEMPO


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Carla Andrade​, talentosa poeta mineira, é autora do livro Artesanato de perguntas (2013). Um poema, em especial, motivou nossa reflexão sobre os temperos do tempo. Eis os versos reunidos sob o título “Arquitetura do deserto”: “Tempo,/flanela das remelas/dos dias./Tempo, escavadeira de/esperanças./Tempo, bailarina no/deserto./Leve embora suas pernas oleosas/para onde não haja as mãos da/saudade”. A consciência da finitude da vida é certamente a principal razão da angústia que afeta o Homem, na sua condição de ser pensante e capaz de fazer projeções sobre o futuro. No melhor dos casos, o sofrimento pode ser mitigado pela atitude que o Homem tenha diante do mundo, atitude que deve ser inspirada no Amor, no sentido mais amplo do termo: amor aos semelhantes, amor à natureza e, por certo, ao conhecimento. A finitude humana faz do tempo um fator decisivo para percepção que o Homem tem de sua situação no mundo. Enquanto se tem “reverência pela vida”, é possível assistir à passagem do tempo sem maior sofrimento. 

O saudoso ator Antônio Abujamra (1932-2015), com ironia corrosiva, costumava dizer que “a vida é uma causa perdida”. A respeito, doçura se encontra nas palavras do mestre Rubem Alves (1933-2014), em O retorno e terno (1992): “Mas, o que é a vida? Vida são olhos que saúdam as madrugadas, acariciam as noites, acolhem sorrisos; ouvidos que recebem o barulho dos ventos, ouvem gemidos de dor, escutam palavras de amor; bocas que experimentam o deleite dos frutos e dos beijos e que recitam poemas; narizes que sentem o cheiro da maresia, da comida que se cozinha no fogão e dos corpos suados. Pernas que andam pelos bosques e levam mensagens a lugares distantes; braços que plantam jardins, e que se estendem para os abraços e para as lutas. A vida é um poema enorme, uma explosão de gestos e de sentidos espalhados pelo espaço. Mas como tudo o que é humano, a vida também cansaço que anseia pelo sono”. É preciso reaprender a sabedoria sagrada: se há um tempo de nascer, há também um tempo de morrer. Nestas modalidades de tempo se aplicam as noções de ordem (sucessão, simultaneidade), duração e direção, que recobrem relações variáveis entre acontecimentos, ora com apoio nos estados do mundo físico, ora nos estados vividos, ora na enunciação linguística. 

Um dos textos mais conhecidos a respeito do tempo é o de Santo Agostinho, em Confissões, escrito por volta do ano 386 da era cristã. Ao interrogar-se a respeito da existência de tempos passados, presentes e futuros, ele conclui que “é impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das coisas presentes e presente das coisas futuras”. O passado não existiria porque haveria se transformado de ser em não-ser. O futuro, que ainda não é, ao vir a ser, rapidamente passaria a não ser mais, por ter passado. Se passado e futuro não existem de fato, como medi-los? Não se mede o que não existe, pensa Santo Agostinho. O que se sabe sobre o antes e o depois é uma impressão que a sucessão de acontecimentos deixa gravada na alma. “Porém a sua imagem [de alguma coisa do passado], quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória”. Assim, Santo Agostinho propõe a existência de um tempo psicológico, baseado na duração interior de imagens que se sucedem na alma. Tendo o tempo um elemento transitório (de sucessão) e um permanente (de duração), a consciência os apreende e elabora como localização (espaço) e anterioridade.

A poética de Carla Andrade sugere que o tempo se configura como dança (“bailarina no deserto”) capaz de embalar e abalar a condição humana, segundo o ritmo ditado pelo despertar (“flanela das remelas dos dias”) e pelo cessar (“escavadeira de esperanças”) em torno das experiências referentes à dinâmica do viver. A invenção do tempo engendra algumas questões que perpassam o bojo da existência humana e sua finitude, uma vez que existir, para a realidade humana, é temporalizar-se. Ao inscrever-se enquanto ser humano, enquanto existência, o indivíduo é registrado em uma categoria temporal, na qual a sua condição de ser finito é, por assim dizer, decretada por essa entidade infinita chamada tempo. Muitas vezes concebido como algo exterior ao homem, de existência própria e permanente, o tempo é extensão e criação da realidade humana. Tal criação, aliás, surge para lidar com a contradição ontológica do homem, que é a tensão entre a sua permanência e a transitoriedade no mundo, seu poder e sua impotência em face dessa condição de finitude a que está submetido. A invenção do tempo nasce não somente para ordenar as ações humanas, mas também como tentativa de negar a morte, de superar Chronos, representado por um ancião que trazia consigo uma foice que ceifava vidas.

Interessa-nos de perto compreender o desejo do eu-poético diante do tempo: “Leve embora suas pernas oleosas/para onde não haja as mãos da/saudade”. A contemplação poética da finitude humana feita por Carla Andrade nos faz pensar sobre a linha tênue que separa saudade de nostalgia. A nostalgia não é a saturação memorial e memorável do passado, como na tradição da saudade, mas antes a experiência imprescritível da perda. Nostalgia é saber o que se perdeu e, sobretudo, que se perdeu. Nostalgia é saudade do que foi vivido. Parece que a voz poética, destacada por Carla Andrade, quer escapar da melancolia, dessa saudade do que não foi vivido ou, para ficarmos com Victor Hugo, dessa "felicidade de estar triste".  


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.



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