domingo, 14 de junho de 2015

A CURA DE UMA MULHER ENFERMA


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


“A fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva à contemplação da verdade”, escreveu o Papa João Paulo II, na Carta Encíclica Fides et Ratio (1998). Sobre a mesma temática, Gilberto Gil, com incrível saber poético de síntese, lapidou estes versos, em Minha ideologia, minha religião (1985): “Minha ideologia é o nascer de cada dia/E minha religião é a luz na escuridão”. Particularmente, muito me toca a noção de fé cantada por Gil enquanto poética do sagrado cotidiano. Contemplando o “humano, demasiadamente humano”, o músico baiano promove a caminhada subjetiva pela fé, enquanto mistério encantado que zela, com singeleza, pela propriedade substantiva e plena da interioridade. Em Esotérico (1982), o tropicalista zen ganha a cena performática da elevação incorporada dinamicamente pelo protagonismo humano:

“Não adianta nem me abandonar/Porque mistério sempre há de pintar por aí/Pessoas até muito mais vão lhe amar/Até muito mais difíceis que eu pra você/Que eu, que dois, que dez, que dez milhões/Todos iguais/Até que nem tanto esotérico assim/Se eu sou algo incompreensível/Meu Deus é mais/Mistério sempre há de pintar por aí/Não adianta nem me abandonar/Nem ficar tão apaixonada, que nada!/Que não sabe nadar/Que morre afogada por mim”. Nesta canção em particular, existe o empenho poético de transpor a ideia do mistério divino, místico-religioso, para o campo do amor terreno. Humaniza-se e desmistifica-se a categorização do esotérico, colocando-o como agente inerente a nossa natureza, à complexidade de nosso afeto. 

A fé, para Gilberto Gil, se encontra no terreno do livre-arbítrio, isto é, da vontade espontânea do ser humano em adentrar no terreiro do divino para acionar o autoconhecimento em ligação direta com a ancestralidade fundacional. É o amor próprio que move montanhas, espalhando afeto mútuo e respeitoso por onde passa. Filosoficamente, o artista propõe uma teologia menos doutrinária e mais participativa na compreensão dos dilemas humanos, sem cobrar do indivíduo a perfeição tão proclamada como virtude exclusivamente divina. Na canção Se eu quiser falar com Deus (1981), a voz poética, assim, se revela: 

“Se eu quiser falar com Deus/Tenho que ficar a sós/Tenho que apagar a luz/Tenho que calar a voz/Tenho que encontrar a paz/Tenho que folgar os nós/Dos sapatos, da gravata/Dos desejos, dos receios/Tenho que esquecer a data/Tenho que perder a conta/Tenho que ter mãos vazias/Ter a alma e o corpo nus/Se eu quiser falar com Deus/Tenho que aceitar a dor/Tenho que comer o pão/Que o diabo amassou/Tenho que virar um cão/Tenho que lamber o chão/Dos palácios, dos castelos/Suntuosos do meu sonho/Tenho que me ver tristonho/Tenho que me ver tristonho/Tenho que me achar medonho/E apesar de um mal tamanho/Alegrar meu coração/Se eu quiser falar com Deus/Tenho que me aventurar/Tenho que subir aos céus/Sem cordas pra segurar/Tenho que dizer adeus/Dar as costas, caminhar/Decidido, pela estrada/Que ao findar vai dar em nada/ Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada /Nada, nada, nada, nada/Do que eu pensava encontrar”.

Projeta-se nesta música a configuração do Deus desconhecido racionalmente, como virtude da fé que propicia ao indivíduo a confiança absoluta no imponderável que rege a órbita existencial da espécie humana. Gil não se debruça necessariamente sobre um Deus nítido, com um perfil claro, definido. O vazio de Deus entra em cena para prestigiar o pleno humano como milagre da criação: “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim” (Jo 14:6), como disse Jesus. Admiráveis os versículos bíblicos que discorrem sobre a autonomia do sujeito. Após dedicar cuidados a uma pessoa com deficiência física, em Cafarnaum, Jesus, diante de escribas descrentes, adverte: “Por que cogitais o mal no vosso coração? Pois qual é mais fácil? Dizer: Estão perdoados os teus pecados, ou dizer: Levanta-te e anda?” (Mt 9.4-5). A fé como busca esperançosa pela saúde também ganha destaque bíblico, com a narrativa a respeito da cura de uma mulher doente. Ela, com hemorragia, toca a veste de Jesus, ciente do seu poder de cura. Ele, reconhecendo a confiança incondicional da enferma no tratamento, elogia a atitude da mulher: “Filha, a tua fé te salvou, vai-te em paz e fica livre do teu mal” (Mc 5.34). Uma divagação, com toda a licença poética, nos permite indicar como trilha sonora para essa história de superação a música Andar com fé (1982), de Gilberto Gil:

“Andá com fé eu vou/Que a fé não costuma faiá/Andá com fé eu vou/Que a fé não costuma faiá/Que a fé tá na mulher/A fé tá na cobra coral/Ô-ô/Num pedaço de pão/A fé tá na maré/Na lâmina de um punhal/ Ô-ô/Na luz, na escuridão/[...]/A fé tá na manhã/A fé tá no anoitecer/Ô-ô/No calor do verão/A fé tá viva e sã/A fé tá viva e sã/A fé também tá pra morrer/Ô-ô/Triste na solidão/[...]/Certo ou errado até/A fé vai onde quer que eu vá/Ô-ô/A pé ou de avião/Mesmo a quem não tem fé/A fé costuma acompanhar/Ô-ô/Pelo sim, pelo não”. A fé instruída, nesse sentido, ajuda a articular a “consciência autocurativa” como harmonização. A psiquiatra Maria Henriqueta Camarotti, no livro Consciência autocurativa (2015), delineia sete passos para o trabalho da autocura: 1) conhecer (assumir a situação e ampliar seu conhecimento sobre ela); 2) aceitar (aceitar sua doença e vê-la como sua responsabilidade e oportunidade); 3) conectar-se (voltar-se para se mesmo e possibilitar a sua conexão com o Universo); 4) potencializar a cura (desobstruir, limpar, tirar o lixo no qual esteja envolto seus receptores de energia); 5) transformar-se/resiliência (a partir de sua dor e sofrimento, transformar a sua vida mais plena e profunda); 6) agradecer (jamais autovitimar-se, pelo contrário, agradecer o despertar que a doença lhe proporcionou); 7) disseminar (transmitir o aprendizado e compartilhar sua experiência).


* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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