sábado, 13 de junho de 2015

HOMENS DE CRACHÁ

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Burocracia pode ser entendida como sendo um sistema que busca organizar, de forma estável e duradoura, a cooperação de um grande número de indivíduos, cada qual detendo uma função especializada. Separa-se a esfera pessoal, privada e familiar da esfera do trabalho, visto como esfera pública de atuação do indivíduo. Nas sociedades tradicionais, normalmente a esfera familiar e a esfera do trabalho se confundiam, dado o caráter pessoal das relações. Na sociedade industrial há uma ruptura destes padrões. 

Os estudos do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) se fizeram fundamentais para a formação e consolidação da Teoria da Burocracia na Administração, segundo a qual destaca-se a forma organizacional, que se baseia na racionalidade, tendo em vista à adequação dos meios aos objetivos, com a finalidade de garantir a máxima eficiência possível no alcance das realizações pretendidas. A obra de Weber centraliza-se na defesa da racionalidade instrumental, uma vez que ela se comporta, na visão do sociólogo, como uma equação dinâmica entre meios e fins. O tipo ideal de burocracia, portanto, referia-se a um sistema coordenado pela razão instrumental que procurava em torno dela organizar de forma estável (invariável) e duradoura (constante) a cooperação humana (equipe de trabalho) para o atingimento de objetivos explícitos e formalizados. 

Convém salientar, contudo, que a burocracia se sustentou sob o arrimo da eficiência, cujo objetivo era corrigir o desperdício de até então. Pressupôs-se que os vários papéis bem definidos e as tarefas especializadas eram suficientes para se garantir a estabilidade. As estruturas burocráticas se sustentavam com ênfase nas normas, nas leis e nos regulamentos inflexíveis, considerando também a especialização, a hierarquização e a impessoalidade nas relações. As disfunções da burocracia residem basicamente no fato de que a burocracia não leva em conta a chamada organização informal, que existe fatalmente em qualquer tipo de instituição, nem se preocupa com a variabilidade humana (diferenças individuais entre as pessoas) que necessariamente introduz variações no desempenho das atividades organizacionais.

Estas disfunções, por sua vez, surgiriam a partir do comportamento que a burocracia exige do burocrata. Robert Merton, em Sociologia: teoria e estrutura (1970), oferece valioso estudo ao ressaltar os aspectos negativos da burocratização a partir de balizas conceituais importantes. Ao dialogar inteligentemente com as noções de “incapacidade treinada”, “psicose organizacional” e “deformação profissional”, sugeridas, respectivamente, por Veblen, Dewey e Warnotte, Merton, por sua vez, destaca “fontes estruturais de superconformidade”, segundo as quais haveria algum exagero de adequar o comportamento do burocrata para cumprir as normas prescritas para seu cargo. 

O comportamento burocrático faria disfuncionar a burocracia, tornando-a lenta em seus procedimentos, excessivamente formal, resistente às mudanças. O exagerado apego às normas distanciaria o comportamento burocrático dos fins organizacionais trazendo, por fim, a ineficiência. Cumprir normas é valor pessoal. Como consequência, surgiria, segundo Merton, o conservantismo e o tecnicismo. O burocrata, longe de ser estimulado ao comportamento inovador, é estimulado à segurança e ao conforto oferecidos pela obediência cega aos regulamentos. Poeticamente, Carla Andrade, em Artesanato de perguntas (2013), oferece painel comportamental importante sobre o fenômeno do mal-estar na burocratização. Refiro-me, especificamente, ao poema “Homens de crachá”: 

“Não gosto dos homens de crachá./Crachá em cima da gravata./Gosto de observá-los mesmo assim./Eles sempre riem sem consentimento do corpo/em reuniões de segunda a sexta no/calendário do tempo vesgo das multinacionais./São levados a encarnar fantasmas com cifras nos olhos./Adestram palavras engomadas que colam/nos pensamentos dos/outros homens de crachá./Lavrar a ata. E a alma? Fusão, endomarketing e estratégia./- Quero dizer só mais uma coisa.../E não diz nada. Para se dizer é preciso falar em silêncio./Acho que me esqueci de um detalhe..../Não há detalhes. Quando o que se fala deve quebrar o gelo./Esquentar o ego e máquinas.../Tive uma boa ideia enquanto/eles, os homens de crachá, falavam/da produção em queda vertiginosa./Tropecei numa nuvem rasteira e esqueci./Esqueci. Quer coisa mais humana?”. 

Considerando os versos em questão, as lideranças autocráticas, além do pragmatismo robótico e da comunicação protocolar, despontam como disfunções burocráticas gravíssimas. No país do “Cara-Crachá”, Eu sou a confiança, o Outro é o engano; Eu sou a norma, o Outro é o desvio. Proteção para alguns, proibição para muitos – o crachá simboliza a permissão para ingressar na organização blindada, sendo a ausência deste documento de identificação um motivo e tanto para a pessoa receber um veto ululante. Resquícios também da preconceituosa cultura da “boa aparência”. Justificando o desapreço da voz poética dirigido aos “homens de crachá”, encontra-se, como pano de fundo, uma crítica ao desajuste comportamental crônico espalhado no modus operandi brasileiro, expresso pelos seguintes dizeres: “você sabe com quem está falando?”. Indagação oriunda do personalismo autoritário, sendo este muito caro aos estudos propostos por Roberto DaMatta, no livro Carnavais, malandros e heróis (1981). Para o antropólogo, o “você sabe...” põe a nu um traço que o brasileiro não gosta e prefere esconder. Afinal, o que viria à tona aqui não seria mais a nossa celebrada e carnavalizada cordialidade, mas, ao contrário, o verdadeiro e profundo “esqueleto hierarquizante de nossa sociedade”. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

Nenhum comentário:

Postar um comentário