domingo, 27 de novembro de 2016

EDUCAÇÃO E CIÊNCIA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

O conceito de educação está precisamente relacionado com o desenvolvimento, no sentido de cada um de nós se tornar melhor pessoa, e é revestido de uma forte componente ética e moral. Este assume também um sentido mais pleno, na medida em que estamos conscientes da nossa condição de seres perpetuamente inacabados, o que abre caminho a que o ser humano possa progredir na sua humanidade, e por isso se eduque. Os gregos usavam a palavra nous para designar a compreensão. Uma pessoa que tem o nous é a que compreende o que está a acontecer e a que faz uso do pensamento racional. Aristóteles distingue o nous teorético, aplicado aos primeiros princípios da ciência demonstrativa, a qual trata das verdades necessárias, e o nous prático que percebe as características relevantes de casos particulares, o qual trata de verdades contingentes.

O conhecimento é o somatório das informações que adquirimos, é a base daquilo que chamamos de cultura. Já a sabedoria, por outro lado, é o reflexo da vivência, na prática, quer pela experimentação, quer pela observação, da utilização dos conhecimentos previamente adquiridos. “A sabedoria é a procura de um método de vida e de ação, a construção de si próprio pela concretização das virtudes: a justiça, a prudência, a força e a temperança; a fé, a esperança e a caridade, dando acesso às três virtudes segundo Platão: o belo, o bem e o verdadeiro. Mas o sábio é também o acordado: aquele que se espanta com tudo, que desfruta tudo, aqui e agora. Para isso, é necessário dominar o tempo: encontrá-lo, pará-lo, saboreá-lo” – salienta o filósofo francês Jean Guitton, em O Livro da Sabedoria e das Virtudes Reencontradas (1999).

O questionamento é algo próprio da condição humana. Durante muitos períodos e ainda hoje o ser humano é direcionado para tudo que é externo ao eu; no entanto, a sabedoria perseguida por longos períodos está intrínseca à condição humana, fazendo-se presente no ser. Sócrates extrai do jovem geômetra Teeteto três definições de conhecimento (epistemologia): (1) a episteme como sensação; (2) a episteme como opinião verdadeira; e, (3) a episteme como opinião verdadeira acompanhada da explicação racional. Em torno destes apontamentos, Sócrates, interessado nas ciências, põe uma questão para o debate: “aprender não é tornar-se mais sábio acerca do que se aprende?”. Conhecimento traz informação, sabedoria traz transformação.

Assim abre Aristóteles uma de suas obras fundamentais, a Metafísica: “por natureza, todo homem deseja conhecer” (livro I, cap. 1). Em seguida traça a distinção entre três tipos de saber, ou talvez de etapas na busca do saber. Adaptando um pouco a terminologia, temos: (i) Conhecimento por experiência sensorial direta: restringe-se aos objetos e eventos individuais, e informa simplesmente acerca do que é. (ii) Conhecimento técnico: engloba leis gerais, mas dirige-se apenas à questão de como é. Basta, pelo menos num primeiro momento, para dirigir nossas ações. (iii) Conhecimento teórico: também de tipo geral, procura responder a questão de por que é. Esse é o domínio da ciência propriamente dita, no qual se investigam as “causas” e “princípios” dos fenômenos.

Curiosamente, foi apenas no século XX que houve um reconhecimento mais geral de que a obtenção de conhecimento universal e certo acerca dos processos naturais é um ideal que deve ser abandonado, pela inatingibilidade. Em A lógica da pesquisa científica (1955), Karl Popper sugeriu que entendêssemos o conhecimento científico não como episteme (que requer certeza), mas como doxa (opinião). O progresso da ciência seria, assim, o resultado de um processo constante de conjeturas e refutações, de substituição de hipóteses falseadas por hipóteses melhores e não falseadas, porém sempre falseáveis. Embora essa visão da ciência aparentemente rompa de forma radical com a noção original, há um elemento importante no ideal clássico que Popper procurou preservar e defender, mediante uma argumentação cerrada: o realismo. Essa posição filosófica é, em termos simples, a de que, embora falíveis, as teorias científicas devem ser entendidas como tentativas sérias, e cada vez melhores, de descrever uma realidade objetiva, ainda quando transcenda o nível dos fenômenos, ou seja, aquilo que é diretamente perceptível aos sentidos. O empreendimento científico continua, nessa perspectiva realista, dando vazão da melhor forma possível ao nosso arraigado desejo de compreender o mundo real, de descobrir como e por que funciona.

Em linhas gerais, a educação e a ciência estão relacionadas tanto na busca do desenvolvimento das potencialidades interiores do homem, cabendo ao educador apenas exteriorizá-las, como na revelação do conhecimento que o homem adquire através da experiência. Na visão dos pedagogos modernos, o processo educacional não reside apenas nas escolas, pois ela não é a única responsável pela educação. A educação tem uma dimensão maior do que propriamente ensinar e instruir, o que significa dizer que o processo educacional não se esgota com as etapas previstas na legislação. A Educação, em sentido amplo, representa tudo aquilo que pode ser feito para desenvolver o ser humano e, no sentido estrito, representa a instrução e o desenvolvimento de competências e habilidades.

Educar e ser educado é saber transitar entre os terrenos da mínima convergência e da máxima divergência. Quer ver um exemplo? Pedro Bandeira, em Gente de estimação (1996), lança questões instigantes a respeito do direito de propriedade: “Há homens que acham que um elefante pertence ao seu dono e ninguém tem nada com isso. Outros acham que um elefante não deve pertencer a ninguém. Acham que o elefante deve pertencer ao próprio elefante”. Quando estamos carecas de saber, evitamos questões cabeludas. Logo, elas que melhor representam o processo capaz de nos libertar de uma condição de ignorância.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.

CIÊNCIA, TECNOLOGIA E IRRESPONSABILIDADE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


É sabido que a expressão “Revolução Industrial” foi aplicada às inovações técnicas que alteraram os métodos de trabalho tradicionais e a partir das últimas décadas do século XVIII, propiciaram um grande enriquecimento econômico. A essência da Revolução Industrial, ocorrida primeiramente em solo inglês, assentou-se no princípio de que a mudança é a norma. Inventa-se algo e, em pouco tempo, uma nova técnica ou um novo instrumento mais eficiente torna o anterior obsoleto. A Revolução Industrial também promoveu a fábrica como importante local de trabalho; os capitalistas tornaram-se os detentores dos meios de produção (terra, equipamentos, máquinas); o trabalhador, contratado livremente, passou a receber salário, podendo se deslocar de um emprego para outro. A Revolução Industrial alterou profundamente os meios de produzir, estimulou e provocou a competição por mercados internos e externos, e além disso fez com que o trabalho humano passasse a ser combinado de forma sistemática às máquinas e inovações tecnológicas.

Entretanto, o carro-chefe dos tempos modernos não conduziu todos os homens ao paraíso, pois não conteve os efeitos deletérios do progresso material sobre a conduta moral. O ritmo urbano acelerado e as mudanças econômicas e políticas, bem como o desenvolvimento da ciência e da técnica, alimentaram a ideia de que a vida em sociedade é fruto do trabalho e da invenção humana. Quem, então, põe ordem no mundo? Não predomina mais a visão religiosa, e sim o entendimento de que os homens são responsáveis pelos rumos da sociedade. A necessária regulação em defesa de regras e condutas morais no campo econômico nasceu de uma realidade contestatória: vale tudo para ganhar dinheiro? Esmiuçando a questão, a Legião Urbana, na música “Fábrica” (1986), fez uma importante leitura do processo de industrialização a contrapelo:

“Nosso dia vai chegar/Teremos nossa vez/Não é pedir demais/Quero justiça/Quero trabalhar em paz/Não é muito o que lhe peço/Eu quero um trabalho honesto/Em vez de escravidão/Deve haver algum lugar/Onde o mais forte/Não consegue escravizar/Quem não tem chance/De onde vem a indiferença/Temperada a ferro e fogo?/Quem guarda os portões/Da fábrica?/O céu já foi azul/Mas agora é cinza/O que era verde aqui/Já não existe mais/Quem me dera acreditar/Que não acontece nada/De tanto brincar com fogo/Que venha o fogo então/Esse ar deixou minha vista cansada/Nada demais”.

Faltou à Revolução Industrial a revolução do discernimento, pois “aqueles que se entregam à pratica sem ciência são como o navegador que embarca em um navio sem leme sem bússola”, conforme advertência feita, desde o Alto Renascimento, por Leonardo da Vinci. Em torno do conhecimento e da ciência, encontram-se a necessidade humana do saber, o fenômeno do poder, de dominação da realidade e, por certo, a liberdade do homem e suas limitações. Alfred North Whitehead, em seu livro A função da razão (1938), existe uma função prática, desveladora das formas e modos de transformação da existência humana “numa boa existência, e transformar uma boa existência numa existência melhor ainda”. Esta é a Razão Prática, que podemos relacionar à tecnologia. Outro aspecto da função da Razão coloca-se acima das tarefas práticas do mundo, busca uma compreensão da realidade e cumpre sua função quando o entendimento é alcançado. É a Razão especulativa “e o progresso que ela busca é sempre o progresso de uma melhor compreensão”. Podemos apontar aqui o caminho da Ciência.

Infelizmente, normal tem sido os políticos e estadistas usarem as pesquisas da ciência e os avanços da tecnologia em projetos de dominação em vez de cooperação pela paz. Em 1938, o presidente Franklin Delano Roosevelt, autorizou o início de pesquisas sobre a liberação da energia do átomo de minerais radioativos. O físico Albert Einstein reuniu cientistas em torno desse projeto chamado Manhattan, desenvolvido em Alamogordo, Califórnia. Sempre foi dito a ele que o objetivo seria abrir uma nova fronteira na ciência. Em 1945, morto Roosevelt, o presidente Harry S. Truman autoriza o lançamento de bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, matando 300 mil japoneses naquele final dramático da II Guerra Mundial. Einstein calou-se, mas abandonou as pesquisas para dedicar-se a estudos de física e conferências sobre a paz. É sempre assim: a ciência pesquisa pensando na paz e no bem, mas os estadistas acabam usando os inventos em conflitos ou pressão estratégica e econômica sobre os mais fracos e crédulos.

Em Tempos Modernos (1936), Charles Chaplin destaca como o desenvolvimento alienado da tecnologia e da ciência estava desumanizando a humanidade. A primeira imagem é de um relógio: são quase seis da manhã. Depois dos créditos do filme, lemos na tela: “Tempos modernos. Uma história de indústria, de empreendimento individual – a humanidade em sua cruzada em busca da felicidade”. Em seguida, como se estivéssemos posicionados num ponto mais alto, vemos um rebanho de ovelhas andando. Entre várias ovelhas brancas, apenas uma negra. Rapidamente a imagem do rebanho é substituída por outra, também filmada de cima: operários apressados saem do metrô em direção à fábrica. Chegando lá, vários operários trabalhando em cadeia: é uma linha de montagem. Os movimentos dos homens são rápidos e repetitivos, ritmados e precisos, como se seus corpos também fosse máquinas. Não sabemos o que eles estão produzindo – será que eles sabem? –, mas o certo é que não podem parar. Enquanto os operários, com uma ferramenta em cada mão, encaixam parafusos ou apertam roscas de maneira mecânica sobre placas em uma esteira que corre à sua frente, não é possível conversar, olhar para o lado ou deixar o pensamento vagar. A máquina enguiça, mas “os sonhos não envelhecem”, como diria Márcio Borges, o que ressalta o diferencial humano para além do apito da fábrica.

* Professor da Faculdade JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O ENCANTO DA REVOLUÇÃO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

A Revolução Cubana de 1959 derrubou um ditador corrupto, Fulgêncio Batista, que representava os interesses de uma elite local associada aos Estados Unidos. Foi, portanto, uma revolução nacionalista contra um esquema de poder clássico – o da associação do império com elites locais dependentes. Mas ocorreu no auge da Guerra Fria e, dada a rejeição radical que teve do governo americano, inconformado com a nacionalização de empresas, não demorou muito para se tornar uma revolução comunista. A Revolução Cubana foi bem-sucedida em construir uma sociedade bastante igualitária, que incluiu a universalização com boa qualidade dos cuidados de saúde e da educação, mas não logrou alcançar a fase da industrialização complexa que é necessária para o desenvolvimento econômico rápido – para o alcançamento. Ao pensar no povo cubano e em sua grande luta, não posso deixar de afirmar minha crença no desenvolvimento humano, que, porém, só será pleno se, além de democrático, for socialista; se tiver no horizonte, além da liberdade, uma suprema igualdade de condições de vida.

Para o sociólogo Florestan Fernandes, em sua obra Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana (1979), por conta desse grande acontecimento histórico, “a América Latina tem uma alternativa histórica, essa alternativa não está no capitalismo, ela não é aberta pela democracia burguesa, não é aberta pelo imperialismo, não é aberta pela internacionalização da economia capitalista, ela é aberta exatamente pelo socialismo. A via pela qual Cuba chegou ao socialismo é muito peculiar. Eu não diria, como Che, que nesse sentido a experiência de Cuba vai ser paradigmática, vai se repetir. Agora, essa revolução sim, porque esses povos não têm alternativa”. Florestan Fernandes também põe em destaque a participação de Fidel Castro no processo revolucionário cubano. E enfatiza também Che Guevara, um outro fundamental representante do espírito revolucionário. Ambos, por conseguinte, constituíram os pilares do processo que levou Cuba a romper com o poder que vem de fora: o espanhol colonizador e o norte-americano imperialista.

Foi em nome das demandas da massa de desamparados, famintos e explorados historicamente que o governo revolucionário priorizou agudas transformações sociais no campo e na cidade. Para aprofundar o processo revolucionário, fez-se urgente superar as relações mercantilizadas do passado e enfrentar as pressões e interesses contrarrevolucionários burgueses. Tal superação é viabilizada pelas Leis de Reforma Agrária, a partir de maio de 1959 e em outubro de 1963, com a estatização das propriedades rurais e a ampliação de mecanismos de promoção de qualidade de vida, no campo e na cidade. As novas orientações do planejamento central revolucionário priorizaram a industrialização do campo, o incremento das atividades de mineração e a urbanização do campo, dentre outras iniciativas. O importante era romper com o modelo de crescimento desigual presente na história cubana. Assim também foram priorizadas as políticas públicas de saúde, alimentação/nutrição e habitação, com especial atenção à educação e às políticas de geração de postos de trabalho. O analfabetismo foi praticamente erradicado em Cuba com a exitosa Campanha de Alfabetização do ano de 1961, em todo o país.

Seguindo os princípios do herói cubano José Martí, predominaria o modelo que articula o estudo com o trabalho. Graças aos esforços e cooperação, a população cubana destaca-se pelo elevado nível de escolaridade e de usufruto de serviços de saúde pautados sob a lógica da prevenção e do direito universal, com a promoção de iniciativas como o Programa de Médico da Família. Convém ressaltar que o modelo de saúde cubano nasceu ainda nos tempos da guerrilha, na Sierra Maestra, quando os camponeses eram atendidos por Che Guevara e seus companheiros profissionais de saúde. Como presidente de Cuba, Fidel Castro foi se agigantando como uma espécie de herói latino-americano: tanto como líder de revolução, quanto como líder da resistência às forças dos Estados Unidos, e sobretudo como líder de um governo comprometido com a justiça social, sem perder o vigor transformador. Não à toa Fidel Castro advertiu que “uma revolução não é um mar de rosas. É uma luta de morte entre o futuro e o passado”.

Revolucionário para alguns, tirano para outros, Fidel Castro, destemido e carismático, gabava-se por ter um “colete moral” que o protegia sempre dos ataques dos oponentes, em especial, da maior potência do mundo que não conseguiu apequenar a ilha da rebeldia, mesmo impondo a ela uma série de embargos econômicos. Reconhecendo a importância de Fidel Castro como liderança revolucionária, o renomado historiador Eric Hobsbawn, em O breve século XX: 1914-1991, chegou a ressaltar que “provavelmente nenhum líder no breve século XX, uma era cheia de figuras carismáticas em sacadas e diante de microfones, idolatradas pelas massas, teve menos ouvintes céticos ou hostis que esse homem grande, barbudo, impontual, de uniforme de combate amassado, que falava horas seguidas, partilhando seus pensamentos um tanto assistemáticos com as multidões atentas e crédulas (incluindo este escritor). Uma vez na vida, a revolução foi sentida como uma lua-de-mel coletiva”.

A morte de Fidel Castro, aos 90 anos, acontece no momento que em Cuba, o que se procura é uma alternativa que, por um lado, não recaia numa saída neoliberal, de esvaziamento do poder do Estado e de autonomia do mercado, nem, por outro, na de um socialismo estadolátrico no qual o Estado se apresenta como único espaço no qual qualquer relação social pode ser aceita. O encanto da revolução não se desmancha no ar. Sai fortalecido como uma experiência vivida e refletida por seres humanos, que não são apenas massa de manobra de um Estado personificado em uma liderança carismática, mas, sim, agentes do seu próprio destino.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

A UNIVERSIDADE NECESSÁRIA


Estudos sobre a formação da sociedade brasileira constatam como as dinâmicas estruturais da economia, da política e da legislação produziram ilhas de abastados e de privilegiados e uma miríade de desprovidos. Não se enxergavam pessoas, mas o seu valor segundo o quanto elas podiam produzir e consumir. Com a República, nós nos tornamos cidadãos sem os direitos republicanos e com a imensa tarefa de conquistar os direitos sociais. Foi assim na educação básica e na superior, visto que as elites nacionais criaram estruturas e instituições no país, voltadas para a formação dos seus bacharéis. Esta situação de formar bacharéis e de omitir os direitos e sociais da população estruturou a formação da sociedade brasileira. O não reconhecimento dos bens públicos, as práticas neopatrimoniais e a apropriação dos bens materiais e imateriais por tradição familiar são elementos substanciais enraizados na trajetória da educação do país.

Foi contrariando esse contexto que Anísio Teixeira (1900-1971) se fez firme na defesa da escola pública gratuita e laica, defendendo que educação não é privilégio, mas que todos têm direito a ela. Darcy Ribeiro (1920-1995) também foi decisivo ao se empenhar nos estudos do processo civilizatório que revelaram as circunstâncias culturais constituintes da identidade do povo brasileiro. A esses intelectuais se juntaram Oscar Niemeyer (1907-2012) e Cyro dos Anjos (1906-1994) para projetar e implementar a Universidade de Brasília (UnB). Conduzida pelos pensadores citados, a comissão, instituída pelo então presidente da República, Juscelino Kubistscheck (1902-1976), por meio da Lei nº. 3.998, de 15/12/1961, viabilizou a concretização desse projeto de educação audacioso, no contexto de transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília.

Segundo seu Plano Diretor (FUB, 1962), a UnB, chamada por Darcy Ribeiro de “universidade necessária”, tem como compromissos: a) formar cidadãos responsáveis, empenhados na procura de soluções democráticas para os problemas com que se defronta o povo brasileiro na luta pelo desenvolvimento; b) preparar especialistas altamente qualificados em todos os ramos do saber, capazes de promover o progresso social pela aplicação dos recursos da técnica e da ciência; c) reunir e formar cientistas, pesquisadores e artistas e lhes assegurar os necessários meios materiais e as indispensáveis condições de autonomia e de liberdade para se devotarem à ampliação do conhecimento e à sua aplicação a serviço do homem.

O que vem, entretanto, impedindo que a universidade e a escola caminhem juntas no sentido de alavancar planos diretores dessa magnitude, em matéria de ensino superior? Em um milênio de incertezas, como o que começamos a viver, nunca foi tão importante a presença de um professor bem formado no seu campo de estudos, em termos dos valores éticos e humanos que dão sentido às práticas educativas e com visão interdisciplinar das ciências pedagógicas. A Licenciatura não é desenvolvida na perspectiva de formar o licenciado, ou seja, o professor, mas o enfoque predominante é, ainda, a formação do bacharel. Como no Brasil a opção histórica foi a de delegar às universidades, centros e faculdades a missão de preparar o magistério, cumpre encontrar alternativas para que esse objetivo se cumpra em sua plenitude, malgrado estarmos, ainda, distante desse avanço.

Ainda sobre o tema em questão, outro grave problema se deu porque o sucesso em valorizar a pesquisa ocorreu à custa de um relativo divórcio entre a formação dos professores e as universidades, comprometendo uma das razões de sua criação no Brasil. O desprestígio social do professor da educação básica contradiz qualquer discurso sobre a importância da educação. Ademais, décadas de afastamento entre a universidade e a escola básica põe em dúvida a capacidade de uma em formar quem vai trabalhar na outra. Daí a importância de uma formação na escola, como também é importante para o exercício da profissão médica a residência num hospital credenciado. Assim, vem se perdendo a finalidade principal do ensino que, como estabelece o artigo 205 da Constituição, deve visar ‘‘o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho’’. O professor Miguel Reale, jurista, filósofo e ex-reitor da USP, fixa três finalidades do ensino: a) formação da personalidade do educando, tanto do ponto de vista físico quanto ético; b) dar-lhe consciência de seu papel na sociedade para o exercício da cidadania; c) ministrar-lhe os ensinamentos exigidos e facilitar o acesso aos postos de trabalho, num sistema de produção cada vez mais automatizado.

Pensar a função social da educação implica problematizar a escola que temos na tentativa de construirmos a escola que queremos. Para dar sustentação às contínuas evoluções, a escola precisa ressaltar um ensino que crie conexão entre o que o aluno aprende nela e o que ele faz fora dela, conexão entre o ensino formal e o mundo do trabalho, entre o conhecimento e a vida prática do estudante. Os conteúdos curriculares devem estabelecer a relação entre teoria e prática, através de situações próximas da realidade do aluno, permitindo que os conhecimentos adquiridos melhorem sua atuação na vida cotidiana. É preciso englobar também a compreensão do conhecimento enquanto bem social que só pode ser produzido, criticado e transmitido em benefício da sociedade em instituições plurais e livres que desfrutem de plena autonomia e liberdade acadêmica. Desse modo, a universidade não pode ser reduzida aos valores econômicos, pois há a necessidade de perseguir o sentido ético e social do conhecimento e da formação, componentes fundamentais da ideia de educação integral.


* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

FERNANDO BRANT, CRÍTICO DA IMPRENSA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Toda atividade crítica é logo entendida no sentido de corrigir, constatar e suprir erros e deficiências. Muito além da idéia de criticar para progredir, o media criticism nasceu com o sentido de resgatar a função social dos meios de comunicação, que muitas vezes é esmagada por deslizes éticos cometidos ilimitadamente pelos media. Nesse contexto, surge a essência da expressão media criticism – ou crítica da mídia –, onde a existência desses críticos é importante quando o direito à informação não é direcionado em seus múltiplos sentidos: os veículos informando ao público e o público se informando sobre os veículos. 

No texto "Media Criticism: um espaço mal-dito" (1982), Alberto Dines argumenta que o crítico deve abnegar um espaço de destaque na profissão para que sua vigilância não esteja presa aos limites das organizações: "Ridicularizaram, criticaram, desmascararam jornais, jornalistas ou desempenhos jornalísticos que em sua ótica estava errados. Mas não feriam a estrutura nem o processo como um todo [...]. O media critic não pode focalizar desempenhos ou comportamentos sem enquadrar a estrutura que cria, estimula e orienta tais desempenhos ou comportamentos [...]. O media critic que bombardeia áreas sensíveis de determinado veículo ganha fatalmente o estigma de maldito pelo resto da instituição [...]. O media critic deve capacitar-se de que é um maldito, um renunciante, abrindo mão de um lugar ao sol no establishment. Caso contrário, suas posições serão mal-ditas, isto é, levianas".

A imprensa é, portanto, um importante elemento de mediação. Isto porque é, ao mesmo tempo, uma força política da sociedade, como também uma interlocução com o poder na função de fiscalizar a prática deste, alertando a população, a quem idealmente esta serve, dos abusos cometidos e privilégios praticados que não em benefício da sociedade. Logo, é intrínseco a ela reconhecer as vozes do público e dar a ele espaço para exercer sua cidadania. Porém, se a imprensa – que tem como principais funções intermediar as relações de poder, fiscalizar as forças da sociedade e informar os cidadãos de forma independente – está comprometida com os interesses privados, que órgão haveria de regular o exercício da própria imprensa para que o seu fim fosse, efetivamente, alcançado, e garantisse ao leitor seu papel também de cidadão?

Se de um lado a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt defendia que “a comunicação cuida da assimilação dos homens, isolando-os” e “todos os meios de comunicação altamente desenvolvidos só servem para fortalecer as barreiras que separam entre si os seres humanos”, Jürgen Habermas rompe com essa perspectiva e propõe o conceito de “ação comunicativa”. Ele defende, como alternativa, a “fabricação de opiniões”, a reinvenção do espaço público no fazer comunicação com a extensão da participação da sociedade, numa “razão comunicativa, de natureza intersubjetiva, que se constitui no curso da interação social entre os homens”. A razão comunicativa de Habermas retira a mídia da sua condição exclusivamente de manipulação e emancipa o receptor da condição de alienado, abrindo a questão às mediações e reinventando o sujeito.

As teorias da recepção inserem no debate as condições sociais de produção de sentido, tendo a “informação como processo de comportamento coletivo e os conflitos de interesse em jogo na luta por produzir, acumular ou veicular informações e, por conseguinte, os problemas da desinformação e do controle”. Entra em jogo a perspectiva de um receptor produtor de sentido. Insere-se o conceito de criticidade por parte do sujeito e de elementos mediadores, de ressignificação da cultura e do indivíduo. Dá-se lugar às relações constituídas nas relações, sendo o espaço dos meios de comunicação elemento estratégico num processo de negociação de sentidos.

Nesse sentido, a responsabilidade das mídias é enorme, mas, como estão muitas vezes comprometidas com interesses e valores pessoais – como a maioria está organizada em conglomerados de empresas privadas – escapam à defesa dos direitos dos cidadãos na comunicação e utilizam a sua força para abastecer sistemas de significação e representação cultural, em detrimento do exercício real da cidadania e da democracia. A respeito, o saudoso compositor e cronista mineiro, Fernando Brant (1946-2015) se apresentou arrojadamente como crítico da mídia, no texto “O lixo”, publicado no jornal Estado de Minas, de 24/02/2010: 

“Pensando no lixo, entro no mundo do lixo. Os detritos mais asquerosos estão nos jornais de todos os dias, que escancaram injustiça, violência, corrupção, mentiras, preconceitos. A desumanidade impera nas páginas. Ou então, essas se calam diante dos poderosos, aceitando passivamente a mentira, a ignorância e idiotia de mitos fabricados para enganar a maioria. O que vale para a imprensa escrita se multiplica quando assistimos aos meios audiovisuais. E as opiniões descabeladas que circulam pela rede digital? Será que o país foi sempre assim, desmiolado e sem qualidades, incapaz de pensar e produzir ideias, políticas, obras e espetáculos inteligentes?

É bom então que eu jogue ao lixo esses cadernos jornalísticos imprestáveis. E que emudeça o televisor, jogue fora o controle remoto, que nos oferece um circo de horrores e mau gosto. Parar de gastar o tempo de viver com o que não é essencial. Aproveitar o dia e a vida.

Não sei por onde anda meu companheiro de peladas de rua que, adolescente, encontrei trabalhando num caminhão de lixo. Pensando nele e nos profissionais da boa limpeza urbana, gostaria que houvesse, também, um serviço de coleta de porcarias culturais, políticas e sociais.

Enquanto esse sonho não se realiza, entro em meu refúgio e mergulho em leitura e releitura de Guimarães Rosa. Isso, sim, um luxo”.


* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

ESCOLA SEM PARTIDO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Uma escola sem partido está muito longe de uma educação democraticamente orientada. A educação moral pode ser um âmbito de reflexo que ajude a: detectar e criticar os aspectos injustos da realidade cotidiana e das normas sociais vigentes; construir formas de vida mais justas, tanto nos âmbitos interpessoais como nos coletivos; elaborar autônoma, racional e dialogicamente princípios de valor que ajudem a julgar criticamente a realidade; conseguir que os jovens façam seus aqueles tipos de comportamentos coerentes com os princípios e normas que pessoalmente construíram; fazer com que adquiram também aquelas normas que a sociedade, de modo democrático e visando à justiça, lhes deu. Dito de outro modo, a educação moral quer colaborar com os educandos para facilitar o desenvolvimento e a formação de todas aquelas capacidades que intervêm no juízo e na ação moral.

As escolas devem ser tomadas como “comunidades democráticas”, onde sejam respeitadas a liberdade de expressão e a responsabilidade argumentativa. A disciplina escolar remete às pautas de convívio, esboçadas a partir das rotinas, das expectativas e dos valores característicos das relações escolares, os quais balizam o que fazemos e o que pensamos sobre o que fazemos no dia-a-dia. Uma espécie de norte e, ao mesmo tempo, de combustível das relações – ambos deflagradores dos laços de respeito e parceria entre alunado e agentes escolares. Daí a proposta do contrato pedagógico.

A população, em especial, deposita fé em escolas que incentivam a promoção da cidadania, a visão crítica da realidade e a construção da participação social. Viver democraticamente pressupõe o livre fluxo das ideias, independente de sua popularidade, que permite às pessoas estarem tão bem informadas quanto possível. Acredita também na capacidade individual e coletiva de as pessoas criarem condições de resolver problemas. Tais posturas exigem o uso da reflexão e da análise crítica para avaliar ideias, problemas e políticas. Em termos éticos, viver democraticamente demanda preocupação com o bem-estar dos outros e com o “bem comum”, além de preocupação com a dignidade e os diretos dos indíviduos e das minorias. Por essas razões, não poderá haver democracias sustentáveis se não contarmos em escolas orientadas para a defesa intransigente da liberdade, da dignidade, da justiça, do respeito mútuo e demais motivos edificantes.

Sistema aberto em interação com o meio, a escola não pode ficar imune às tensões e desequilíbrios da sociedade envolvente e, por isso, poderá ver-se a indisciplina que atualmente perturba a vida de muitas escolas como um reflexo dos conflitos e da violência que grassa na sociedade em geral. As desigualdades econômicas e sociais, a crise de valores e o conflito de gerações são alguns dos fatores que podem explicar os desequilíbrios que afetam tanto a vida social como a vida escolar. Daí o inegável fato de que a educação contemporânea tem produzido o domínio disciplinar-atitudinal em detrimento do âmbito propriamente pedagógico-intelectual.

Educar é tomar partido da autonomia na luta contra os mecanismos opressivos que tomam conta da sociedade. Lamentavelmente, nem sempre essa força consegue superar a força centrípeta do egoísmo e nem sempre a nação dispõe de uma força motora para o progresso. Além disto, quando a política não é capaz de mover a nação ao progresso, a sociedade fica para trás em pobreza, violência, desigualdade, desencanto. Face ao exposto, uma escola sem partido lava perigosamente as mãos e, assim, comete uma série de assassinatos, a começar pela corrosão do caráter intelectual e sensível. Fica a pergunta no ar – escola: adaptação ou transformação social? Fazendo-se de agentes da neutralidade ideológica, as vozes conservadores ignoram cinicamente o abismo que separa o Brasil real do Brasil fictício. A respeito, muito tem a colaborar as reflexões trazidas pelo jornalista Carlos Alexandre, no Correio Braziliense, de 7/6/2016: “A cada dia que passa, torna-se evidente que a miséria brasileira não é apenas um problema econômico. Nossa sociedade bárbara está desprovida de educação, tolerância, respeito, cidadania, igualdade. Na ausência do Estado, prevalece o poder das armas, do machismo, da corrupção, da intolerância, do obscurantismo”.

Conforme explica Olgadir Amancia, professora da UnB: “o Projeto Escola sem Partido apresentado no Congresso Nacional pelo deputado Izalci Lucas (PSDB/DF), assim como similares encaminhados em diferentes assembleias estaduais e municipais, representa um ataque à educação, ao pluralismo de ideias e à autonomia dos educadores. Usando o falso argumento da ideologização da educação, da partidarização da escola, objetiva amordaçar professores, obstruir a construção dialógica e crítica do conhecimento. Busca impedira a escola de cumprir o seu papel constitucional de formação com vistas ‘ao pleno desenvolvimento da pessoa’ e para ‘o exercício da cidadania’, como prevê o artigo 205 da Constituição Federal de 1988”.

Alguns retrocessos na defesa da neutralidade e no elogio da etiqueta social encontram-se entrelaçados neste tipo de escola distante do mérito questionador que a define radicalmente. Exemplo: “Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Contudo, a independência de pensamento crítico é uma meta fundamental da escola. E essa meta depende, sim, de professores que trabalham com independência.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.


ABRAPALAVRA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

De Fagner e Brandão, a música Dois querer (1980): “A palavra liga os olhos/Liga o aceno, liga o adeus/A palavra só não liga/Dois querer que são os teus/Um querer é este mundo/Do jeito que se quer ter/Correndo e falando muito/Que é pra muito se ter/Outro querer é ficar/Sem nunca querer de ter/Um dia que se mudar/Por causa de outro querer/Tem muito querer debaixo/Dos pés desses dois querer/Como água no riacho/Barrada pra não correr/Por isso às vezes te abraço/Noutras te quero bater/Mas é melhor o mormaço/Que o céu azul sem chover/Mas é melhor essa vida/Do que viver sem querer”. É com a palavra e somente com ela que trabalhamos em nosso cotidiano, testemunhando o poder de regeneração. Ela promove o reposicionamento naquele que chega em sofrimento e está disposto a se livrar dele.

Desde os tratamentos inaugurais da psicanálise, como hoje a compreendemos, foi da boca de uma mulher que a verdade foi escutada. Ela trouxe a verdade mais íntima e singular, pois, assim dita, aliviava sua dor. Ela dizia ao médico que, ao falar, era como se fosse uma “limpeza na chaminé”. Felizmente, o médico era Sigmund Freud. A palavra refaz. Conecta-nos com o inconsciente, com o que não conhecemos e compreendemos em nós, fazendo mudanças na maneira como administramos o que é nosso e o que foi herdado do outro e nem sequer sabemos.

A palavra nos introduz na cultura. Aprendemos a falar para chamar pelo outro, por quem cuida de nós quando bebês. Falar a mesma linguagem nos permite expressar nossas necessidades e nos faz pertencer a uma comunidade indispensável à sobrevivência. Juntos, enfrentamos catástrofes, encontramos cura para as doenças, inventamos a roda e a escrita – enfim, construímos uma civilização. A palavra é um laço: tece e costura as nossas relações. Com ela podemos pedir socorro e ajuda. Demandamos aquilo de que precisamos para viver. Ela é, em última instância, um pedido de amor.

A palavra é o nosso recurso, a nossa aposta na vida comum. Quando falamos com alguém, abrimos o nosso universo particular convidando a que nos escutem, olhem para nós. Ela invoca, pede, suplica. A palavra permite que o outro saiba sobre nós e que fale conosco também. Convida a travarmos relações. E esse convite pode ser aceito ou recusado. A palavra lançada ao outro permite que ele diga o que pensa, concorde e discorde, dê conselhos, saiba mais e fale com terceiros sobre aquilo que lhe foi dito. A palavra dita jamais poderá ser recolhida, apagada. E pode ter consequências. Muitas vezes, banalizamos seu valor. Ela destrói e cura, é bendita ou maledicente. Ela declara guerras e amores, convida a entrar e também a sair de nossa singular e íntima jurisdição. Difícil saber administrá-la, pois é precisa como uma espada afiada. Por isso, silenciar nos protege melhor do que falar muito. Assim reza um antigo provérbio que se acredita ser de origem oriental: "o falar é de prata, o silêncio é de ouro". 

Desse modo, a palavra aparece como movimento em torno do silêncio. A respeito, versa, com categoria, o poeta Wélcio de Toledo, no livro Subversos (2015). Refiro-me aos versos do poema “A palavra”, mais especificamente: “a palavra/gravada no papel/realça o branco/das histórias/que ainda/estão por vir/o branco/do papel/que se molda/atrai palavras/recheadas de histórias/prenhes de existir”. Pelas palavras, as histórias são mais sobre o que a gente não sabe do que aquilo que nós nos conhecemos. Falar é preencher os espaços em branco, levando em conta que a noção muito cara de incompletude, pois todo dizer precisa da falta, todo discurso e todo sujeito são incompletos. “As próprias palavras transpiram silêncio” – revela a professora Eni Orlandi, em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos (2007). E o silêncio inspira palavras, acrescento.

A palavra abre sulcos na subjetividade e é capaz de suspender bloqueios que nos mantiveram cativos por toda uma vida. Ajuda-nos a suportar o peso da nossa própria dor de existir, seja de que origem ela venha. Seja de uma fantasia ou de uma verdade vivida como desamparo, desamor, rejeição ou violência que tenhamos experimentado, vinda da mão do outro, ou que tenha sido sentida ou interpretada dessa maneira por nossa fragilidade. A palavra deixa marcas de aluvião. Aluvião é a erosão na terra por onde passamas águas de enxurrada. Depois, torna-se o caminho por onde cada chuva ou enchente vai seguir. Nossa subjetividade é marcada por caminhos de aluvião. Cada vez que vivenciamos algo que tenha um ponto em comum com o nosso passado, é por esses caminhos que passarão as emoções. Repetiremos sentimentos conhecidos e marcados, como se o atual apenas confirmasse o que já tínhamos experimentado. E ali atua a palavra, criando novas passagens. O sentido da palavra talvez seja dar aos seres humanos consciência da grandeza que ignoram ter dentro de si.

Nós, seres humanos e falantes, precisamos de ideais que refreiem nossa agressividade. Infelizmente, eles nem sempre funcionam para todos. Necessitamos também de ética para nortear a nossa conduta. Precisamos das leis, pactos criados para que seja possível a manutenção da cultura, da vida em comum. A educação nos molda e nos ensina a nos espelhar em ideais. Faz isso justamente porque o ser humano é diferente dos animais. Somos capazes de mentir, odiar, agredir, roubar e matar não apenas por necessidade básica da sobrevivência, mas para nos dar bem, mesmo que seja sobre a desgraça dos demais. Por isso, precisamos das leis que defendam ideais como a fraternidade, para que o mais forte não vença sempre e domine os mais fracos, oprimindo-os. A fraternidade é um conceito ideal, difícil de praticar, mas somos responsáveis por sua invenção, pois precisamos do outro e sabemos que em nós existe grandeza, solidariedade e laços que nos unem pela via da palavra e dos pactos possíveis.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

A VIOLÊNCIA E A QUESTÃO MORAL

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Através de notícias diárias, toma-se conhecimento de como proliferam os caprichos dos insanos, e da facilidade com que mentem, violam, roubam e matam. Prejuízo coletivo maior comentem os sociopatas ou psicopatas evolutivos, que são socialmente diferenciados. Não raro, eles ocupam amplos espaços na sociedade; entretanto, se governam, o fazem sem justiça; se decidem, a irracionalidade preside seus atos, se julgam, desobrigam-se de obedecer à lei – à letra da lei. É flagrante a incapacidade de seguir o princípio de P. Jonhson-Laird: ‘‘para decidirem, julguem; para julgarem, raciocinem; para raciocinarem, decidam (sobre o que raciocinar)’’. Constituem estes alguns exemplos de um estado patológico, em que uma diminuição da racionalidade se faz também acompanhar de carência ou de completa ausência de sentimentos.

Posto isto, não há como discordar do ensaísta e psicanalista Ataulpho Ribeiro, em Reestruturas do pensamento: “o comportamento dos homens, ao longo de toda a história, de suas vicissitudes, o seu imutável perfil psicológico, seu perfil animal de rapina, de predador implacável – ‘todo homem leva dentro de si um animal selvagem’, sempre foi vincado pela violência, rapacidade, sofreguidão hedonista, corrupção, solércia, ambição de poder...’’. Vai além, citando o biologista Ardrey: ‘‘o ser humano, a última palavra em matéria de predador armado’’ e Nietzsche: ‘‘o homem é o mais cruel de todos os animais’’. Uma tragédia, pois, assim se pode antever um progressivo processo de degenerescência humana: a pequenez dos homens insensatos, insensíveis e indiferentes a silenciar sobre os apelos da equidade, da persuasão, da tolerância, da benevolência, da magnanimidade.

Renato Russo e a Legião Urbana, na canção Baader-Meinhof Blues (1984), criticavam a manifestação da agressividade por meio da tirania, da opressão, do abuso da força e do constrangimento exercido sobre alguma pessoa para obriga-la a fazer ou deixar de fazer um ato qualquer: "A violência é tão fascinante/E nossas vidas são tão normais/E você passa dia e noite e sempre/Vê apartamentos acesos/Tudo parece ser tão real/Mas você viu esse filme também/Andando nas ruas pensei que podia ouvir/Alguém me chamando, dizendo meu nome/Já estou cheio de me sentir vazio/Meu corpo é quente e estou sentindo frio/Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber/Afinal, amar ao próximo é tão demodê/Essa justiça desafinada é tão humana e tão errada/Nós assistimo televisão também, qual é a diferença?/Não estatize meus sentimentos pra seu governo/O meu estado é independente/Ô ô ô/Já estou cheio de me sentir vazio/Meu corpo é quente e estou sentindo frio/Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber/Afinal, amar ao próximo é tão demodê".

A violência ocorre nos escritórios com ar condicionado, tapete e toda parafernália eletrônica. A palavra não dita, omissa, é a pior violência. A omissão é um crime duplo. E o capital é a violência a que o trabalho morto (a máquina, a mercadoria) submete o trabalho vivo (a mão-de-obra). O desemprego não corta só orelhas, corta tudo: a dignidade, a vida. Violento é o neoliberalismo, doutrina de ricos, jamais liberais, para os pobres. Países ricos sempre foram protecionistas e o são cada vez mais. A selvageria do ‘‘livre’’ mercado é para os pobres se comerem uns aos outros. ‘‘As veias abertas da América Latina’’ e restante do Segundo e Terceiro Mundo alimentam os vampiros internacionais, que brincam na jogatina das bolsas de valores.

Vampirismo de um lado e contraviolência de outro. Os que são chamados violentos na verdade são contraviolentos, pois a verdadeira violência é sutil. É feita pelo gesto feito ou não feito, pela palavra dita ou não dita, escrita ou não escrita. O que diferencia um ato ou omissão bons ou ruins é a intenção. A violência contundente é o epifenômeno, o reflexo do gesto sutil. Se a essência e a aparência se confundissem, toda ciência seria supérflua, ensina Marx. Portanto, os que detêm o poder é que são violentos, quando há contraviolência contundente. O processo de esvaziamento ético, de destruição do valor social das posturas moralmente recomendáveis, que está levando a uma situação difícil em praticamente todos os domínios da vida social brasileira (ainda que nosso interesse principal seja o ambiente escolar), tem origem numa miríade de fatores. Entre eles, o próprio jeito cultural brasileiro de enfrentar desvios de conduta. Alguns desses temas, à medida que o debate avançar, devem se tornar alvos importantes.

Gilberto Freyre havia mostrado que vivemos um processo de formação moral da elite do País extremamente distorcido. Os filhos da Casa Grande tinham todos os direitos, inclusive os de serem absolutamente desumanos com os filhos da Senzala. Insensibilidade era uma palavra doce perto do que costumavam exprimir, em seus atos, os pequenos coronéis. Crueldade seria um conceito mais adequado.

Não deveria surpreender que, à medida que o País se urbanizasse e rompesse os laços da servidão rural, na ausência de um processo social fortemente reestruturador de valores e posturas, o que teria talvez exigido uma revolução social, em vez de vivermos um processo de elevação ética coletiva, vivêssemos o seu contrário, isto é, uma generalização da anomia moral. Antes privilégio da elite senhorial, tornou-se prerrogativa coletiva, até se tornar lema nacional com o ‘‘levar vantagem em tudo’’. Mas o curioso é constatar que nós enfrentamos o colapso moral não através da insistência numa socialização de conceitos, na recriação de um novo padrão ético, mas no desenvolvimento de posturas repressivas ou simplesmente impeditivas. Isto é, em vez de convencer a mudar o comportamento, jogamos toda nossa energia em promover a manifestação do comportamento aético, com o que o comportamento ético não é valorizado.



* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

A "FORÇA" DA GRANA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 1998, o escritor e economista indiano Amartya Sen trouxe certo ânimo para o que entendemos como “meio de vida”. Consiste, por assim dizer, em acesso à capacidade a bens (incluindo bens materiais e sociais) e a atividades, requeridos para a sobrevivência de um indivíduo. Um meio de vida é sustentável quando pode ser capaz de se recuperar de situações de choque e de estresse, ao mesmo tempo em que pode manter ou melhorar a capacidade e os bens do indivíduo, agora e no futuro, e que não deteriora os recursos ambientais básicos.

Em busca da palavra exata, porém, o campo econômico engasga-se num horizonte curto demais. Como resultado, uma concessão desencadeada e reveladora de “cadeias que libertem”, como diria a poeta Ana Cristina César, observadora atenta e crítica desse paradoxo absurdo que insiste em tirar o nosso sossego, tendo em vista a corrida vigente pelo santo pão de cada dia. Metaforicamente, Caetano Veloso, em Sampa (1978), já alertava sobre o padrão cinzento predominante no desenvolvimento econômico que não leva em conta a insustentável leveza do ser: “da força da grana que ergue e destrói coisas belas/da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas”. Esse “vulcão de neve” chamado economia nos transforma em “viras latas na via láctea”, como sugere o belo jogo de palavras articulado pelo músico Tom Zé.

Acionando novamente as reflexões de Amartya Sen, parece-me que o conceito de “capacidade” sugerido por ele pode até caber no cenário convencional de luta pela sobrevivência, mas o sentido nobre de viabilizar a convivência global ganha apenas impulso tímido. Capacidade, segundo o economista, refere-se à faculdade de possuir certas qualidades básicas, incluindo o que a pessoa é capaz objetivamente de fazer, como ela é capaz de enfrentar situações de estresse ou de choques e como ela faz uso das oportunidades de sobrevivência.

Capacidade, para mim, significa leitura poética, onde a verdade reside, é legenda se fazendo tecido, texto nunca acabado, como o que tecia Penélope à espera de Ulisses. O mesmo tecido que permanece inacabado hoje, neste tempo de carência e de indigência, “tempo em que os deuses fugiram e em que ainda não se pode falar do que virá”. Vejo mais capacidade na utopia do que na realidade. Utopia, no sentido que lhe empresta Ernest Bloch: “esperança concreta”. O discurso econômico se esconde no “absoluto matemático” para impor seu mandato na governança do mundo globalizado. Em torno do vil metal, o que se expressa em demasia é o que Michel Foucault chama de “panoptismo”. Isto é, vigilância, controle e correção imperam como as maiores características de nossa época. Porém, capacidade é doar saber para que todos, sem distinção, tenham poder.

Na lição do saudoso filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio, em O Direito Administrativo e o Poder Judiciário (2001), todo o poder emana do povo porque a democracia se firma como “governo do controle e do consenso”. Um dos princípios básicos do Estado constitucional é a adoção do caráter público como regra e do segredo como exceção: “Que todas as decisões e mais em geral os atos dos governantes devam ser conhecidos pelo povo soberano foi considerado um dos eixos do regime democrático, definido como o governo direto do povo ou controlado pelo povo”. Não é pérola jogada aos porcos o que bem expressa o artigo 37 da Constituição Federal de 1988: “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

Descolada da política, a economia vira patrimonialismo. A transparência perde espaço para a corrupção. Nos tempos da ditadura militar, o general Emílio Garrastazu Médici, em viagem presidencial ao Nordeste, pronunciou a famosa frase: “Estado rico, país pobre”. Atualizando a declaração para os tempos de hoje: “Estado rico, país pobre e mercado mais rico ainda”. O dinheiro divide o mundo e o mundo não divide o dinheiro. Estamos vivenciando mais uma vez o que Dante Alighieri expressou no romance A Divina Comédia. Destaca-se na bela poesia dantesca a perspectiva humana: os personagens que povoam o mundo do além ocupam posições relacionadas ao papel que desempenharam em relação à cidade do narrador, a sua amada Florença. Para os amigos, o céu; para os inimigos, o inferno, com a incômoda companhia do diabo em pessoa! Perspectiva bem moderna, aliás. Para os amigos, leia-se: os relacionados com a construção da pólis dos nossos sonhos, a eterna lembrança da bem-aventurança. Para os que conspiravam contra o nosso ideal cívico, o inferno do esquecimento!

Ecos do inferno dantesco: Cerca de 1% da população mundial detém quase 50% da riqueza produzida no planeta. Os outros 99% dividem, em partes também desiguais, os cerca de 50% restantes. A informação provém de uma instituição financeira respeitada mundialmente, o banco Credit Suisse. E, pior, segundo o estudo, a concentração da riqueza está aumentando. A pesquisa levou em conta dados patrimoniais de 4,8 milhões de adultos procedentes de mais de 200 países. Os números são estarrecedores. Como então relativizar o peso da economia sobre nossas cabeças? Ouvindo Martinho da Vila: “Dinheiro pra que dinheiro/Se ela não me dá bola/Em casa de batuqueiro/Só quem fala alto é viola...”. E aprendendo com Fernando Sabino, no saboroso livro O Encontro Marcado (1956): “Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro”.


* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

A CENTELHA DO ACASO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

A nossa existência parece ser uma sucessão infindável de encontros: encontro com o trabalho, com a família, com os amigos. Encontro com o amor. Encontro com o destino. Invariavelmente quando penso em encontros me vem ao pensamento o que disse Vinícius de Moares no seu Samba da benção (1962): “a vida é a arte do encontro”. Do seu revés, da sua negação, o poeta não se esqueceu, e assim completou o verso: “A vida é a arte de encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. É assim que os encontros se tornam mágica, pela superação dos seus reveses, dos desencontros. Muitas vezes o acaso é o grande promotor de encontros memoráveis, em que transforma o inesperado em um suave sorriso. Palmas para o acaso, que tão bem arquiteta encontros e bons momentos entre nós, esses seres humanos sempre em busca de diversões e companhias.

Existem reflexões, porém, que combatem a noção de acaso, tentando assim desvendar o que cerca a “compreensão do risco”. O livro O acaso e a necessidade (1970) defende a seguinte tese: tudo que acontece no processo evolutivo não ocorre apenas por puro acaso, mas, como afirma o título da obra fundamental de Jacques Monod, a evolução se dá por acaso e necessidade, ou seja, segundo João Paulo Monteiro, professor de filosofia na Universidade de Lisboa, “a seleção natural faz da evolução das espécies uma espécie de ‘algoritmo’, que realiza sua tarefa — a construção de um mundo cheio de espécies adaptadas a seus ambientes naturais —, sem que haja um desígnio superior a governar todo o conjunto”.

Cabe em nossa relação com o acaso a lógica da vida que ainda não assimilamos. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que não estamos preparados para lidar com o aleatório – e, por isso, não percebemos o quanto o acaso interfere em nossas vidas. A respeito, canta o grupo Titãs a poética da incerteza: “Devia ter amado mais/Ter chorado mais/Ter visto o sol nascer/Devia ter arriscado mais e até errado mais/Ter feito o que eu queria fazer/Queria ter aceitado as pessoas como elas são/Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração/O acaso vai me proteger/Enquanto eu andar distraído/O acaso vai me proteger/Enquanto eu andar...”. Alguns preferem chamar o acaso de “feliz coincidência” ou “providência divina”. Carl Jung construiu o conceito de “sincronicidade” para tentar dar conta deste grande desafio. Trata-se de um exercício reflexivo que visa explicar a coincidência entre dois ou vários eventos, sem relação causal entre si, mas possuindo um mesmo conteúdo significativo. Sincronicidade, segundo Jung, é um conceito que une dois ou vários acontecimentos sem união causal. Porém a sequência dos mesmos acontecimentos forma um todo, cuja interpretação é captada pelo sujeito, possuindo significado idiossincrático.

Mereceu também a temática do acaso um cuidado musical na bela canção de César Camargo Mariano: “Não sei se o acaso quis brincar/Ou foi a vida que escolheu/Por ironia fez cruzar/O meu caminho com o seu/Eu nem queria mais sofrer/A agonia da paixão/Nem tinha mais o que esquecer/Vivia em paz, na solidão/Mas foi te encontrar/E o futuro chegou como um pressentimento/Meus olhos brilharam, brilharam/No escuro da emoção/Não sei se o acaso quis brincar/Ou foi a vida que escolheu/Por ironia fez cruzar/O seu caminho com meu”. Pelos caminhos do acaso, em sua dimensão tortuosa, podemos pensar a estabilidade e o equilíbrio não como formas primeiras que antecedem a “fundação” da natureza das coisas, mas como efeitos solidários de um movimento universal que comporta em uma mesma medida o instável e o desequilíbrio.

O acaso nos lança para uma posição menos totalitária: a experiência estética deixa de ser exclusivamente a manifestação de um saber ou de um sentimento, e se assume como um universo pleno de movimentos, onde esse sujeito age ao mesmo tempo em que se transforma. Tomando o acaso como cruzamento de causas independentes, questionam-se visões excessivamente egocêntricas que visam a esgotar a presença do “indeterminado” entre nós. O medo e o fascínio promovidos pelo cenário de incerteza ganhou especial interrogação nas mãos do educador Rubem Alves, em Palavras para desatar nós (2011), a saber: “a vida toda não será assim uma luta contra o caos sem sentido em busca de uma beleza escondida?”. O que quer a dinâmica do acaso: fazer as pessoas sorrirem ou chorarem? Uma coisa é certa: que bom que de vez em quando surja alguém para nos lembrar o quanto temos vivido tão distraidamente desabraçados. Isto significa driblar o destino programado da solidão, do isolamento em meio à multidão inquieta e à minoria próspera. A complexidade do conceito de acaso já pode ser deduzida da quantidade de palavras que surgem em nosso cotidiano e que se relacionam ou se confundem com ele: sorte, azar, coincidência, acidente, contingência, indeterminação, destino, causa fortuita, aleatoriedade.

Quando se diz que alguma coisa é obra do destino, pode-se estar querendo dizer que é produto de um jogo de forças imprevisíveis da natureza, de cruzamentos não necessários, acidentais, enfim, uma afirmação do acaso. Mas pode ainda se referir a algo que já estava escrito, previsto num roteiro minuciosamente traçado do qual não se pode escapar, uma negação do acaso. Normalmente, quando começamos a contar uma história, buscamos encontrar sempre uma relação de causalidade entre diferentes acontecimentos. “Primeiro ocorreu isso, depois aquilo. Aquilo ocorreu por causa disso.” Há sempre um exercício mental de procurar por uma sucessão lógica do desenvolver dos fatos. Somos tentados a acreditar que sempre existe uma explicação, que há um motivo por trás das coisas. No entanto, sejamos sinceros: muitas vezes simplesmente não há um porquê, o que acontece se trata de um capricho do destino. Daí, surge talvez aquilo que Walter Benjamim descreve como “centelha do acaso”.



* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

domingo, 10 de janeiro de 2016

A INSANIDADE MIDIÁTICA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Atribuiu-se a Albert Einstein a definição de insanidade como sendo fazer a mesma coisa várias vezes e esperar resultados diferentes. Os meios de comunicação são insanos. Estamos submersos numa torrente de comunicações e, no entanto, muita gente se lamenta da falta de comunicação. Os cidadãos olham a televisão, lêem os jornais, escutam o rádio, mas se escutam, têm a impressão de não serem escutados.
Realmente os meios de comunicação não escutam. Eles no máximo medem audiências e vendagens, sondam tendências mercadológicas, mas passam longe das opiniões. A comunicação se constitui um elemento de poder e dominação na medida em que ocupa o espaço público e se impõe sobre ele. É o período de consolidação do espaço público moderno, um conceito associado aos meios de comunicação. Eles recriaram o espaço público emblematizado na Antiguidade pela Ágora grega, forjando novos atores, mas, ao mesmo tempo, estabelecendo os seus novos limites. São eles, os meios de comunicação, que organizam e desorganizam o espaço público.
Tomemos como ponto de partida histórico para chegar a esse raciocínio as cidades da Europa ocidental do início do século 18. A burguesia ascendente – e sua parte mais intelectualizada – defende o princípio da publicidade nas coisas públicas em oposição à prática do segredo, característica do estado monárquico. Estava se formando o público. No sentido de indivíduos que se reúnem para falar e ouvir. A burguesia começa a estabelecer um espaço de mediação entre a sociedade civil e o Estado. O discurso crítico e racional sobre economia política passa a gerar um fenômeno até então desconhecido: o surgimento de uma opinião pública com força suficiente para influir na administração geral dos povos.
Surge uma esfera pública ampliada pelos meios de comunicação que, ao mesmo tempo, a dinamizam e a atrofiam. Primeiro, colocando-se como mediadores entre os cidadãos – entre os emissores e os receptores das mensagens – recortando a cidade e o mundo de acordo com os seus interesses e idiossincrasias. Passa-se da comunicação direta à comunicação mediatizada. E quase simultaneamente, dentro da lógica da acumulação capitalista, o espaço público se atrofia com a consolidação dos monopólios e oligopólios comunicacionais.
Num primeiro momento dinamiza-se o processo, com novas fronteiras e novos participantes, para logo em seguida atrofiá-lo com a lenta destruição do espaço de troca, existente até então tanto nos debates orais quanto na diversificação ideológica dos jornais, porta-vozes de partidos e grupos. Fecha-se o espaço da discussão. O público se transforma em massa. Massa receptora das mensagens veiculadas pelos meios de comunicação e excluída do debate.
Para conquistar e garantir o controle de corações e mentes a mídia penetra em todos os poros da sociedade. Aproveita-se das deficiências de parte do serviço público para se arvorar em canal de denúncias pontuais e raramente contextualizadas. Transforma-se em um simulacro de ouvidoria, sensacionalizando e espetacularizando a miséria. Amplia o descrédito no Estado, mostrando insuficiências que existem sem apontar caminhos e soluções. Em análise com relação ao tema, o historiador José Murilo de Carvalho, no artigo “Uma democracia de duas caras” (O Estado de São Paulo, de 23/07/2006), afirma que há uma distinção argumentativa a respeito de vários assuntos políticos: enquanto a opinião pública se revela como sendo esclarecida e crítica, protagonizada, por sua vez, por uma pequena parte da população, a opinião nacional, em seu turno, é composta por uma grande maioria que se encontra no reino da necessidade, pouco crítica e mal informada dos fatos.
Como os meios de comunicação podem colaborar para a instrução da opinião nacional para que esta ingresse ativamente a fileira dos agentes da opinião pública esclarecida? Nos Anais do 2º. Encontro Regional de Ouvidoras Públicas (2006), o jornalista, sociólogo e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, Laurindo Lalo Leal Filho, defende a seguinte medida saneadora: “A comunicação é fator chave para o exercício da cidadania. Cabe a ela oferecer os instrumentos necessários para que o cidadão exerça, com plenitude, todos os seus direitos numa sociedade democrática. Nesse sentido a comunicação deve ser vista, antes e acima de tudo, como um serviço público, voltado para atender essa necessidade básica da vida moderna que é a informação. Sem ela, ou com ela sendo ofertada de forma reduzida – ou o que é pior, de maneira distorcida – o grau de cidadania rebaixa-se ou é totalmente anulado. Surgem assim os cidadãos de primeira e segunda classe”.
Os jornais, insanos em sua grande parte, estão deixando de promover sujeitos racionais para domesticar inteligências, como se o público fosse “gente de estimação”, como destaca Pedro Bandeira, um dos nossos maiores escritores de literatura infantil. Para quem tem olhos de ver, a linha editorial de um noticiário insano tem suas fraturas bem expostas na canção-denúncia Jornal da Morte (1961), composta por Miguel Gustavo e imortalizada na voz de Roberto Silva: "Veja só esse jornal, é o maior hospital/Porta voz do bang-bang e da polícia central/Tresloucada, seminua, jogou-se do oitavo andar/Porque o noivo não comprava maconha pra ela fumar./Um escândalo amoroso com os retratos do casal/Um bicheiro assassinado em decúbito dorsal/Cada página é um grito, um homem caiu no mangue/Falta alguém espremer o jornal para sair/Sangue, sangue, sangue". 
Vivemos, ainda, à sombra dos piores momentos midiáticos em termos de qualidade, com a programação - em geral - descambando para o desrespeito à dignidade humana. As violações aos direitos humanos são vistas no auditório e no jornalismo sensacionalista. Faltam à mídia princípios básicos da conduta ética: fazer o bem e evitar o mal, querer positivamente o bem dos outros como se quer o próprio bem e não querer um fim bem empregando meios maus. A moral que é a arte de viver bem, é também a arte de conjugar bens e deveres.


* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG