domingo, 31 de maio de 2015

CALAMIDADE PÚBLICA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

“Um país se faz com homens e livros”. Infelizmente, Monteiro Lobato não está sendo escutado. Segundo números presentes no Censo Escolar 2013, 65% das unidades de ensino do país, públicas e privadas, não têm bibliotecas. Desde 2010, quando entrou em vigor a Lei 12.244 – que obriga todos os gestores a providenciar, até 2020, espaços estruturados de leitura em suas unidades educacionais –, a situação praticamente não evoluiu. Naquele ano, só 33,1% das escolas tinham bibliotecas; em 2013, eram 35%. Esse estado de calamidade pública se agrava com a seguinte distorção de valores: segundo destaca Frei Betto, no artigo “Do mundo virtual ao espiritual” (Estado de Minas, 05/06/2008), "uma próspera cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias!". Diante dessa ‘zorra total’, pergunto, inspirado nas palavras de Machado de Assis, mestre de nossas letras: “Pobre espírito! Quem pensa em ti, nessa dança macabra de coisas sólidas? Quem oferece alguma coisa ao paladar dos delicados, não corrompido pelo angu do vulgo?” (Notas Semanais, de 01/09/1878).

Assim, o Brasil ainda está longe de ser uma nação de cidadãos leitores e há muito chão pela frente até que se chegue lá. Conforme destaca o importante volume Retratos da leitura no Brasil (2008), são 95 milhões de leitores e 77 milhões de não-leitores. A média nacional de leitura, por pessoa, corresponde a 4,7 livros por ano. Número de livros comprados: 1,2 livro por habitante/ano. A pálida estatística mostra uma preocupante apatia frente à importância significativa da leitura e da escrita. A respeito, faz-se relevante notar o aspecto utilitário: a gente lê para se informar, para saber das coisas. De outra parte, temos o aspecto simbólico que, em parte, deriva do aspecto utilitário. Lendo, adquirimos saber; ora, saber é poder, e essa verdade se afirma dia a dia no tipo de sociedade em que vivemos, uma sociedade em que a informação é decisiva.

Dói saber que temos um grande déficit no número de livrarias no país. O Brasil possui apenas 3.095 livrarias, o que representa, em média, uma para cada 64.954 habitantes, de acordo com a Associação Nacional de Livrarias (ANL). Do total, 55% estão na região Sudeste, 19% no Sul, 16% no Nordeste, 6% no Centro-Oeste (incluindo o Distrito Federal) e 4% no Norte, conforme pesquisa da instituição sobre a localização desses espaços comerciais no país. A média brasileira é inferior à recomendada pela Unesco, que é de 1 livraria para cada 10 mil pessoas, segundo Ednilson Xavier, presidente da ANL. Para ele, a concentração nas regiões Sudeste e Sul, que chega a 74%, reflete a má distribuição de cultura no país.

Acolher a leitura como exercício supremo de vitalidade possibilita experimentar "o prazer do texto", conforme salienta Roland Barthes. Leitura informa, leitura emociona, leitura é coisa prazerosa. Há um aspecto lúdico no ato de escrever, na escolha das palavras que construirão o nosso relato; e esse prazer de uma forma ou de outra chega ao leitor. Por isso, em se tratando de formação e consolidação do público leitor, é melhor apresentar a leitura como um convite amável, não como uma tarefa, como uma obrigação que, ao fim e ao cabo, solapam o próprio simbolismo da leitura, transformada num trabalho árido quando não penoso. A casa da leitura tem muitas portas, e a porta do prazer é das mais largas e acolhedoras.

A leitura proporciona também um vínculo emocional, inclusive com o autor – não por outra razão Baudelaire considera o leitor “mon semblable, mon frère” (meu semelhante, meu irmão). E o escritor precisa ser lido, o que explica o transbordante apelo da poeta Edna St.Vincent Milay: “Read me, do not let me die” (leia-me, não me deixe morrer). Em torno do ritual de leitura, os leitores, mesmo distantes no tempo e no espaço, formam uma família, uma verdadeira irmandade. Irmandade que simboliza aquilo que a humanidade tem de melhor. Salutar compreender a irmandade em questão como belo exemplo de rede de sociabilidade, considerando a teia de conteúdos nela compartilhados, tendo em vista a promoção da “era da inteligência conectada”, termo cunhado pelo consultor de tecnologia da informação, Don Tapscott.  

É inadmissível que, em termos de política pública de incentivo à leitura, o sistema de disponibilização do conhecimento, via bibliotecas e livrarias, não canalize seu empenho no perfil de usuário da informação adquirida. Urge contemplar e remediar, com eficiência e eficácia, a problemática conjuntura nacional – escolas do século 19, professores com recursos do século 20 e alunos conectados tecnologicamente com o século 21. Cabe ressaltar que as bibliotecas e as livrarias, como centrais de democratização do conhecimento, apresentam papel cultural estratégico na disponibilização pública de acervos impressos e digitais.

A ideia de uma Sociedade da Informação ou do Conhecimento, ou ainda, da Educação, é um conceito antigo e constantemente renovado no desenvolvimento da humanidade, desde aqueles que pretenderam fazer a súmula dos conhecimentos na coleção da Biblioteca de Alexandria, passando pelos ardores e mentores do Renascimento e pela criação de universidades no fim da Idade Média, continuando nos ideias democratizantes e racionalistas dos Enciclopedistas até a chegada da Internet e da Web. No fundo da questão, o que se coloca, como desafio brasileiro, é viabilizar a comunicação de conteúdos ou saberes entre indivíduos, numa forma de compartilhamento mais aberta e acessível do que nunca.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

O SANTO E A PORCA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Saudades do escritor Ariano Suassuna (1927-2014). Munidos de sua obra, podemos assimilar melhor esses tempos difíceis de ajuste fiscal. Mãos de tesoura parecem governar a atual política econômica. É verdade que, em tempos de escassez de recursos, os investimentos podem ser redirecionados, detectando as “gorduras orçamentárias” que devem ser queimadas. Mesmo assim, estamos diante do maior contingenciamento de recursos da história em termos nominais: a equipe econômica do Governo Federal anunciou o bloqueio de R$ 69,9 bilhões em gastos no orçamento de 2015. O corte afetou ministérios importantes como das Cidades, da Saúde e da Educação. Não adianta tratar o fogo com gasolina. Precisamos de água: muita calma nessa hora. Ou, como diria o próprio Suassuna: saindo da dicotomia pessimismo versus otimismo, o caminho do meio para o temperamento social adequado reside na prática do “realismo esperançoso”.

O realismo esperançoso contrapõe-se à projeção antiquada de esperança como “desejo sem poder”. A esperança, como posição passiva, se faz prejudicial, pois perde-se, nesta perspectiva, a ideia de ação. A respeito, Chico Buarque, em Pedro pedreiro (1965), critica o comodismo e a postergação como vícios comportamentais que estimulam a pasmaceira generalizada: “Pedro pedreiro penseiro esperando o trem/Manhã, parece, carece de esperar também/Para o bem de quem tem bem/De quem não tem vintém/Pedro penseiro fica assim pensando/Assim pensando o tempo passa/E a gente vai ficando pra trás/Esperando, esperando, esperando/Esperando o sol/Esperando o trem/Esperando aumento/Desde o ano passado/Para o mês que vem/[...] Pedro pedreiro espera o carnaval/E a sorte grande no bilhete pela federal/Todo mês/Esperando, esperando, esperando/Esperando o sol/Esperando o trem/Esperando o aumento/Para o mês que vem/Esperando a festa/Esperando a sorte/E a mulher de Pedro/Está esperando um filho/Pra esperar também”.

Ariano Suassuna conferiu um sentido novo à palavra esperança, ao torná-la princípio ativo da realidade em transformação. Tal propósito muito se assemelha ao verbo “esperançar”, neologismo proposto por Paulo Freire para representar a nobre causa de colocar a pessoa na posição de “agente cidadão”. Para que o Brasil alcance a maturidade econômica, impulsionando a vitalidade social, o escritor paraibano percebia a necessidade de se reformar, pela raiz, a mentalidade patrimonialista nacional, via educação problematizadora da cobiça e da avareza que nos corrompe historicamente. Pelo caminho da ironia inteligente, Suassuna, na peça O santo e a porca (1979), oferece uma crítica contundente aos costumes materialistas de teor ganancioso.

O início da “Imitação Nordestina de Plauto” se dá com o diálogo entre Caroba e Euricão, o qual recebe a informação de que Eudoro enviou-lhe uma carta pelas mãos do criado Pinhão. Por sua vez, a leitura da carta, que se dará na sequência, desencadeará um sem fim de quiproquós. Exemplo disso se encontra no primeiro ato da peça, em que Margarida, a filha, lê a carta enviada por Eudoro, seu pretendente, ao pai avarento: “MARGARIDA – De minha chegada aí, mas quero logo avisá-lo: pretendo privá-lo de seu mais precioso tesouro!/EURICÃO – Está vendo? Esse ladrão! Esse criminoso! Meteu na cabeça que eu tenho dinheiro escondido e quer roubá-lo”.

Euricão, ao ouvir parte da carta, lida pela filha, entende que o tesouro mencionado é seu dinheiro. Contudo, Eudoro se refere a Margarida. Quando são confundidas Margarida e a porca, Dodó e Margarida não associam o vocábulo “porca” ao objeto de madeira em que o velho guardava seu tesouro; o entendimento de “porca” em seu sentido figurado, por sua vez, acaba por desencadear um novo mal-entendido, haja vista que os jovens pensam que o velho profere xingamentos à filha. Por trás da confusão semântica, confundir a filha do avarento com a porca contribui para sua coisificação, processo criticado por Ariano Suassuna como extremismo reificador.

Não é apenas a preocupação em defender sua riqueza que atribui a Euricão tal aspecto. Ele tornou-se avaro em decorrência de uma perda: “EURICÃO – [...] Mas parece que Santo Antônio me abandonou por causa da porca. Que santo mais ciumento, é “ou ele ou nada”! É assim? Pois eu fico com a porca. Fui seu devoto a vida inteira: minha mulher me deixou, a porca veio para seu lugar. E nunca nem ela nem você me deram a sensação que a porca dá. Ah, minha bela, ah, minha amada!”.

A porca, isto é, a avareza, passou a ocupar um lugar de destaque na vida de Euricão a partir do momento em que perdeu a mulher; trata-se de um elemento que supre uma lacuna, uma perda. O velho avarento, não tendo mais o seu tesouro, haja vista que descobre a perda de validade do dinheiro, apega-se a Santo Antônio como o único parâmetro de conforto que lhe resta. Em O santo e a porca, Ariano Suassuna nota criticamente que a sociedade é injusta e a riqueza, pessimamente dividida. Pelo enredo da peça, percebe-se que a concentração de renda nas mãos dos endinheirados contribui para o fenômeno da tibieza de caráter, incentivando pessoas a lançarem mão da mentira, da astúcia, da presença de espírito, de recursos ludibriadores que a própria luta insana pela sobrevivência, travada dia a dia, hora a hora, se incumbe de despertar.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

EDUCAÇÃO ANTROPOFÁGICA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Como tese argumentativa, apresentaremos como hipótese pensar a educação antropofágica como proposta pedagógica relevante e extremamente necessária para a vida em plenitude criativa. Por antropofagia, entendemos como habilidade modernista e moderna de construir o novo em diálogo criativo com a tradição. Por tradição, compreendemos aquele legado do passado que se presentificou para o bem da razão e da emoção articuladas. Modernidade, em linhas gerais, significa a novidade movida à historicidade. No universo brasileiro, destacar o modernismo como modernidade específica, em escala literária e cultural, significa reconhecer o importante papel de ações artísticas na relativização do horizonte erudito pela sabedoria do coloquialismo popular, irreverente e inventivo. Há que se considerar também o papel da ironia nesta projeção expressiva, o que possibilitou fundamentar um dispositivo intelectual e emocional arejado em matéria de humor e sátira. Foi possível, partindo, por evidência consagrada, do acontecimento “Semana de Arte Moderna de 1922”, contar publicamente ‘segredos de liquidificador’ que vitaminaram o Brasil, evitando a fórmula ufanista-romântica. Assim, o senso crítico voltado para o “Brasil Profundo” saiu-se fortalecido nas construções literárias e artísticas daquele tempo, desdobrando-se positivamente na contemporaneidade. A nação se agigantou graças a um estatuto estético-político mais localizado e universal, ao mesmo tempo. Fez-se diálogo fecundo com as vanguardas europeias, com desenvoltura mais independente. A subserviência ideológica foi deixada mais de lado. Entrou em campo um tipo de originalidade, angariando combinações inusitadas de autorias múltiplas.

À luz do tropicalismo autêntico desenvolvido por Tom Zé, é possível ler o modernismo como excelência do atrito, marcada por duas linhas de força criadora: “a era autoral” e “a era do plagicombinador”. Penso, neste caso, no saboroso slogan promovido no Movimento Antropofágico, que serviu de linha coletiva e, portanto, orgânica para orientar as autorias modernistas: “Tupi or not tupi. That’s the question!”. Desse modo, antropofagicamente Shakespeare e Lima Barreto foram assimilados com despojamento inaugural impressionante. Em relação ao dramaturgo inglês, ficou para a história o dilema clássico trazido por Hamlet: “To be or not to be! That’s the question!”. O adágio em destaque coloca em cena o questionamento existencial da condição humana: uma espécie de pêndulo que ora gravita para o sentido da autenticidade, ora caminha para o polo da dissimulação. Angustiado com a podridão imoral que tomava conta do Reino da Dinamarca, Hamlet percebeu que sua família, tomada pela cobiça do poder, diminuiu a chama do “ser” para ficar com os holofotes do “ter”, isto é, do “não ser”. Os modernistas, tais como Mário e Oswald de Andrade, trouxeram esse clima especulativo para revisar a história brasileira, repercutindo um ângulo rico no tocante à poética da diversidade: nós, brasileiros, assumiremos autenticamente nossa formação indígena com respeitosa alteridade ou continuaremos a promover genocídios impostos aos povos originários, desde a bárbara colonização que se instalou em nossas terras? Convém destacar que o tema já havia sido trabalhado pelo autor pré-modernista Lima Barreto, ao construir corajosamente o personagem Policarpo Quaresma, um defensor apaixonado do idioma tupi-guarani como língua autenticamente brasileira.

Abrangente, a antropofagia como virtude educacional pode também interligar os campos da política e do esporte. O slogan Yes, we can!” deu sustento simbólico à vitória de Barack Obama como primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos. Em bom português, o referido lema significa: “Sim, nós podemos!”. Uma bela sacada de marketing trouxe à tona o empoderamento coletivo representado pela ascensão da comunidade afrodescendente ao poder central que lhe é também de direito. Foi a realização, nas urnas, do desejo libertário do grande líder Martin Luther King: “Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”. No futebol, o Clube Atlético Mineiro (C.A.M) se apropriou antropofagicamente do refrão estadunidense para bordar o canto da torcida: “Yes, we C.A.M.!”. Construiu-se o mantra perfeito que levou o Galo ao maior título de sua história: a conquista da Taça Libertadores da América, em 2013. Criativamente, a torcida consolidou o arquétipo de que o Clube Atlético Mineiro logo representa potência coletiva triunfante. É justo perceber, nesta ordem, o diálogo frutífero, envolvendo este fato contemporâneo e a tradição salutar. Nos anos 70, em plena ditadura militar, o ídolo atleticano, Reinaldo, sempre comemorava os gols, reproduzindo o gesto do movimento Panteras Negras (coletivo empenhado na luta contra o racismo nos Estados Unidos): o artilheiro erguia o braço e cerrava o punho.

Em termos de pensamento crítico, as reflexões aqui arroladas ganham alto estofo no livro Vale quanto pesa (1980), escrito por Silviano Santiago. A educação antropofágica rejeita o binômio fonte-influência (paradigma autocrático) para abraçar o livre fluxo da confluência (paradigma democrático). Nas palavras do eminente pesquisador: "faz-se necessário que o primeiro questionamento das categorias de fonte e influência, categorias de fundo lógico e complementar usadas para a compreensão dos produtos dominante e dominado, se dê por uma força e um movimento paradoxais, que por sua vez darão início a um processo tático e desconstrutor da literatura comparada, quando as obras em contraste escapam a um solo histórico e cultural homogêneo”. Portanto, graças à educação antropofágica, colocou-se em xeque “a verdade da universalidade colonizadora”, promovendo, por sua vez, “a verdade da universalidade diferencial”.  

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

O ESTRANHO E O FAMILIAR


Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Na esteira de Sigmund Freud e do artigo O estranho/Das Unheimliche (1919) escrito por ele, sou mais simpático à ideia de que o homem apresenta competências e habilidades para transformar o estranho em familiar, a partir do processo de assimilação compreensiva. Penso que o princípio aristotélico que consagra o ser humano como animal racional alimentou muito a soberba da espécie, contribuindo para a formação de ciladas vaidosas e arrogantes que só estreitam o potencial da nossa dinâmica subjetiva. 

Na tradução de unheimlich para outras línguas, encontramos acepções tais como: estrangeiro, hora ou lugar estranho, inquietante, desconfortável, sombrio, obscuro, assombrado, repulsivo, sinistro, suspeito, lúgubre, demoníaco. Poderíamos dizer que Freud apoia-se numa ambiguidade linguística que produz um curioso efeito: heimlich, que quer dizer familiar, também significa algo secreto e oculto, o que, paradoxalmente, torna essa palavra próxima de seu oposto, unheimlich. Aos exemplos que Freud oferece em seu texto, podemos acrescentar outro mais próximo de nós, falantes do português: a palavra estranhar é comumente utilizada para a situação em que o cão não reconhece seu dono ou alguém conhecido, ou seja, uma situação que deveria lhe ser familiar. E curiosamente, em espanhol, estrañar significa “sentir saudades” – remete a algo familiar que não está mais presente. Considerando ambiguidades desse tipo, Freud aponta que o estranho, unheimlich, é, de alguma forma, uma “subespécie” de heimlich, do familiar (que é também o oculto, o secreto). Nem tudo o que é assustador ou sinistro evoca o sentimento do estranho, mas apenas aquelas situações em que, justamente, há também subversão da lei do recalque, fazendo com que aquilo que deveria ter permanecido “secreto e oculto” venha à tona. 

Em termos de expressão da alteridade, as noções de “estranho” e familiar” se articulam com o fenômeno do duplo, proveniente da separação entre as realidades interna e externa, entre o “eu” e o “outro”. Chamamos de “Poética da Relação”, este intervalo afetivo por onde as subjetividades se realizam, constituindo uma familiaridade perceptiva capaz de processar certas estranhezas, sem enquadrá-las como exóticas ou meramente toleráveis. A convivência, de fato, ocorre quando a diversidade intra e interpessoal é promovida em cenários convergentes e divergentes. Nesse sentido, cabe como uma luva o pensamento de Zeca Baleiro, expresso na canção Meu amor, minha flor, minha menina (2005): “Antes o atrito que o contrato”. Na diversidade, estranho e familiar convivem eticamente. Na uniformidade, só existe a etiqueta do familiar acordado. Lembremos: etiqueta significa convenção, “pequena ética”.

A atitude de estranhamento diante de si mesmo pode favorecer o cultivo da autoestima, uma vez que a prática em destaque possibilita compreender a identidade pessoal e coletiva como processos de formação e aprendizado continuados. A respeito, José Sóter, em Navegante ao léu (2011), dedica versos esplêndidos sobre a importância do distanciamento como estratégia salutar de análise frente aos envolvimentos que vivenciamos diariamente. No poema “eu e a vida”, o eu-lírico se apodera de múltiplos sentidos: “a minha relação com a vida/sempre foi a de um leitor/mesmo quando me referencio em mim/o faço como espectador”. Considerando a linha de pensamento freudiano, Sóter refere-se ao “estranho” como sendo um ritual de deslocamento relevante, no sentido de arejar a familiarização do sujeito diante das virtudes e dos vícios comportamentais que caracterizam a condição humana.

O aspecto de íntima familiaridade da estranheza aqui em questão nos remete, dentre outros aspectos, ao tema do narcisismo, como condição desta familiaridade que vemos muitas vezes mostrar-se estranha ao “eu”. A partir das formulações do psicanalista Jacques Lacan sobre o estádio do espelho, observamos que a imagem própria, que só pode ser apreendida numa exterioridade, pode tornar-se fonte de estranheza, como ocorre no fenômeno do duplo, exemplo paradigmático do unheimlich. Anterior às especulações reflexivas nesta matéria, Machado de Assis, por meio do personagem Jacobina, já trazia elementos ficcionais instigantes para o debate acerca dos meandros comportamentais que compõem a personalidade. Sobre a essência e aparência como vetores pertencentes à psicologia humana, o alferes, no conto O espelho: esboço de uma nova teoria humana (1882), desenvolve o seguinte parecer: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”. Nosso psiquismo ocupa, portanto, a posição de entrelugar, envolvendo tanto os anseios internos como os anseios externos que afetam, diretamente ou indiretamente, o processo de construção identitária.

A partir do conceito freudiano de inconsciente, a noção de estranho passa a ser concebida como um dos aspectos do psiquismo, perdendo seu caráter patológico para integrar, no seio da unidade presumida pelo sujeito, uma alteridade. Somos divididos, estrangeiros para nós mesmos, já que “o eu não é senhor em sua própria casa”, destaca Freud, no artigo Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917). Pelos caminhos de Freud, a gente se depara com a constituição de uma imagem própria, seu papel indispensável na constituição do “eu” e, ao mesmo tempo, a fragilidade e o estatuto de ficção deste eu, assim como a exterioridade desta imagem própria, já que, segundo o poeta Rimbaud, “eu é um outro”. O psicanalista, no texto dedicado à questão da inquietante estranheza, retoma esta subversão, mostrando que aquilo que sentimos como estranho não é nada novo, mas sim intimamente familiar, “aquilo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz”. 

* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

A PERFEIÇÃO NÃO EXISTE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*



Considerando melhor o aprendizado com a arte de saber lidar com a incerteza, sem torná-la apavorante, minha subjetividade, incluindo crises de depressão e euforia no meio do caminho, vem experimentando processos lapidares de formação continuada. Crises, é bom que se diga, costumam possibilitar “aberturas para um milagre”. A última delas, por exemplo, fez-me pensar sobre a nossa fase quadrúpede. Momento em que o ser humano tinha a sua animalidade mais acentuada, e o seu nariz mais apto a farejar. Estávamos mais entregues à gravidade, mais coladinhos ao chão. Por isso, também englobo este momento como situação de “entrega”. Clinicamente falando, o sentimento de “entrega” se faz muito presente na depressão. Era como se eu voltasse a ter as mãos e os joelhos prostrados no chão. Longe de alimentar este parecer como situação humilhante, sublinho que a experiência depressiva me fez olhar o chão em lugares outros que este não se encontrava naturalmente presente. Cabisbaixo estava, o que denotava uma típica postura depressiva, “obrigação postural” voltada sempre para o centro da gravidade. Repare aqui o peso do “sempre”. Olhar para o chão faz parte. Porém, com a leveza presente na expressão: “de vez em quando”.

Quando o termo “de vez em quando” aparece, de fato, como busca temporal do ser em vivenciar melhor a espacialidade, temos a façanha de fundamentar uma nova postura: a de ficarmos com a cabeça erguida. Com ela, olhamos para o alto, e este ar de elevação nos movimenta a encontrar nossas asas em plenos pés no chão. Levamos muito tempo histórico para transcender a posição quadrúpede e, assim, experimentar a nossa condição bípede. Isto aconteceu quando a gente começou a resistir às ambições gravitacionais, que nos empurravam para baixo. Considero este momento como situação de “resistência”. Se esta “resistência” for mal lida como onipotência, experimenta-se um desajuste psíquico chamado euforia ou felicidade desmedida. Ciente desse transtorno, também chamo de “resistência” a potência necessária para que possamos alcançar a saúde.

Entre a entrega e a resistência, a vida, bailarina, se comporta; aprendemos como seres viventes que a flexibilidade qualifica a coerência. Como podemos, de fato, melhorar de verdade? Pensei na expressão “Melhorou?”, como termo de gradual evolução, o que difere do verbo “curou?”, no qual a doença é percebida como inimiga, e a solução como panaceia (algo muito perigoso e imediatista, pois oferece razão à nossa prepotência). Vale, neste contexto, tomar conhecimento de uma história contada pelo médico e campeão da Copa do Mundo de 70, Tostão, em seu fabuloso livro A perfeição não existe (2012). Quando era professor de medicina e orientador dos futuros especialistas em clínica médica, Tostão e sua equipe viveram um forte desafio:

“No Hospital Universitário, havia um doente portador de asma brônquica. Ele não melhorava. O médico-residente estava em pânico. Discutimos várias vezes o problema do paciente, trocamos os medicamentos, fizemos reuniões clínicas, estudamos a literatura recente, consultamos os especialistas – sem resultado. Havia algo errado que fugia à nossa compreensão. Uma noite, fui ao hospital conversar com o paciente. Queria conhecer melhor o doente, e não apenas a doença. Aproveitei o silêncio e o sono de outros pacientes da enfermaria, sentei-me ao seu lado e batemos um papo. No final da conversa, após idas e vindas, confissões e recuos, ele me disse: ‘Doutor, o jovem médico que cuida de mim não tem culpa. Nem ele, nem você, nem ninguém vai resolver o meu problema. Não melhoro porque no fundo da alma não quero melhorar’”.

Sinto nesta narrativa uma oportunidade rica de compreender a saúde como o encontro (ou reencontro) da gente com o fundo da nossa alma. É a saúde que nos tira da posição de entrega para a condição de resistência. A doença deixa de ser percebida por quem a sente somente como gravidade. A doença é a melhor amiga para indicar o que está errado em nosso organismo. Assim percebida, temos como averiguar o que está impedindo o ser humano de tirar melhor proveito da sua resistência bípede. A entrega quadrúpede se aprofunda em momentos depressivos, considerando também os seus opostos eufóricos.

Esta reflexão proposta por nós ganhou um frescor poético fascinante, quando dialogamos com outras formas de entendimento da vida. Refiro-me, aqui, por exemplo, a música Gravity (2008), de John Mayer: "Gravity is working against me/And gravity wants to bring me down/Oh, I'll never know what makes this man/With all the love that his heart can stand/Dream of ways to throw it all away/Oh, gravity is working against me/And gravity wants to bring me down/Oh, twice as much ain't twice as good/And can't sustain like a one half could/It's wanting more that's gonna send me to my kness/Oh, gravity stay the hell away from me/Oh, gravity has taken better men than me/How can that be?/Just keep me where the light is/Just keep me where the light is/Just keep me where the light is/C'mon keep me where the light is/C'mon keep me where the light is/C'mon keep me where, keep me where the light is".

Propõe o músico estadunidense uma interpretação refinada sobre o fenômeno da gravidade que afeta o temperamento humano. Mayer alerta que o peso existente no viver não deve ter carga dobrada. É por meio da leveza que a gente deixa de embarcar na exigência demasiada voltada para suportar tudo o que se passa, evitando, desse modo, a queda de joelhos. O artista informa, com pesar, o fato de a gravidade ter levado pessoas brilhantes. Face ao exposto, solicita que a luz esteja onde ele se encontra, fazendo com que a escuridão trazida pela gravidade deixe de existir. Aproveitando a proposta de Mayer, consideramos "cair de joelhos" uma forte imagem para ilustrar a noção de "entrega" que nos adoenta profundamente. Já, trazendo à baila a concepção de "resistência", consideramos a saúde como a "luz" fundamental para a qualidade de vida humana existir.

* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.