sábado, 13 de junho de 2015

FUNK E CORPO-MÍDIA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Som na caixa, DJ!: “Ela não anda, ela desfila/Ela é top, capa de revista/É a mais mais, ela arrasa no look/Tira foto no espelho pra postar no facebook”. Trata-se da canção “Ela é top” (2012), funk de Mc Bola, que estourou nas paradas do sucesso. Uma música que até hoje provoca rebolados, mas também pode sugerir reflexões. É uma excelente oportunidade para destacar e analisar o exibicionismo do corpo-mídia como valor social. Percebe-se, nesse sentido, a preponderância da cultura da imagem frente aos desafios de qualidade interior por que passa o ser humano em seus dilemas existenciais. O funk de Mc Bola ostenta o narcisismo operante, além de subjugar a mulher como objeto de cobiça e “dama fatal”.  

A música em questão retoma a mitologia grega, especificamente o momento em que Narciso, jovem de rara beleza, fatigado pelo calor foi repousar à beira de um regato. Impressionado pela própria imagem, vista no espelho das águas, arrebatado pela própria beleza apaixonou-se por si mesmo. O mito de Narciso retrata valores e atitudes que dominam a sociedade contemporânea, caracterizada como idade do narcisismo. Sigmund Freud foi quem cunhou o termo “narcisismo” e o incluiu ao vocabulário da psicologia para designar o amor à própria imagem e à fase infantil, na qual a criança faz do próprio eu o objeto prioritário de seu amor.

O comentário a seguir feito por Gilles Lipovetsky, em Os tempos hipermodernos (2004), ajuda a compreender a atitude da personagem da música de McBola: “A busca dos gozos privados suplantou a exigência de ostentação e de reconhecimento social: a época contemporânea vê afirmar-se um luxo de tipo inédito, um luxo emocional, experiencial, psicologizado, substituindo a primazia da teatralidade social pela das sensações íntimas”. Assim podemos também acessar as raízes comportamentais da top model em se exibir na mídia como vitrine do ego. Muito mais do que ser, importa ser percebida. O efêmero permeia o espaço íntimo e social. Até as relações interpessoais caem na malha do imediato, do pragmático, embora refletindo menos a perda do sentido relacional do que o esforço de aspiração à autonomia privada. Eletronicamente dominados pela hipermídia virtual e personalizada, produzida pela sociedade pós-informacional, indivíduos se eletrizam isoladamente em decibéis, fechando-se em seu reduto. Podemos ilustrar esta atitude por meio da seguinte passagem musical: “Onde ela chega rouba a cena deixa os moleques babando/Na porta do pico arruma buchicho e as invejosas xingando/Baladeira de oficio não gosta de compromisso/Encanta com seu jeitinho ela não é de ninguém/Mas é chegada num lancinho”.

Desse modo, a necessidade de comunicação se reconstrói sob outro enfoque: o individualista. No vazio da troca e no eclipse do face a face, percebe-se o desejo da comunicação midiática, possibilitando relacionar-se, mas ao mesmo tempo permanecer livre e anônimo, intercambiando informações com desconhecidos através do aparato tecnológico das infovias. Essa reviravolta civilizacional que privilegia o cultivo do corpo e a autonomia individual não é mais organizada pela forma disciplinar. É a diversificação, o self-service que organiza a vida na democracia avançada, e que, contraditoriamente, busca a unidade e a coesão social na desordem e na comunicação artificial, aberta a todos pelas infovias comunicacionais.

A busca do corpo ideal vem sendo objeto de uma incansável interrogação que se estende das páginas dos jornais aos salões dos museus, dos outdoors das avenidas às salas e cinema, dos programas de televisão aos debates acadêmicos. Percebemos que manuais de dietas, prometendo regimes cada vez mais infalíveis, para produzir corpos livres de gordura, esbeltos e graciosos, são tipos de publicações que aparecem invariavelmente entre os livros ou revistas mais vendidos. A nossa cultura contemporânea marcada pela égide do consumo, do individualismo e hedonismo parecem entender corpo como sinônimo da boa forma. A respeito, Denise Bernuzzi de Sant’anna, em Corpos de passagem (2001), comenta: “A boa forma passa a ser considerada uma espécie de melhor parte do indivíduo e que, por isso mesmo, tem o direito e o dever de passar por todos os lugares e experimentar diferentes acontecimentos. Mas aquilo que ainda não é boa forma e que o indivíduo considera ‘apenas’ o seu corpo, torna-se uma espécie de mala por vezes incomodamente pesada, que ele necessita carregar, embora muitas vezes ele queira escondê-la, eliminá-la ou aposentá-la. Durante séculos o corpo foi considerado o espelho da alma. Agora ele é chamado a ocupar o seu lugar, mas sob a condição de se converter totalmente em boa forma”.

É notório o quanto o conceito de boa forma é confundido com o significado de saúde. Ambos os conceitos se referem às condições do corpo, mas o primeiro confere uma certificação de pertencimento e inclusão. Podemos compreender a importância do corpo no sonho de tornar visível o belo, o bem-estar e a felicidade. O corpo parece, então, ter se tornado uma espécie de íntimo companheiro, um verdadeiro parceiro daquele de quem se exige a melhor apresentação, as sensações mais originais, a boa resistência, a juventude eterna e o corpo esbelto pela magreza. O indivíduo é convidado a descobrir o corpo como um grande potencial, onde é necessário manter certa sedução e explorar todos os limites possíveis. Nesta lógica dos dias atuais, o corpo transforma-se em objeto a ser moldado, modificado, modulado, conforme o gosto do dia. O corpo é apresentado e tecnicamente testado como ferramenta indispensável na realização dos ideais da aparência, da ostentação, do bem-estar e da felicidade na atualidade. Trata-se de experimentar, à custa do corpo, a capacidade íntima em corresponder aos ideais narcisistas de nossa sociedade.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários (FALE/UFMG).

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