quinta-feira, 4 de junho de 2015

ELOGIO DA LOUCURA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


O teólogo holandês, Erasmo de Rotterdam (1469-1536), destacou-se como um dos maiores intelectuais europeus do século XVI, devido ao seu talento crítico. Encorajou a urgência por reformas, encontrando repercussões para as suas ideias tanto na Reforma Protestante, quanto na Contra-Reforma Católica. Considerado um dos principais humanistas da Europa em fins da Idade Média e início da Moderna, Erasmo de Rotterdam soube atacar, com muita astúcia e capacidade, os abusos e as contradições presentes no clero e em toda sociedade de sua época, sugerindo alternativas para uma vida moralmente correta. Em sua obra, até a burguesia não escapa da crítica rotteriana: “os negociantes, sobretudo, são os mais sórdidos e estúpidos atores da vida humana: não há coisa mais vil do que a sua profissão, e, como coroamento da obra, exercem-na da maneira mais porca”.

Em Elogio da loucura (1509), Erasmo de Rotterdam demonstra como a loucura se apresenta como mecanismo norteador das atitudes humanas. Por exemplo, a Igreja, detentora de grandes poderes, é questionada por Rotterdam devido aos grandes luxos dos bispos e dos padres: “Gabam-se os veneráveis cardeais de descenderem em linha reta dos apóstolos, mas eu desejaria que filosofassem um pouco sobre os seus hábitos”. A obra de Erasmo é diferenciada e chama a responsabilidade das ações e impulsos humanos para a deusa grega Moria, ou seja, a energia de criação no cotidiano humano. O autor diz: “A Loucura tem tantos atrativos para os homens, que, de todos os males, é ela o único que se estima como um bem”. 

Conforme Erasmo, a loucura forma as cidades, os governos, a religião e a própria vida, consistindo em uma espécie de divertimento da mesma. O teólogo ridiculariza não apenas os sacerdotes e os poderosos da Igreja, mas toda a organização de seu tempo. Erasmo retrata com caráter extremamente satírico as aberrações, os contrassensos e as mazelas presentes nas diversas classes sociais e instituições vigentes. Erasmo, baseando-se em conhecimentos da mitologia grega, descreve os sentimentos humanos como parte de uma conveniente atuação da loucura na vida dos príncipes ou dos possuidores de altos cargos europeus, os então privilegiados na sociedade. Ele escreve: “Não posso deixar de lastimar a sorte dos príncipes. Oh! Como são infelizes! Inacessíveis a verdade, só contam com a amizade dos aduladores. Por que será que os príncipes não gostam de prestar ouvidos à verdade?”.

Para o teólogo, a loucura representa a sinceridade despojada, pois ela “não dissimula no rosto o que não sente no coração”. O grande problema do regime social, segundo Erasmo, se concentra na linha normativa adotada pelos homens que se valem de “máscaras” para dissimular seus verdadeiros sentimentos a favor da manutenção conveniente do poder dominante. Poeticamente, o assunto em questão ganha abordagem categórica graças à lavra criativa de Aciomar de Oliveira, expressa no livro Todas as vozes (2014). O poeta mineiro, em “Pena capital”, apresenta a conjuntura destrutiva que é arquitetada pelas práticas de inibição dirigida ao saber de cunho emancipatório:

“Há morte em ser conformista/acatar o imposto dicionarista/grama sintática sintética/hermética dominante/alienante/há morte no desconhecimento/e isso é tão cruel quanto o desvendar-se/a morte sutil é tão letal/quanto a censura/amortece o impacto da loucura/resistindo à violência do silêncio fatal/marginal/linha vermelha e sanguínea/sanguinária/alma do avesso/stop/no controle da televisão/minha remota decisão/abalada abalroada no trânsito/dos conceitos dominantes/a polis vicia/e violenta a serviço da elite capital/decapitar a loucura/que se move/como uma bala perdida/é este o salário do capital pecado/amigo, comova-se/mova-se”.

Ziraldo também se inspira no “elogio da loucura”, ao escrever A professora maluquinha (1995). O problema é que fazer o que deveria ser feito por uma educadora, incentivar a escrita e a leitura, sorrir, ser amiga dos alunos, tudo isso acaba sendo visto pela ‘fúria normatizadora’, através do adjetivo “maluquinha”, como loucura, desvio, tolice. Desvencilhando-se do modelo educacional sisudo e conservador, a professora “maluquinha” possui a habilidosa competência de transformar o aprendizado em uma atividade lúdica. Aprender a língua, por meio do Jogo da Rima ou do Jogo Caça Palavra, tem como projeto político pedagógico o nobre princípio em destaque: “Era uma espécie de campeonato, onde, em vez de corrermos atrás da bola, nós corríamos atrás das palavras”. 

Com a professora maluquinha, não havia castigos. Os próprios alunos julgavam, num democrático júri, os comportamentos que pareciam equivocados. Não à toa os estudantes eram capazes de perder o recreio para ficar na sala de aula. Quem se opunha à educação libertária promovida pela professora maluquinha era a diretora e o padreco. Nos dias em que a professora estava feliz, e a turma vibrava, a diretora rabugenta gritava: “vamos parar com essa felicidade aí!”. O padreco, por sua vez, considerava ler gibi como pecado, assustando os meninos que escondiam as revistinhas. 

Como trilha sonora para melhor acolher as discussões trazidas pela ousadia reflexiva de Erasmo de Rotterdam, considerando conjuntamente os desdobramentos contemporâneos de suas teses arrojadas sobre a loucura, é recomendável ouvir “Balada do louco” (1972), eternizada pelo grupo Os Mutantes: “Dizem que eu sou louco por pensar assim/Se eu sou muito louco por eu ser feliz/Mas louco é quem me diz/E não é feliz, não é feliz”.  


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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