sexta-feira, 13 de novembro de 2015

OS MONSTROS NASCEM ANJOS

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Parece natural o nosso amor pelas crianças, entretanto, nem sempre esse sentimento aparece na ordem dos tempos. Pelos três evangelhos sinóticos (Mateus 19,13-15; Marcos 10,13-16; e Lucas 18,15-17), sabemos o apreço especial que Jesus tinha pelas crianças: “Alguns traziam crianças a Jesus para que ele tocasse nelas, mas os discípulos os repreendiam. Quando Jesus viu isso, ficou indignado e lhe disse: ‘Deixem vir a mim as crianças, não as impeçam; pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas. Digo a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele’. Em seguida, tomou as crianças nos braços, impôs-lhes as mãos e as abençoou”.

Revela Philippe Ariès, em História social da criança e da família (1973), que a infância é uma invenção moderna. A partir do fim do Antigo Regime, momento de triunfo do individualismo de nossa cultura, as crianças são de fato amadas porque se tornaram os depositários de nossas esperanças frustradas de felicidade. Nós as amamos como o sonho irresistível do que não conseguimos vir a ser. Não estranha então que Freud nos dê esta explicação do amor moderno pelas crianças: nós as amamos como ectoplasmas de uma perfeição que os avatares da vida já nos recusaram. Delas, esperamos que nos ofereçam a imagem de uma plenitude e de uma felicidade que não é, e nunca foi, aliás, a nossa, mas graças à qual podemos amar a nós mesmos.

Não à toa a identificação da voz poética de Gonzaguinha com as crianças. Ao especular sobre os sentidos da vida, o artista, na música O que é? o que é? (1982), prefere acompanhar a leveza lúdica conferida ao tema pela meninada: “Eu fico com a pureza da resposta das crianças/É a vida, é bonita, é bonita/Viver e não ter a vergonha de ser feliz/Cantar, e cantar, e cantar/A beleza de ser um eterno aprendiz/Ai meu Deus, eu sei (eu sei)/Que a vida devia ser bem melhor/E será, mas isso não impede que eu repita/É bonita, é bonita, é bonita”. 

Olhamos para as crianças como para uma foto de nossa infância onde queremos parecer felizes. E para isso as protegemos, cuidamos e satisfazemos. Os adultos fizeram das crianças a caricatura da felicidade impossível: vestidas de feliz, isentas das fatigas do sexo e do trabalho, idealmente despreocupadas. Isso é suficiente para que o sofrimento de uma criança seja, aos nossos olhos, atroz. Após marcar o milésimo gol de sua carreira, Pelé, em 19 de novembro de 1969, pediu solidariedade: “Pensem no Natal. Pensem nas criancinhas. [...] Volto a lembrança para as criancinhas pobres, necessitadas de uma roupa usada e de um prato de comida. Ajudem as crianças desafortunadas, que necessitam do pouco de quem tem muito. (...) Pelo amor de Deus, o povo brasileiro não pode perder mais crianças”, alertou o Rei do Futebol.

Face ao exposto, o que o Governo brasileiro está fazendo pela educação de nossas crianças? Apesar de registrar aumento nos gastos públicos com educação nos últimos anos, o Brasil tem ainda um longo desafio pela frente: equiparar os recursos aplicados nos ensinos superior e básico. Segundo informa o relatório Education at a Glance, divulgado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as instituições públicas de ensino superior, considerando a realidade nacional, gastam 4 vezes mais por aluno do que as escolas de ensino fundamental e médio, onde encontram-se 84,5% dos estudantes brasileiros. A educação recebe 19% dos investimentos do país, enquanto a média dos países da OCDE é de 13%. Entretanto, o investimento por aluno, no Brasil, se encontra na faixa de US$ 2.985 (11.254 reais), o equivalente a um terço da média dos 34 países integrantes da OCDE, que é de US$ 8.952 (33.751 reais).

Já alertava o jornalista Dídimo Paiva, no artigo “Ensino chato, culpa do governo” (Estado de Minas, 24/12/2000), que “a raiz da crise é conhecida: perdeu-se a finalidade principal do ensino fundamental (antigo curso primário) que, como estabelece o artigo 205 da Constituição, deve visar ‘o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho’”. O documento, intitulado O Impacto do Desenvolvimento na Primeira Infância sobre a Aprendizagem (2014), produzido pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), formado por estudiosos de Harvard, da Faculdade de Medicina da USP e da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, mostra que o investimento nessa etapa tem impacto positivo não só no desempenho acadêmico, mas influencia toda a vida, gerando maior renda, melhor saúde e até menor criminalidade. A publicação se destaca pela consistência científica de seus argumentos: “O desenvolvimento cerebral que permitirá a aprendizagem ao longo da vida se inicia na gestação e tem especial relevância durante a primeira infância. [...] Por meio de um processo chamada ‘sinaptogênese’, o número de sinapses entre os neurônios se multiplica, chegando a 700 novas conexões por segundo, em algumas regiões cerebrais, no segundo ano de vida”.

Comparando com a planta de uma construção, a “Pátria Educadora” prefere promover o teto a assentar a base. Não priorizar investimentos em educação, desde a tenra idade, significa colaborar para o processo de “poda sináptica”. As sinapses mais utilizadas se fortalecem e carregam informações de forma mais eficiente, enquanto as que não forem estimuladas pelo processo de ensino e aprendizagem gradualmente enfraquecem e desaparecem. Enquanto isso, nosso Congresso Nacional prefere rasgar o Estatuto da Criança e do Adolescente para promover a redução da maioridade penal. As “autoridades” solenemente ignoram as realidades mais substantivas, atropelando-as por conta de um instinto carcerário que parece socialmente predominar. Acontece que “os monstros nascem anjos”, como bem salienta o poeta Wanderson Adriano Marcelo.
  
* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

LAMA IMORAL

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Ditado catalão: “Entre Deus e o dinheiro, o segundo é sempre o primeiro.” Do caos à lama, eis o resultado de um país que, inebriado pela ganância financeira, vira as costas para a sustentabilidade: “Eram 16h20 quando um estrondo anunciou a tragédia que ficará para sempre marcada na história de Minas Gerais e, sobretudo, nas memórias de moradores das cidades de Mariana e Ouro Preto. A barragem do Fundão, da Mina do Germano, propriedade da mineradora Samarco, entre os dois municípios da Região Central do estado, estourou, liberando um tsunami de lama e rejeito tóxico que varreu o que encontrava pela frente. O povoado de Bento Rodrigues, distante 2,8 quilômetros, onde havia 200 casas e viviam 620 pessoas, foi arrasado”, informam os repórteres Landercy Hemerson, Rodrigo Melo e Roney Garcia, no Correio Braziliense de 06/11/2015.
Em Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra (2008), Leonardo Boff oferece ao público um conceito acertado acerca da sustentabilidade: “Diz-se que uma sociedade ou um processo de desenvolvimento possui sustentabilidade quando por ele se consegue a satisfação das necessidades, sem comprometer o capital natural e sem lesar o direito das gerações futuras de verem atendidas também as suas necessidades e de poderem herdar um planeta sadio em seus ecossistemas preservados.” Além desta contribuição conceitual, o teólogo e filósofo brasileiro destaca São Francisco de Assis (1182-1226) como figura exemplar em prol da sustentabilidade no planeta.
Fazendo questão de destacar os laços de fraternidade que nos une a todos os seres, o padroeiro da sustentabilidade, com ternura, chamava a todos de irmãos e de irmãs: o Sol, a Lua, as formigas e o lobo de Gubbio. Para São Francisco de Assis, todas as coisas tinham um coração, um pulsar pelo qual nutria veneração e respeito, considerando como especial cada ser, por menos que fosse. Mesmo as ervas daninhas, nas hortas, eram bem consideradas por São Francisco de Assis, pois, na visão dele, elas, do seu jeito, louvavam o Criador. Assim, o notável evangelista simboliza o modo-de-ser do cuidado com respeito ao meio ambiente, representando um modelo verdadeiramente alternativo ao modo-de-ser do trabalho-dominação-agressão da natureza, conforme bem observa Leonardo Boff.
Admirado em nosso país, São Francisco de Assis sintetiza muito bem o vanguardismo ambientalque se faz pujante no Brasil, potência ambiental por natureza. O reconhecimento deste mérito se faz presente pelo menos desde a Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500. Mesmo sabendo das intenções patrimonialistas da coroa portuguesa em extrair ao máximo os recursos naturais da colônia “descoberta”, o documento em questão revela o fascínio dos que aqui aportaram: “Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro e Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”
Do trecho em destaque nasceu o famoso “em se plantando tudo dá”. Infelizmente, esta característica atraiu muito mais a ganância predatória do que o zelo preservador. Se, na esteira orgulhosamente nacionalista de Jorge Ben Jor, na canção País tropical (1969), podemos nos orgulhar de que “moro no país tropical/abençoado por Deus/e bonito por natureza”, temos que admitir que o nosso patrimônio ambiental é constantemente dilapidado de forma tenebrosa, conforme testemunhou, certa vez, o poeta árcade Cláudio Manuel da Costa (1729-1789): “Leia a posteridade, ó pátrio Rio,/Em meus versos teu nome celebrado;/Por que vejas uma hora despertado/O sono vil do esquecimento frio:/Não vês nas tuas margens o sombrio,/Fresco assento de um álamo copado;/Não vês ninfa cantar, pastar o gado/Na tarde clara do calmoso estio./Turvo banhando as pálidas areias/Nas porções do riquíssimo tesouro/O vasto campo da ambição recreias./Que de seus raios o planeta louro/Enriquecendo o influxo em tuas veias,/Quanto em chamas fecunda, brota em ouro”. Destacando as belezas do Ribeirão do Carmo, o “pátrio Rio”, Cláudio Manuel da Costa, neste soneto, também ressalta a ambição desenfreada daqueles que exploravam, no século XVIII, o ouro presente naquela importante paisagem mineira.
No poema “Estranhas Minas” (Em ponto de bala, 2013), Ricardo Evangelista também denunciou a ordem econômica como responsável direta pelo descaso brutal que afeta nossa dimensão ecológica: “Minas estranha/o que te dá nome/estraga vossas estranhas./Minas,/extirpam suas tripas/de ouro, calcário/diamante ferro brita./Estupram vossas matas/rios, lagos e grutas./Exportam pro estranja/China, Europa, Japão./Poucos imaginam, mas esse apito do trem/é um grito do minério que te roubam às escondidas./Oh! Minas Gerais! Que esvai em feios vagões./No caminho que tu andas não restará nem os Gerais.”
Face ao exposto, é preciso encarar a questão da sustentabilidade como princípio máximo do comportamento responsável a favor da qualidade de vida. Para tanto, é preciso que o investimento de recursos, a direção do desenvolvimento tecnológico e as mudanças institucionais estejam em sintonia com o estímulo voltado para o progresso da geração presente, como também da geração futura, suprindo, assim, suas necessidades e aspirações. Considerando a etimologia latina da palavra, o termo sustentabilidade provém dos verbos sustentare (manter) e sustinere (não deixar cair). O desenvolvimento que ignora a preservação e o progresso do nosso ecossistema, no fundo, se consolida como subdesenvolvimento traumático, resultante da histórica falta de cuidado para com todos os seres da criação.

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

PEDAGOGIA DA QUALIDADE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Estamos em plena sociedade do conhecimento. Do ponto de vista do mercado, interessa apenas a qualidade formal, ou o manejo do conhecimento como ferramenta de produtividade. Mas do ponto de vista da cidadania, interessa, antes de mais nada, a qualidade política, ou seja, a capacidade de se fazer sujeito crítico e atuante, incluindo a necessidade de submeter o mercado aos direitos da cidadania. O conhecimento, mesmo sendo talvez o filho predileto e maior da humanidade, tem sido, como regra atrelado ao poder e, hoje, serve sobretudo à lógica do mercado neoliberal. O neoliberalismo é a colonização elevada ao quadrado. A educação precisa, por sua vez, saber resgatar, de um lado, a potencialidade enorme do conhecimento, e, de outro, sua inserção ética. Ou seja, combinar qualidade formal e política.

Para um observador superficial, a verdade científica não está sujeita à dúvida; a lógica da ciência é infalível e se, por vezes, os sábios se enganam, isso acontece por terem desprezado a lógica científica. A busca do conhecimento, com humildade e sem soberba, vem contribuindo para avanços escolares que saibam melhor lidar com o cenário de incertezas, uma vez que ter convicção significa cair na tentação da certeza doutrinária, o que impede a formação e a consolidação do pensamento e da sensibilidade arejados. A respeito, torna-se emblemática a história contada por Dante Alighieri, em Convívio III, XI (1304-1307):

“Pitágoras, ao ser interrogado se se considerava sábio, negou a si mesmo essa denominação e disse de si que não era sábio, mas amante da sabedoria. E daqui surgiu que qualquer estudioso da sabedoria fosse chamado ‘amante da sabedoria’, isto é, ‘filósofo’; pois em grego ‘philos’ equivale a ‘amor’ em latim, e por isso dizemos ‘philos’, quase amor, e, 'sophos', quase sábio [...]. Filosofia não é outra coisa senão amizade à sabedoria ou ao saber, porque [...] gera em cada um o desejo de saber”. 

Clarice Lispector, em artigo publicado no Jornal de Brasil, de 02/11/1968, propõe uma distinção conceitual entre inteligência e sensibilidade inteligente, favorecendo essa segunda virtude como sendo especial em matéria de juízo de valor qualificado: “As pessoas que falam de minha inteligência estão na verdade confundido inteligência com o que chamarei agora de sensibilidade inteligente. Esta, sim, várias vezes tive ou tenho. E, apesar de admirar a inteligência pura, acho mais importante, para viver e entender os outros, essa sensibilidade inteligente [...]. Suponho que esse tipo de sensibilidade, uma que não só se comove como por assim dizer pensa sem ser com a cabeça, suponho que seja um dom. E, como um dom, pode ser abafado pela falta de uso ou aperfeiçoar-se com o ouso. Tenho uma amiga, por exemplo, que, além de inteligente, tem o dom da sensibilidade inteligente, e, por profissão, usa constantemente esse dom. O resultado então é que ela tem o que eu chamaria de coração inteligente em tão alto grau que a guia e guia os outros como um verdadeiro radar”.

Enquanto governança e sociabilidade, como promover a formação e a consolidação de escolas que incentivem o emprego da sensibilidade inteligente como conduta comportamental exemplar? Faz-se necessário, primeiramente, conceber as instituições de ensino e aprendizagem como unidades epistemológicas que possam nos encorajar eticamente enquanto lutadores colaborativos em prol do bem-estar coletivo. É preciso sentir o drama social com tanta intensidade para viver de coração perplexo frente às grandes injustiças que são submetidas as chamadas classes menos privilegiadas. Para tanto, uma escola de verdade necessita ter como pressuposto básico o exercício constante da pedagogia da qualidade como horizonte ideal e caminhada prática. 

Na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (maio/agosto, 1987), Eduardo Portella, crítico literário, professor e ex-ministro da Educação e Cultura, cunhou o termo “pedagogia da qualidade” para o Brasil ultrapassar o patamar conservador da “modernidade truncada”. A respeito, Portella sublinha que só a qualidade de ensino e aprendizagem, em termos democráticos, oferecerá condições materiais e culturais para que verdadeiros potenciais de genialidade e inventividade possam aflorar e se manifestar em todas as classes. Para tanto, o país precisa concentrar seus esforços em prol da cidadania, “não uma cidadania contemplativa, essa cidadania das grandes comemorações cívicas, mas uma cidadania ativa e criativa, uma cidadania crítica”.

Portella pensa, portanto, a educação como suprema expressão da alteridade sincera e respeitosa: “Para que possamos, portanto, chegar a esse exercício crítico da cidadania, precisamos, evidentemente, passar pela qualidade, mas passar pela qualidade plantada enraizadamente. Precisamos evidentemente pensar o compromisso pluralista ou o reconhecimento da diferença. Há também uma tendência, não só no conhecimento, mas nas formas de convivência, de liquidação do outro. Nós somos uma cultura, fundamentalmente uma cultura do mesmo, e como cultura do mesmo nós exercemos autoritariamente o poder do mesmo sobre o outro, o poder do idêntico sobre o diferente; tanto que se fala muito, nas políticas oficiais, em identidade nacional. Eu, por exemplo, agora publiquei um pequeno prospecto em que falo em diferença nacional; estou realmente muito mais preocupado com a diferença nacional do que com a identidade nacional”. Afinal de contas, um aprendiz da diferença nunca será um professor da indiferença. Convém sempre acreditar na educação como a vitória sublime da emancipação sobre a grotesca repressão. 


* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

BRASIL CABEÇÃO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Em crônica publicada no jornal Zero Hora, de 19/05/2012, a jornalista porto-alegrense Cláudia Laitano disse algo superimportante: “realmente surpreendente seria se os estudantes brasileiros fossem brindados com um programa de educação tão sério e eficiente que algum gaiato resolvesse apelidar de ‘Brasil cabeção’. Carinho, elas querem é da família. O que as crianças miseráveis do Brasil precisam, do Estado, é menos amor e mais confiança”. Em um país com mais de 70 milhões de jovens com menos de 18 anos e onde a vulnerabilidade de crianças, expostas à pobreza e a todo tipo de iniquidade, é recorrente, o retrato do abandono dos pequenos brasileiros é visível e perturbador na maioria das cidades. É muito comum observar centenas de crianças soltas pelas ruas, totalmente desprotegidas e entregues à sorte. Desse imenso contingente, as crianças negras são as que têm menos chance de escapar da pobreza. 

No semiárido, segundo o Unicef, órgão das Nações Unidas para a Infância, de cerca de 14 milhões de crianças e adolescentes, 70% são classificados como pobres. Dentro do chamado Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), assumido pelo Estado, o Brasil ainda está longe de atingir as metas propostas para essa parcela da sociedade. As crianças pobres têm o dobro de chance de morrer, em comparação com as crianças das classes mais ricas. Essa situação agrava mais a questão da escolaridade.

Uma em cada quatro crianças permanece ainda fora da escolaridade. Nas regiões mais pobres, somente 40% delas terminam a educação fundamental. No Brasil, segundo estatísticas de 2008, a cada dia ocorrem, em média, 150 casos de violência psicológica e física envolvendo menores; nesses números estão incluídos os casos de abuso sexual contra meninas. Ocorre, no entanto que, grande parte dos casos contra os menores ocorrem dentro do lar e envolvem os parentes próximos. Os números poderiam ser ainda mais graves, se todas as ocorrências dentro do lar fossem devidamente denunciadas. 

O Anuário Brasileiro da Educação Brasileira (jun./2015) mostra que mais de 50% das crianças chegam analfabetas ao fim do 3º. ano do ensino fundamental. E mais: 93% não tem fluência em matemática. Encaminhamos mais alunos à escola, mas não os preparamos para que estejam aptos à cidadania e ao mercado de trabalho. Antonio Machado, na coluna “Brasil S/A” (Correio Braziliense, de 08/11/2015), critica, com razão, esse quadro catastrófico: “a educação cresce em quantidade e recursos, mas sem qualidade, enquanto a economia fecha empregos. Ao volta a criá-los, não encontrará o que a tecnologia já passou a demandar. É a tragédia circular, refletida em estudo da organização francesa Youthnomics junto a 64 países sobre onde jovens de 15 a 29 anos têm mais oportunidades de prosperar e ser feliz. O Brasil é o 60º. dessa lista, filtrada por 59 critérios, da qualidade da educação ao nível de emprego, da liberdade de costumes à realização pessoal”.

Gilberto Dimenstein, no livro O cidadão de papel: a infância, a adolescência e os Direitos Humanos no Brasil (1994), categoricamente ressalta: “A criança é o elo mais fraco e exposto da cadeia social. Se um país é uma árvore, a criança é um fruto. E está para o progresso social e econômico como a semente para a plantação. Nenhuma nação conseguiu progredir sem investir na educação, o que significa investir na infância. E isso por um motivo bem simples: ninguém planta nada se não tiver uma semente. E as árvores doentes não dão bons frutos. A viagem pelo conhecimento da infância é a viagem pelas profundezas de uma nação”. Considerando a infância como a maior vítima da violência, observa-se que a cidadania brasileira, garantida nos papéis, não existe de verdade para todos. Dimenstein chama esse triste fenômeno de “cidadania de papel”. Salienta, com precisão, o jornalista: “Estou convencido de que a infância, frágil como um papel, é o mais perfeito indicador do desenvolvimento de uma nação. Revela melhor a realidade do que o ritmo de crescimento econômico ou a renda per capita”.  

No livro Amanhecer Esmeralda (2005), o escritor Ferréz narra a saga da linda garotinha chamada Manhã que tem sua vida positivamente transformada graças à educação. É comovente a relação admirável e respeitosa que vai sendo construída entre a menina afrodescendente, com origem humilde e morada periférica, e o professor Marcão. Admirável perceber o perfil de educador ideal, incorporado por Marcão, para incentivar, ao mesmo tempo, o conhecimento e autoestima dos estudantes, desde pequeninos: “Disse um bom-dia, deu um sorriso e foi para a mesa do professor, começou a aula falando sobre a linguagem, e logo o assunto foi para a sociedade, era assim que dava aula, começava com a matéria e partia para uma pequena aula de educação moral e cívica todos os dias, sabia da carência dos seus alunos, e tentava apontar caminhos desde já para eles”. 

Com sensibilidade social apuradíssima, o educador, observando “aquela menina, sempre mal-arrumadinha, sempre acuada no canto da sala”, chamou Manhã para conversar. Assim, o professor teve acesso à difícil realidade imposta à aluna, desde pequenina: “Marcão então começou a entender por que ela vinha tão malvestida para a escola, e continuando a conversa, descobriu que ela mesma, ao chegar em casa, fazia os deveres domésticos, cozinhava para comer, lavava a própria roupa, ou seja, com apenas nove anos de idade, Manhã já tinha a responsabilidade de uma mulher”. Gentilmente, o professor, no encontro seguinte, presenteou a garotinha com um lindo vestido esmeralda. Daquele momento em diante, Manhã experimenta sucessivos momentos de valorização admirável, incluindo orgulhosamente sua negritude. Da beleza individual à boniteza comunitária, um efeito dominó às avessas passou a sustentar o êxito coletivo destacado na trama: “uma peça levanta a outra, que levanta a outra, e assim todos passam a conhecer um amanhecer esmeralda”. 
   
* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

DILEMAS CIENTÍFICOS

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A diferença entre a argumentação científica e a filosófica se dá por um acesso diferente à corporeidade: a primeira leva em consideração o corpo como corpo-coisa e o mesmo pode-se dizer da mente – o cérebro –; a segunda tenta descrever o corpo a partir do sentir-se corpo, do perceber-se como eu corpóreo. A filosofia tem um acesso diferente ao sujeito – entendido como unidade de corpo e mente – em comparação com as ciências positivas: tenta descrevê-lo partindo da experiência que o eu tem diretamente de si, da percepção que tem de si como eu-corpóreo. Por essa aproximação diferente, pode-se dizer que a ciência reconstrói a mente e partir da estruturação da matéria, a filosofia descreve o sentir-se matéria – um corpo, coisa do mundo no mundo – no interior da vida da mente, tenta atingir o sujeito a partir de si mesmo como consciência em ato. 

Estamos vivendo na era do conhecimento, uma época precedida pelas “ondas” agrícola, industrial e da informação e na qual é incessante a busca por novas formas e maneiras de tratar este valioso recurso. Os conhecimentos tácito e explícito conjugados com ideias, valores e emoções possibilitam a visualização de novas realidades e cenários que permitem a concepção de maneiras diferentes de se interpretar e de se fazer as coisas, gerando contradições e interrogações que conduzem a novos conhecimentos. Quanto mais distante estiver da “ordem do discurso”, melhor a ciência se sairá enquanto ofício especulativo. Michel Foucault, em aula inaugural no Collège de France (02/12/1970), com razão, esclarece: “suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.

Atuar como cientista significa descontruir os procedimentos de exclusão que interditam o conhecimento ampliado do saber. A respeito, muito nos serve o alerta feito por Michel Foucault sobre as tensões e intenções subterrâneas da linguagem: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Enquanto investigação constante, o fazer científico, ao ignorar a polissemia da linguagem, se esconde no manto da neutralidade argumentativa, valorizando, em demasia, o princípio do distanciamento avaliativo. O envolvimento afetivo do cientista em relação a sua causa de estudo sofre com os estigmas positivistas, que desqualificam a subjetividade, acusando-a de agente contaminador que prejudica a exatidão como exame criterioso do real. Entretanto, vale a pena lembrar que a palavra, enquanto núcleo do pensamento científico, apresenta sempre um efeito bumerangue em matéria de entendimento complexo: legitimamente coexistem no mundo, pelo menos, “dois quereres” – as vontades do lançador e do lançado. 

O ser humano é aquele que consegue inteligir a realidade em seus diferentes níveis. A palavra cria mundos, é ativa e ativadora. Com a palavra criamos o passado, o presente, o futuro. A palavra tem o poder de ‘arrumar’, ‘organizar’ nossa percepção e expressá-la. A palavra dá forma à realidade. Dá realidade à realidade. Dotando a realidade de sentido, a palavra torna o mundo menos terrível e assustador. A solidão das coisas é o preço que o mundo sem sentido, sem razão de ser, pagaria, na ausência do ser falante (do homo loquens) que viesse admirar-se com as coisas, chamá-las com diferentes nomes, humanizá-las. 

Trago a imagem do queijo suíço para enfatizar a natureza lacunar do fazer científico, assentado entre limitações e espaços para evolução. Entre o revelado e o silenciado, a qualidade científica vem sendo prejudicada pela sobrecarga informacional, pela fragmentação do conhecimento e pela rápida evolução da tecnologia da informação. Outro fator que constrange o trabalho científico é a vaidade presente no campo científico. Von Steisloff, em El experto (2011), chama nossa atenção para os fenômenos do charlatanismo e do narcisismo que afetam a credibilidade e a humildade como valores a serem cultivados pelos cientistas. O escritor confabula uma conversa entre a sede de grandeza de Monfort e a fome de sabedoria de Einstein. Critica-se, neste fabuloso livro, a criação pseudocientífica de teorias infundadas e desligadas da realidade. 

Monfort busca impressionar seu interlocutor com a sua Teoria Geral: “– Ora doutor Einstein! É evidente que é uma grande bobagem essa lorota de que as fontes de água têm um limite e, a se manter as atuais práticas de uso, poluição e desperdício, a humanidade vai também desaparecer pela falta desse líquido!/– E não pode ser verdade, Monfort, que as águas vão se acabar?!/– Não! Nunca doutor Einstein, a quantidade de água é uma constante planetária!”. Para assombro de Einstein, o estudante de pós-graduação no grau de Mestre em Engenharia Ambiental lança absurda tese, atropelando, na contramão irresponsável, o princípio da sustentabilidade: “O elemento água, professor, desde a criação do planeta é o mesmo, não se presta e não está sujeito a renovação ou recriação. Não surgem novas águas por aí, têm sempre a mesma quantidade fixa. São eternas; nunca se extinguem!”. 

Nas linhas e entrelinhas da obra, Von Steisloff adverte sobre os perigos do fazer científico, quando o pobre modelo Monfort prevalece sobre o nobre paradigma de Einstein, que se encontra disponível neste exemplo pinçado das saborosas páginas de El experto: “Você mesmo tem de explodir as comportas mentais; deixar que a correnteza de ideias revolucionárias inunde o vale da unanimidade científica, sufocando as verdades cristalizadas". Esperteza demais, inteligência de menos – assim não caminha a ciência. 

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

PAPO FURADO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Salomão Sousa, em Momento crítico (2008), alerta: “vivemos num processo cultural que exige mais descobrir a inteligência e encobrir mais as nádegas”. Nem só de nádegas a declarar vive o axé music. Existe neste ato cultural revelações de pensamento inteligente que se encontram nos autos da ciência política brasileira. Refiro-me à canção Papo furado (1985), composta por Reni Veneno e Marquinhos. Sucesso na voz do Olodum, o samba reggae apresenta a seguinte disposição: 

“Se você pensa que com as suas palavras/Você já ganhou meu voto,/Simplesmente se enganou/Olha que eu não como nada disso,/Você não tem compromisso,/Sai daqui seu traidor/Eu não me iludo/Eu não me iludo/Eu não me iludo esse sistema é imundo/Falei, falei, falei/Eu não me iludo/Eu não me iludo/Eu não me iludo esse sistema é imundo/Você foi na favela/Contando mil balelas/Provou da minha panela/Pensando em se eleger/Depois dos quatro anos/De pernas pro ar ficar/Estando aposentado/De mim não vai se lembrar/Falei, falei, falei/Eu não me iludo/Eu não me iludo/Eu não me iludo esse sistema é imundo/Você me enganou/E quer me enganar/Se pisou na bola, não vai mais pisar”.

2016 vem chegando e como em todo ano eleitoral, a cantilena é a mesma: muitas promessas e pouco conteúdo da maioria dos candidatos, além da pouca capacidade de grande parte do eleitorado para escolher quem melhor vai representá-lo nos quatro anos seguintes ao pleito. A reflexão séria sobre os grandes desafios do contexto atual não deveria estar ausente no debate político entre candidatos e entre eleitores. Seria uma grande pena se o tempo fosse gasto com acusações entre os candidatos – como já se vê país afora –, ou para apresentar projetos vagos e irrealizáveis, só para encantar os eleitores, que têm todo o direito de conhecer as propostas dos que pleiteiam cargos para enfrentar as grandes questões pendentes, como infraestrutura, qualificação profissional, redução perene da pobreza, distribuição de renda, violência, políticas urbana e habitacional, saneamento básico, mais recursos para a educação, exploração sustentável dos recursos naturais, defesa da vida e da dignidade da pessoa, além da diminuição da perversa carga tributária. Para votar conscientemente, é necessário conhecer os candidatos e o que eles pensam sobre esses e outros itens e como pretendem enfrentá-los caso eleito.

Voto não tem preço, mas tem consequências. Por isso, não deve ser uma espécie de cheque em branco confiado a um desconhecido. É um ato de responsabilidade com o Brasil. Por isso mesmo, a política tem uma dimensão ética e deve nortear-se por alguns critérios fundamentais durante todo o processo eleitoral. É preciso avaliar partidos e candidatos, suas propostas, seu currículo e seu perfil ético. Contrariamente, poderíamos apoiar, com o voto, aqueles com propostas contrárias à nossa consciência, somente porque nos prometem alguma vantagem. O ano eleitoral, pois, pode ser um período de intensa formação da consciência ética e cívica dos cidadãos, em especial, daqueles que participam da vida política, para que atuem sempre a serviço da promoção integral da pessoa e do bem comum, sabendo que, por meio do voto, fará crescer e amadurecer a vida democrática do Brasil.

Distantes de prestar serviços em matéria de informação cidadã, os horários políticos mais se aproximam do formato novela-minissérie. Qual é o problema dessa escolha distorcida? Dad Squarisi, em “Alhos e bugalhos” (Correio Braziliense, em 22/01/2002), explica: “A novela e a minissérie são obras de ficção. Nelas impera o jogo do finge-finge. O autor finge dizer a verdade. O receptor finge acreditar. No pacto da mentirinha, não há compromisso com a verdade. Só com a fantasia. Daí acreditarmos em chapeuzinhos vermelhos, lobos maus, narizinhos, capitus e bentinhos. A questão é outra. Falta a boa parte dos brasileiros a informação cidadã. Democratiza-se a escola, mas não se democratizam o saber e a crítica. Muitos têm a TV como única fonte de conhecimento. Para manter o espectador cativo, os programas jornalísticos tornaram-se shows. Fica difícil distinguir o real do ficcional”.

A crise da água no Brasil mostra como os gestores vem maltratando o fazer político, o que prejudica consideravelmente o funcionamento administrativo da sociedade. O racionamento veio pela incompetência acumulada, a defasagem tecnológica, a farsa dos planejamentos maquiados e a eterna capacidade de adiamento/culpa da ‘‘gestão anterior’’. Serviu, ao menos, para uma forte consciência civil sobre a escassez de um bem fundamental como a água. Alertou para a emergência de usar energia sem o delírio do consumo desvairado. 

Poupamos por educação ou pela pressão do papai-Estado punidor? Deveríamos continuar suaves no uso, em treinamento, para óbvias crises futuras que virão, pois a penúria da infra continua. A festa das águas, vindas pela chuva, nos leva a mais uma cascata: como pedras que rolam não criam limo (justificativa para o rock dos Rolling Stones), águas paradas criam dengue. As águas — como a política — apodrecem quando não circulam. Luxo é o bem que perdeu o fluxo. E a cascata do ‘‘todos devem fazer a sua parte’’, enquanto o Estado se omite, desemboca na pior das cascatas da semana: as medidas contra a violência. Como se a violência fosse um efeito episódico. Violência não nasce em árvores, mas tem raízes. Segurança para todos e não só para quem pode comprar coletes. Não dá para blindar a rua quando blindado, impenetrável e rígido está o caráter.

A cada eleição, cresce a sensação de “papo furado”. Será que este país nunca ficará limpo? Há aqui sempre um mar de lama! Enquanto o errado estiver dando certo para uma minoria próspera, a maioria aflita continuará em maus lençóis. 


* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

CASA DA FLOR

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

O grande jornalista, Sérgio Porto, o Stanislau Ponte Preta (1923-1968), repetiria, com certeza, que estão soprando o rabo do touro para lhe corrigirem a curvatura dos chifres. Perde-se tempo, e fatos mais graves acontecem. O que realmente importa na hora do pega pra capar? Ninguém, sob emergência, dá prioridade a avalanche de coisas e bens materiais — as quais perdemos a vida para acumular e brandir status. Na hora do sufoco, só desejamos mesmo é água, ar, nutrição básica, teto mínimo, vestes que cubram e aqueçam, transporte solidário, prazer, saúde, festa de coisas simples e o amor correspondido de família, pessoas e comunidades fraternas. O resto é show da mídia e factoides do poder. Ter é o terror! Submeter para obter, o terror extremo.

‘‘Respeitáááável público...aqui estamos para mostrar que a vida pode ser mais atrevida, se a gente quiser (coro: se a gente fizer) ... que a vida pode ser perdida quando a gente não revida e desiste (coro: existir é resistir) ... estamos aqui para celebrar a rua como o maior parlamento (coro: Brasília não é só monumento) ...’’. Assim começava o texto de TT Catalão, chamado Esquadrão da Vida, que o ator e diretor Ary Pára-raios incorporou, em 1976, como grupo. O tempo dos anos de chumbo passou – e, tomara, ele não volte. Mas o tempo de sonhar com um mundo menos vil, desigual e egocêntrico, esse não passou nem passará. Como a vida demonstra, a consciência ética nem a sabedoria vêm sempre com as letras; uma e outra são inerentes a cada um de nós, ou assimiladas na sofrida dialética do cotidiano.

Caetano Veloso costuma dizer que nós, brasileiros, temos medo do sucesso. Nós nos assustamos se somos efetivamente bons em algo. Relutamos em aumentar a autoestima. Isso, segundo a tese do cantor baiano, decorre das responsabilidades que isso nos traria. E, como temos medo de assumir grandes desafios, seria preferível manter tudo como está. Smetak (1913-1984), suíço de berço e baiano por vocação cósmica, é músico referência além das sonoridades impossíveis. Odiava ser tratado como exótico por ser apenas coerente. Recriou o ‘‘salve-se quem puder’’ (individualista no sufoco) para ‘‘salva-se quem souber’’. Não por elogio da competência técnica, sobrevivência a qualquer custo: desejava um ‘‘mundo de sábios e não de sabidos’’, outra dele.

A história é uma coleção de bons e maus exemplos. Direto do Brasil sabido, os escândalos não nos espantam mais, de tantos e tão repetidos. O sentimento que nos domina é o da desolação. Falemos do Brasil sábio, onde se revela o verde da esperança e o amarelo do brilhantismo. Detalhe: Machado de Assis chamava o Brasil sábio de Brasil real, diferenciando-o do Brasil dos podres poderes: “o país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco” (Diário do Rio de Janeiro, em 29/12/1861).

No município fluminense de São Pedro da Aldeia, Gabriel Joaquim dos Santos (1892-1985) começou a construir seu lar, em 1912. Seu Gabriel tinha uma certeza: iria viver ali sozinho o resto da vida. Quando voltava do trabalho na roça, ele se dedicava à construção da casa. Sonhou, depois que ela estava erguida, que precisava de um colorido. Enfeitar com o que, nessa pobreza franciscana? Riu do sonho, mas tinha obrigação de realizá-lo. Começou a procurar coisas no lixo, como garrafas, azulejos quebrados, pratos, pedaços de coisas alegres, lâmpadas, conchinhas. As pedras rejeitadas viraram a pedra angular. Começou a criação. Um losango daqui, umas flores ali, uma costura com cacos de vidro. O resto da vida foi criando, acrescentando, achando coisas lindas no lixo que só os olhos dele podiam ver. E pronto. Com 93 anos de idade, faleceu. Hoje, aquela casinha é chamada de organismo vivo, um corpo, um coração. É a Casa da Flor. É parte do Patrimônio Histórico e Cultural do município. Seu Gabriel é comparado a Gaudí, arquiteto catalão com obras em Barcelona. Que lição pode ser tirada dessa arquitetura espontânea? A determinação em ter o sonho realizado, a coragem de seguir o coração, a criatividade que escapou de todas as barreiras e regras definidas e convencionais. Como dizia seu Gabriel, ‘‘todo caquinho transformado em beleza’’.

O processo de construção da Casa da Flor, realizado pelo seu Gabriel, pode servir de alegoria para a fundação do conhecimento complexo, pois conhecer é sempre rejuntar uma informação ao seu contexto e ao conjunto ao qual pertence. Sustentar o invento chamado realidade exige a consciência do seu mosaico cultural constitutivo. A reciclagem criadora de seu Gabriel dialoga com a fórmula de um grande filósofo da antiguidade Heráclito, “viver de morte e morrer de vida”. Trata-se de um pensamento paradoxal, pois se há duas ideias que são totalmente antagônicas são a morte e a vida. Um grande cientista do século XIX, que se chamava Bichat, definia a vida como um conjunto de forças que resiste à morte. 

No entanto, hoje em dia, com o progresso do conhecimento biológico, ficamos sabendo que estas forças resistem à morte, utilizando a morte. Como? Sem parar, nosso organismo tem moléculas que se degradam, e nossas células as substituem por moléculas novas; nossas próprias células morrem e novas células vêm no lugar destas. Dito de outra maneira, nossa vida, através da morte das nossas células e das nossas moléculas, continua. Este processo evidencia a fórmula de Heráclito – “viver de morte” e o método do seu Gabriel – criar é tirar vida nova do descartável. Eis o ciclo nutritivo da cultura, vindo diretamente da melhor brasilidade.

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

OVÍDIO E A ARTE DE AMAR

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Chamamos eco a repetição de um som pela reflexão num corpo situado a certa distância. A palavra tem em seu berço no grego ekhó, mas o termo, na verdade, surgiu na mitologia. Era o nome de uma ninfa pela qual Júpiter teria se apaixonado, o que não agradou a Juno, a mulher do rei dos deuses. Enciumada, ela teria transformado Eco num rochedo. Há quem defenda que a ninfa se apaixonou pelo belo Narciso — que a rejeitou por amar somente a si próprio. Eco escondeu-se num bosque e passou a viver vida solitária. Seu amor e sofrimento a transformaram em pedra. Só lhe restou a voz, cujo som ressoa eternamente. O amor de Eco por Narciso inspirou poetas como Ovídio, e sua forte intensidade tem sido sopro para acesos casais ao longo dos séculos...

Em Garota encontra garoto (2008), a escritora escocesa Ali Smith evoca Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.), o muito louvado poeta romano dos amores, para narrar a atenção de jovem por ativista de aparência andrógina. O ativista político/artista das ruas é um camarada chamado Robin Goodman. Quer dizer, uma camarada chamada Robin Bomhomem. Sim, uma guria. Anthea fica desconcertada: uma guria? “Ele era o menino mais lindo que eu já tinha visto na vida. Mas parecia na verdade uma menina”, escreve Ali Smith, fazendo as vezes de Anthea, que corrige o pensamento: “Ela era o menino mais lindo que eu já tinha visto na vida”.

Ali Smith fecha questão ainda a meio caminho do fim, quando deixa Robin se apresentar por si mesma. Afinal, menino ou menina? “A palavra exata para mim, diz Robin Goodman, é eu.” Robin explicitamente assume sua sexualidade e se apresenta nas ruas da cidade, ao assinar seus grafites como Ifisol. Assinatura que Anthea rapidamente identifica pelos muros por onde passa. Um nome andrógino. Ifisol remete a Ifis, uma personagem das Metamorfoses, de Ovídio. Interrompe Ali Smith a narrativa para apresentar a história de Ifis. Conta que, na ilha de Creta, a garota Ifis foi criada pela mãe como garoto a infância inteira, em obediência aos desígnios de um oráculo. Mas eis que o jovem Ifis está para se casar com Iante, que não faz a menor ideia do que se passa na vida íntima do noivo. Na iminência do desastre, Ifis acorda homem num estalo. A escritora escocesa busca essa imagem de Ovídio para entregar uma singela ode ao amor que não escolhe gênero. 

Ovídio escreveu, há 19 séculos, Arte de Amar (Ars Amatoria). Ele declamava, pelas ruas de Roma, os encantos da sedução, as dores do ciúme e a alegria do sucesso amoroso. O livro ensina fórmulas de sedução e mostra a confiança e a alegria que nascem do sucesso no amor. Suas idéias passaram a influenciar, principalmente, os jovens. As guerras civis haviam posto fim à República romana e o novo dono do poder, o imperador Augusto, queria restabelecer a moralidade dos velhos tempos. Ovídio foi acusado de corrupção moral. Argumentou, para se defender, que escrevia para cortesãs, não para as “mulheres honestas”. Não deu certo. Foi punido por falar e escrever sobre amor. Numa noite de dezembro dos primeiros anos da era cristã, o poeta foi levado de Roma para o exílio em Tomes, na atual Romênia, às margens do Mar Negro. A leitura da obra de Ovídio só voltou a ser permitida no fim da Idade Média.

Para Ovídio, o amor é uma técnica que pode ser ensinada. É o que propõe em Arte de Amar, uma espécie de manual do ofício da sedução, da infidelidade, do engano e da obtenção do máximo prazer sexual, elaborado a partir das experiências vividas pelo poeta. Na avaliação do célebre poeta latino, o amor é acima de tudo o desejo. Aliás, o verbo latino amare significa antes ser amante de alguém, e a Arte de Amar é a coletânea onde se encontram os conselhos mais eficazes para obter os favores de uma mulher. 

Ovídio apresenta-se como um autor singular na medida que reivindica um prazer igualmente partilhado entre homem e mulher quando do ato sexual. Ele quer ignorar essa dicotomia de receber ou dar prazer que estão ligadas a dois fatores: dominação e superioridade, e subserviência e inferioridade. Em Arte de Amar, não há essa divisão entre os gêneros: o homem visto como o “dominante” e a mulher como a “dominada”. O poeta latino nos apresenta o ato de amor como uma comunhão de dois corpos tentando se dar prazer. A mulher representada na Arte de Amar não é um mero receptáculo, um meio de satisfação individual do homem; ela deixa de sê-lo para tornar-se um ser de desejo, que busca, junto com o homem, o direito de partilhar o prazer.

Face ao exposto, eis os versos ilustrativos de Ovídio: “Mas as velas não abras mais do que a tua amiga/Não a deixes para trás e que ela se antecipe/à tua marcha também não lhe concedas./Que a meta seja atingida ao mesmo tempo./São guindados ao cume da volúpia/o homem e a mulher quando vencidos/ficam na cama, sem forças, estendidos./[...]/ Sinta a mulher que os deleites de Vênus/Ressoam nos abismos do seu ser;/e para os dois amantes/seja igual o prazer”.

Revela Ovídio que amar é experimentar a situação-limite da entrega mútua: “Os prazeres são mais vivos se conhecem o perigo”. Com o tom epicurista, a voz poética, ao longo de Arte de Amar, prioriza a busca de alegrias e prazeres para a vida. Muito bem sintetizou, com espirituosidade, essa filosofia de vida o músico Zeca Baleiro, em Babylon (2000): “Baby I’m so alone/Vamos pra babylon/Viver a pão-de-ló e moet chandon/Vamos pra babylon/Vamos pra babylon/Gozar sem se preocupar com amanhã/Vamos pra babylon/baby baby babylon/[...]/Vem ser feliz ao lado desse bon vivant/Vamos pra babylon/Baby baby babylon/De tudo provar champanhe caviar/Scotch escargot rayban bye bye miserê/Kaya now to me o céu seja aqui/Minha religião é o prazer”. 

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

EDUCAÇÃO E CONHECIMENTO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Formado por conceitos, leis ou teorias e a partir de experiências sensoriais específicas, o conhecimento se revela como a compreensão, teórica ou prática, de um assunto, uma arte, uma ciência, uma técnica. Representa o processo humano dinâmico de justificar a crença pessoal com relação à “verdade”. O conhecimento diz respeito a crenças e compromissos; é função de atitude, perspectiva ou intenção específica; está sempre relacionado à ação, diferente da informação. O conhecimento diz respeito ao significado, pois é específico ao contexto e relacional.

Consiste o conhecimento em uma atitude de investigação constante sobre os fenômenos materiais e imateriais que perfazem nossa existência no mundo. Revela-se como atitude especulativa que favorece o casamento pleno entre razão e sensibilidade. Como a metáfora trazida pela escritora Marina Colasanti, em Fragatas para terras distantes (2004), conhecer é ter “um espelho para dentro”. Mas, a que tipo de espelho ela se refere? Com a palavra, a autora: “E o meu espelho – ah, isso eu sentia como muitíssimo importante – haveria de refletir menos as coisas em si do que o avesso das coisas, a sua face guardada, lado escuro da Lua, reverso de tapete, lado de dentro da casca, da concha, da rocha, da pele”. Conhecer, portanto, é aprender com o direito e o avesso da vida. Assim, o conhecimento melhor se revela como uma mistura fluida de experiência condensada, valores, informação contextual e insight experimentado, a qual proporciona uma estrutura para a avaliação e incorporação de novas experiências e informações. 

Conhecer não se resume a comprar livros. O livro foi feito para ser lido. Adverte-se, porém, em Eclesiastes: “Escrevem-se livros sem fim e o estudo continuado é a fadiga da carne” (Ec 12. 12). O escritor e médico Moacyr Scliar, no livro Do jeito que nós vivemos (2007), foi categórico ao afirmar que “criar um comprador é questão de mercado. Criar um leitor é questão de educação, um processo que começa em casa quando os pais leem para os filhos pequenos, continua na escola, no círculo de amigos, na universidade. Qual a diferença nos dois processos? A intensidade do vínculo emocional”. O conhecimento demanda formação continuada, mas também exige de nós coleta seletiva para um melhor processamento de dados e informações. Afinal de contas, o que significa compreensão? Compreender pede, ao mesmo tempo, poder de síntese e saber de análise, ambos comprometidos com a expansão autêntica da nossa capacidade crítica, sem apelar para modismos.  

Compreender a escola como unidade epistemológica de ensino e aprendizagem requer esmero pedagógico, tanto teórico como prática, no tocante ao oferecimento de condições lúcidas e lúdicas para a excelência dos processos de alfabetização e letramento. A respeito, a professora Magda Soares esclarece que alfabetizar corresponde à ação de ensinar a ler e a escrever, enquanto o letramento se apresenta como o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e a escrever. Nas palavras da estudiosa, expressas no livro Letramento: um tema em três gêneros (1998): “alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas não inseparáveis, ao contrário: o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado”. Por isso, costumo dizer que quero ser alfabetizado e ômegabetizado. Temos direito à “formação integral”, conforme defende o filósofo Friedrich Schiller, em Cartas sobre a educação estética do ser humano (1791-1793). 

A experiência estética através da beleza modera a vida, permitindo a passagem das sensações aos pensamentos, proporcionando a forma ao sensível, reconduzindo o conceito à intuição e a lei ao sentimento. A educação estética deve permitir experimentar aquele jogo de equilíbrio entre a razão e a sensibilidade. Na proposta de Schiller, a ética e a estética convergem porque a estética mantém o equilíbrio do indivíduo de tal maneira que, graças ao domínio “racional” das pulsões, além de aspirar a um estado estético, o ser humano pode chegar ao estado político, que é a garantia da autonomia. 

Pelos caminhos emancipatórios da arte, podemos compreender o valor da alfabetização, por meio da divertida canção chamada ABC do Sertão (1953). Eis a composição feita por Zé Dantas e Luiz Gonzaga: “Lá no meu sertão pros caboclo lê/Têm que aprender um outro ABC/O jota é ji, o éle é lê/O esse é si, mas o érre/Tem nome de rê/Até o ypsilon é pssilone/O eme é mê, O ene é nê/O efe é fê, o gê chama-se guê/Na escola é engraçado ouvir-se tanto ‘ê’/A, bê, cê, dê,/Fê, guê, lê, mê,/Nê, pê, quê, rê,/Tê, vê e zê”. Em relação ao letramento, como conjunto de conhecimentos adquiridos pelo estudo, a escola dos nossos sonhos tem seu Projeto Político Pedagógico inspirado na fabulosa canção Cada lugar na sua coisa (1976), composta por Sérgio Sampaio: “Um livro de poesia na gaveta não adianta nada/Lugar de poesia é na calçada/Lugar de quadro é na exposição/Lugar de música é no rádio/Ator se vê no palco e na televisão/O peixe é no mar/Lugar de samba enredo é no asfalto/Lugar de samba enredo é no asfalto/Aonde vai o pé arrasta o salto/Lugar de samba enredo é no asfalto/Aonde a pé vai se gasta a sola/Lugar de samba enredo é na escola”.

Promotora do conhecimento, a educação precisa se concentrar na formação da personalidade do educando, tanto do ponto de vista físico quanto ético, oferecendo-lhe consciência de seu papel na sociedade para o exercício da cidadania e ministrando-lhe os ensinamentos exigidos para facilitar o acesso aos postos de trabalho, humanizando-os inteligentemente, uma vez que o sistema de produção se encontra perigosamente mais automatizado. 


* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

BANCOCRACIA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


No entender do advogado Wilson Donizeti Liberati, a absoluta prioridade deve ser vista pelos administradores da seguinte forma: “enquanto não existirem creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e trabalho, não se deveriam asfaltar ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de concreto que fiam para demonstrar o poder do governante”. Encontra-se explícita neste parecer uma merecida crítica à “política do pão e circo” que adianta afeta a gestão politico-administrativa brasileira. Esta prática é bastante antiga e remonta os tempos do Império Romano. A “política do pão e circo” (panem et circenses, no original em latim) era o modo com o qual os líderes romanos lidavam com a população em geral, para mantê-la fiel à ordem estabelecida e conquistar o seu apoio. Este termo tem origem na Sátira X, do humorista e poeta romano Juvenal e, no seu contexto original, criticava a informação do povo romano, que não tinha qualquer interesse em assuntos políticos, e só se preocupava com o alimento e o divertimento.

O constrangimento imposto às atividades relacionadas ao saber nas rodas sociais, por conta da super-oferta do “angu do vulgo”, levou o filósofo Roland Corbisier a ressaltar, no livro Consciência e nação (1950), que: “tudo conspira contra essa interiorização da vida. As facilidades, os divertimentos, os espetáculos, multiplicam-se em proporções jamais conhecidas, permitindo ao homem, sem esforço e sem risco, esquecer-se e fugir constantemente de si mesmo. O divertimento é o grande itinerário de fuga e de evasão. A margem de tempo que outrora existia entre o trabalho e a diversão, permitindo o florescimento da vida própria, da vida interior, desapareceu, devorada por um trabalho que enerva e extenua, não deixando no homem outra exigência senão a de narcotizar-se com os espetáculos e os prazeres. Depois de terem ganho o pão, encaminham-se todos para o circo. Não se recolhem mais”. 

Como disse o sociólogo Ralf Dahrendorf, em sua obra A lei e a ordem (1987): ‘‘uma vez que a sociedade aberta tenha se fechado, esta deixa de ser a questão. Sob o domínio do totalitarismo, existem duas visões claras: a obediência e a oposição’’. O lado da oposição crítica representa a verdadeira inteligência. O perigo se encontra com os mandos e desmandos dos fortes e poderosos, sabiamente disfarçados e com mecanismos sofisticados para manter o status quo. 

Durante a Idade Média, quando as taxas de juros eram tão elevadas que fizeram com que Tomás de Aquino afirmasse pecunia pecuniam patere non potest, ou seja, dinheiro não pode parir dinheiro; todas as forças da consciência se levantaram contra a agiotagem. A equipe econômica continua propondo a elevada taxa de juros – 14,25% ao ano – como solução para os problemas do capitalismo brasileiro. De acordo com o site Trading Economics, que avalia as taxas aplicadas atualmente por 150 países, o Brasil tem a 14ª taxa de juros mais alta do mundo. O Comitê de Política Econômica do Banco Central (Copom) justifica a necessidade de manter elevada a taxa de juros a partir da seguinte linha de raciocínio: quanto maior a taxa, menos pessoas tomam empréstimos, menos dinheiro circula, o consumo diminui, a inflação se contém e a poupança aumenta. Acontece que foi interditado na ordem do discurso governamental aquilo que não é, definitivamente, um mero detalhe. Com a palavra, o saudoso senador (PT-DF) e economista Lauro Campos, em Crise, desemprego e destruição: o capital na UTI (2003):

“É impossível a qualquer atividade econômica sobreviver pagando esses juros absurdos [...] Isso por quê? Porque existe uma bancocracia, porque os banqueiros lucram com o aumento da taxa de juros. Se houvesse trabalhadores ou pessoas que vissem o mundo com os olhos do trabalho, estariam, obviamente, preocupados com o aumento dos salários, com mais conquistas sociais para os trabalhadores. Mas quem está no comando são os representantes do capital financeiro internacional, da última etapa do capitalismo, o imperialismo financeiro, o mais agressivo, o mais inútil, a mais destrutiva de todas as formas de capitalismo que a sua história já conheceu. Portanto, é óbvio que as lutas têm de aumentar. Mas essa cavalgada não pode ser eterna. Não sobrará pedra sobre pedra se esse processo tiver continuidade”. 

Durante muito tempo, os bancos não tiveram muita importância: o que importava era o consumo da população. O teórico da mão invisível do mercado, Adam Smith, em A riqueza das nações (1776), já ressaltava: “o que limita a produção é o consumo”. A “marolinha” chamada Grande Depressão de 2008, evidenciada a partir da crise no mercado imobiliário estadunidense, fez com que o Brasil, em nome do combate à inflação, mantivesse a elevada taxa de juros, alegando que era para limitar o consumo. Para isso, desempregaram-se funcionários, achataram-se salários, aumentaram-se os impostos, conservaram-se os juros nas alturas. Voltamos à Idade Média: consumir é pecado. Enquanto isso, a soma do lucro registrado, em 2013, pelo Itaú Unibanco, Bradesco, Santander e Banco do Brasil, chegou a marca de US$ 20,5 bilhões, superando o Produto Interno Bruto (PIB) de 83 países, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). 

O Estado está nas mãos do mercado. Os bancos ganham dinheiro, emprestando muito ao governo e pouco às empresas e pessoas físicas. E pior: apesar dos altos lucros, os bancos estão classificados como instituições próximas do calote por terem o desempenho associado à enorme dívida nacional. Ou seja, Bertold Brecht parece ter razão ao inverter a moral capitalista, na Ópera de Três Vinténs, peça de 1928: “O que é assalto a um banco, se comparado com a fundação de um banco?”. 


* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

O VALOR DO AMANHÃ

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Nos tempos da Revolução Francesa, os filósofos juravam que a ciência iria resolver todas as iniquidades da desigualdade social, mas hoje constatam que, mesmo com benefícios favoráveis para a vida, ao mesmo tempo dela se afasta e torna-se cativa das minorias. Hoje, ele pode sentir que o progresso dos “civilizados” está muito longe dos despossuídos, pois não está ao alcance de um povo que jamais figurou na agenda das elites governantes. É verdade que, graças aos instrumentos miraculosos da ciência e da tecnologia, estamos vivendo dias vertiginosos e trepidantes. Albert Camus, que, em O mito de Sisifo (1947), gritava para quem quisesse ouvir: “Antes tratava-se de saber se a vida para ser vida devia ter um sentido. Hoje, parece que ela será vivida se não tiver um sentido nenhum”. O que será o amanhã? 

Um filósofo respeitável, Giovani Reale, italiano, falou com entusiasmo de Mikhail Gorbachev e sua perestróika, que levaria à derrocada o estado totalitário soviético. Garanto que o filósofo não chegou a imaginar que teríamos a ditadura do capital globalizado. Hoje vivemos um 1984 (George Orwell) controlado pela corrupção, marca registrada do mercado sem alma. Sabe? Tem um tal de Leopardo de Lampeduza que decretou: “É preciso mudar tudo para que tudo permaneça como antes”. O tempo implacável derrubou vidas e estátuas de Hitler, Stálin, Mussolini e tantos déspotas, no controvertido século XX. Mas o que eles faziam se repete hoje, mesmos nos chamados sistemas de governo que se denominam democráticos. 

Logo após a derrubada do Muro de Berlim (1989), Francis Fukuyama publicou O fim da história e o último homem (1992), citando ao mesmo tempo Hegel e Marx, e doutrinando que a evolução das sociedades humanas não era ilimitada, mas que teria um fim, quando se chegasse a uma forma de sociedade que pudesse satisfazer suas aspirações mais sentidas e fundamentais. Cada qual à sua maneira. Hegel dizia que o fim da história iria desembocar no estado liberal, ao passo que Marx nela só acreditava mediante a implantação da sociedade comunista.

Se Herbert George Wells conceituava que “a história da humanidade torna-se cada vez mais uma corrida entre o saber e a catástrofe”, o que fazer? Historicamente, plebeus, escravos, carentes e excluídos são as grandes vítimas. O historiador e crítico social Arthur Schlesinger Jr., em 1992, alertou que, nem mesmo no império norte-americano, o mercado dará para todos escolas, hospitais, casas, comidas, escola, emprego, nem protegerá o meio ambiente. Quem pode esquecer as loucuras praticadas pelo governo de George W. Bush, que agiu sempre em nome da liberdade? A ferro e fogo, ele implantaria a “pax americana”, usando armas sofisticadas no lugar do big stic (política do porrete) do velho Theodore Roosevelt. 

Robert Michels, filósofo alemão e estudioso de partidos políticos, colocava: “uma vez no poder, as organizações partidárias fazem de tudo para permanecer nele”. E esse “tudo” representa a perda da aura de partido primado pela ética. Em um estado de boas intenções e defesa do interesse coletivo, o poder público reúne talentos para implementar boas propostas, sem sectarismos. Esse é o ensinamento clássico da política grega, reforçado pelos ideais iluministas e pelo humanismo de hoje. A beleza da política está em que só por ela se pode transformar o mundo. Mas alguém poderá dizer aos nossos políticos que a oratória (discurso) sempre foi considerada arte inferior. Ela representa as “mentiras que o povo gosta em época de eleição”, como diz ironicamente o cordelista Antonio Barreto. 

Ruy Barbosa, quando era ministro da Fazenda (1890), resumia Von Misses: ‘‘Se a corrente monetária incide primeiro sobre salários, a privação compulsória recai sobre as classes produtoras e acabam se traduzindo em descapitalização’’. Um pobre País rico, como o Brasil de hoje. “Quando o rico geme/o pobre é que sente a dor”, adverte, com humor afiado, o poeta João Martins Ataíde. Esse cenário desastroso não está muito longe de mostrar-se visível, porque seu desenho já está adiantado. Não é expectativa de catastrofistas, mas realidade composta pela imprevidência gananciosa de uns, submissão cega de outros, incorreção insensível de muitos e alheamento geral. Na realidade, a desigualdade tem mil garras e parece dizer com o funk “tá tudo dominado”. Uma luz no final do túnel ainda teima em insistir. O beco sem saída não chama realidade, mais mesmice trágica. É possível dar a volta por cima, sem passar a perna em ninguém. Isso se chama dignidade, momento máximo da esperança e da ética. 

Será que, diante da difícil realidade, só nos resta criar um mundo imaginário, no qual podemos realizar nossos sonhos, a exemplo de Pasárgada, terra inventada pelo poeta Manuel Bandeira? Fica, entretanto, a questão de como viabilizar a utopia de um mundo político menos imperfeito e mais produtivo, que, ao mesmo tempo, conviva com suas lavas vulcânicas como ganância, corrupção, sede de se manter no poder e mau-caratismo sempre em efervescência e prontas para jorrar. Sobre o valor do amanhã, norte de um fazer político transformador, eu fico com a beleza da proposta musical de Guilherme Arantes: 

“Amanhã!/Será um lindo dia/Da mais louca alegria/Que se possa imaginar/Amanhã!/Redobrada a força/Pra cima que não cessa/Há de vingar/Amanhã!/Mais nenhum mistério/Acima do ilusório/O astro rei vai brilhar/Amanhã!/A luminosidade/Alheia a qualquer vontade/Há de imperar!/Há de imperar!/Amanhã!/Está toda a esperança/Por menor que pareça/Existe e é pra vicejar/Amanhã!/Apesar de hoje/Será a estrada que surge/Pra se trilhar/Amanhã!/Mesmo que uns não queiram/Será de outros que esperam/Ver o dia raiar/Amanhã!/Ódios aplacados/Temores abrandados/Será pleno!/Será pleno!” (Amanhã, 1977).

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

PALAVREADO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Uma das maiores conquistas de Sigmund Freud foi a restauração da palavra, do Logos, velho termo grego prenhe de significações maravilhosas. A palavra é algo mágico, força que brota do nosso íntimo. A palavra pode ser curativa ou maléfica, segundo a intenção de quem a usa. Sabemos, por informação dos grandes místicos brasileiros (Chico Xavier, André Luiz, Emmanuel, Joanna de Ângelis), que da mente, clareada pela razão, sede dos princípios superiores que governam a individualidade, partem as forças que asseguram o equilíbrio orgânico. E por intermédio de raios ainda inabordáveis ao entendimento humano, vão vitalizando os centros de nosso corpo sutil.

O bem constitui sinal de passagem livre para os cimos da Vida Superior, enquanto que o mal significa sentença de interdição, constrangendo-nos a paradas mais ou menos difíceis de reajuste. A respeito, o poeta Raul de Taunay, em “Há momentos” (40 poemas, 2015), apresenta a transitoriedade sentimental que marca a versatilidade do espírito humano, tanto em situações pesadas como em dinâmicas leves no tocante ao viver: “Há momentos na vida de sutil apatia,/Há também vendavais de viril agonia,/Há no peito o cantar que modula meu dia,/Há no amor absoluta e total sinergia./Há na rima o embalar deste mundo que gira,/Há no céu a doçura de um mar de alegria./No poema há o fulgor do selvagem que grita,/Há em mim mansidão da criança que espia”. 

Diante da nossa multiplicidade temperamental, a possibilidade de comunicação tem na palavra o ato redentor. Exemplo desta magnitude expressiva se encontra no poema “Palavreado” (40 poemas, 2015), de Raul de Taunay: “Palavras doces são lindas magias/Que rendem tão belas as trovas do dia;/As palavras castas são feitiçaria/Que de, tão mimosas, viram sinfonias./Estância tão frágil, clarão excessivo,/É estrofe parida com o pé comprido;/Como a cachaça, é sol com chuvisco,/Letrinha guisada, copioso petisco./Os versos partidos que trago comigo/São meras palavras que junto no grito;/Não mais me concebo sem estes rabiscos/Que eternizam meu sonho iludido./Por isto é que sou, se sou alegrias,/Morrendo de amor, palavras sou, vadias”. Libertamo-nos dos demônios interiores pela palavra. Que demônios são esses? Nós mesmos, nossos atos em existências transatas, em desvarios de poder, crueldade, ambição, e todo o cortejo sinistro das consequências inevitáveis. 

Nas Confissões (XI, 28), Santo Agostinho dizia: “Portanto, o futuro não é um tempo longo, porque ele não existe: o futuro longo é apenas a longa expectação do futuro. Nem é longo o tempo passado porque não existe, mas o pretérito longo outra coisa não é senão a longa lembrança do passado”. Hannah Arendt fez desta afirmação o centro irradiador de sua reflexão sobre a condição humana: “É só chamando o futuro e o passado no presente da recordação e da expectação que o tempo existe”. “A memória é a presença do não mais como a expectação é a presença do não ainda”.

Entre o “não mais” e o “não ainda” inscreve-se a palavra fundadora do sujeito. A democracia faz parte de uma forma de vida em que o sujeito é pensado como um futuro imprevisível, e a imprevisibilidade, apesar de inquietante, deve ser investida como desejável. Do contrário, diz Agostinho, temos o hábito, a verdadeira fonte do pecado. Ou, nos seus próprios termos, “a inclinação do mundo para valorizar seus pecados deve-se menos à paixão do que ao habito”. É o hábito que consolida aquilo que os homens fundam na cobiça. “O hábito”, prossegue Arendt, “é o eterno ontem e não tem futuro. Seu amanhã é idêntico ao hoje”.

No pensamento arendtiano, o hábito tornou-se o oposto do pensar e do compreender. Pensar é buscar a homologia consigo mesmo e estar sempre prestes a recomeçar; não pensar é entregar-se ao hábito no qual radica a banalidade do mal. Para a democracia, o desafio ético é: como fazer o sujeito aceitar a ideia de sua contingência histórica, abrindo mão dos hábitos, sem perder o compromisso com a construção de um mundo humano para os humanos? Ou, em outros termos: como acolher a incerteza sem torna-la desamparo? Como trocar a previsibilidade pela aventura da liberdade? A saída está na palavra. Ela é a possibilidade do “recomeço”, única alternativa ao ciclo do eterno retorno. Devemos acreditar que “os homens embora devam morrer não nascem para morrer mas para recomeçar”. Trata-se, então, de tentar entender o que, no presente, vem impedindo a palavra de funcionar em sua dimensão libertária e iniciadora.

Daí a necessidade constante da reflexão, do debate, da discussão em torno do óbvio. Óbvio também é não encarar o mal como tal. Nem sempre o óbvio é tão ululante, tomando-se de empréstimo a expressão de Nelson Rodrigues. Na leitura do Sermão do Padre Antônio Vieira, pronunciado na Primeira Dominga do Advento, em 1650, encontramos esta pérola de sabedoria: “[...] e muitos outros varões santos e sisudos, que quando lhes ofereceram as mitras, não quiseram subir à alteza da dignidade, porque reconheceram a do precipício”. Em outras palavras, o que Vieira diria é que “toda altura é um precipício”. Movidos pelo poderoso insumo da ambição desmedida, a falta de bom senso costuma nos embalar pelo sonho fátuo do poder a qualquer preço. É preciso ter dignidade e coragem para enfrentar essas situações que trazem angústia e sofrimento, buscando as causas e as soluções para o problema.

O escritor português José Saramago acreditava no poder da palavra como sendo incentivadora da autonomia humana, para além da prática do convencimento persuasivo: “Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro”. Nada pode violentar mais do que não ser. A cultura da violência se estabelece e muito pior que a miséria econômica, que também é lamentável, é a miséria do espírito humano, à qual estamos entregues.

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.