sábado, 20 de junho de 2015

EM PONTO DE BALA


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


No livro Literatura para quê? (2009), Antoine Compagnon salienta que como “exercício de reflexão e experiência de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo”. Inspirado no engajamento social da literatura, Compagnon ainda pontua que “a literatura é de oposição: ela tem o poder de contestar a submissão ao poder”. Credita à literatura o papel de agente emancipador da inteligência coletiva: “Fonte de inspiração, a literatura auxilia no desenvolvimento de nossa personalidade ou em nossa ‘educação sentimental’, como as leituras devotas o faziam para os nossos ancestrais. Ela permite acessar uma experiência sensível e um conhecimento moral que seria difícil, até mesmo impossível, de se adquirir nos tratados dos filósofos. Ela contribui, portanto, de maneira insubstituível, tanto para a ética prática como para a ética especulativa”.

Antonio Candido, por seu turno, em O direito à literatura (1988), considera: “a literatura é o sonho acordado das civilizações”. O crítico brasileiro destaca o papel fundamental da literatura no processo de formação educacional do sujeito: “A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante”.

Considerando conjuntamente os dizeres de Compagnon e Candido, podemos atestar que o livro Em ponto de bala (2013), escrito por Ricardo Evangelista, expressa, pelo menos, duas virtudes literárias: (I) “o poder de contestar a submissão ao poder” (Compagnon), e (II) “negação do estado de coisas predominante” (Candido). Em especial, destacaremos aqui como a temática ambiental é acolhida, com esmero e zelo crítico, por parte do poeta mineiro. “Estranhas Minas”, por exemplo, colabora para a construção e o fortalecimento da consciência coletiva sobre a necessidade de manutenção do equilíbrio do meio ambiente, quando a voz poética de Ricardo Evangelista denuncia a ordem econômica como responsável direita pelo achatamento brutal da dimensão ecológica que essencialmente nos rege: “Minas estranha/o que te dá nome/estraga vossas estranhas./Minas,/extirpam suas tripas/de ouro, calcário/diamante ferro brita./Estupram vossas matas/rios, lagos e grutas./Exportam pro estranja/China, Europa, Japão./Poucos imaginam, mas esse apito do trem/é um grito do minério que te roubam às escondidas./Oh! Minas Gerais! Que esvai em feios vagões./No caminho que tu andas não restará nem os Gerais”.

Cabe ressaltar que os valores ambientais estão espalhados por toda a nossa Carta Magna. Desse modo, vale mencionar, como valores ambientais constitucionais: a dignidade humana (consagrada princípio fundamental da República – art. 1º., III), a ordem social baseada no primado do trabalho e com objetivo de proporcionar o bem-estar e a justiça sociais (art. 193), a ordem econômica que, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por objeto assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170), a garantia a todos, pelo Estado, do pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional (art. 215, δ 1º.), a previsão de que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial que sejam portadores de referência dos grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216). Porém, para o discurso ecológico da integridade se concretizar, faz-se necessário transcender a questão dos recursos naturais e sua exploração, com objetivo de se chegar ao tema crucial das condições de vida, do bem-estar da população. Nesse sentido, alerta Ricardo Evangelista: “→ $erra da Moeda/Aprecie a vista/antes que seja tarde/antes que seja aço/antes que venda a prazo/e a preço de bagaço”. 

O poeta mineiro ressalta que o meio ambiente precisa deixar de ser conceituado como um espaço onde se encontram os recursos naturais para ser ressignificado como conjunto das condições de existência humana, que integra e influencia o relacionamento entre os homens, sua saúde e seu desenvolvimento. O que ainda notamos é a existência de uma enorme distância que nos separa da realização de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que permita igualmente a existência humana e a das demais espécies. Ricardo Evangelista prossegue, advertindo a opinião pública sobre o descaso ambiental, em outras duas oportunidades: (I) “Serra do Cipó/Levado o precioso diamante/herdaremos o pó”, e (II) “Serra do curral/levaram a serra/deixaram-me um cartão postal”. 

Estamos, infelizmente, longe do desenvolvimento solidário defendido pelo economista Paul Singer, segundo o qual forças produtivas respeitem a natureza e submetam os avanços científicos e tecnológicos ao crivo permanente dos valores ambientais, da inclusão social e da autogestão. Resistente e perseverante, a voz poética de Ricardo Evangelista, em “AM e FM Natureza”, consegue, mesmo diante da fragilizada consciência ecológica, sublinhar os encantos da nossa fauna e flora: “Eu curto am e fm natureza/feita de ondas de rio e mar/não aceita jangada de jabá/só toca/som de cachoeira/canto de sabiá/groove de grilo/grunhido de gralha/trinado de trinca ferro/algazarra de arara/peripécias de periquitos/patrocínio: criador do infinito”.      

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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