sábado, 20 de junho de 2015

TEMPOS EXTREMOS

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


O capitalismo tradicional, produtor de bens, passou a ficar menos interessante do que o capitalismo de vento, de nuvens, de mentiras. O capitalismo virtual, financeiro, que não produz nada e vive da velocidade da internet, é muito mais lucrativo. Muitas empresas foram perdendo a vergonha, a ética, o “desconfiômetro”, e começaram a maquiar os balanços, a embutir prejuízos. Descobriram que no mundo virtual, sem a âncora dos produtos, é muito mais fácil mudar de zeros da esquerda para a direita e confundir “dever” com “haver”. Cada vez mais a sociedade vira um detalhe. E a vida passa a ser comandada por grandes corporações, para as quais a grande utopia seria uma sociedade sem política e sem direito, apenas com economia e finanças. Até sem povo. Ou seja, não somos mais necessários – ou como dizem em Wall Street: “Never give a sucker an even break”. Tradução: nunca dê colher de chá aos babacas – que somos nós.

O escritor Fernando Sabino, muito anos atrás, tinha um pesadelo recorrente. Sonhava com uma manchete de jornal apavorante, em que se lia em letras garrafais: “O inevitável aconteceu!”. Ele acordava suando frio, porque a suprema tragédia do mundo havia, enfim, acontecido. Pois estamos começando a viver um pesadelo histórico, e não é o inevitável. Está surgindo no mundo um personagem terrível, o insolúvel: “Como é seu nome, senhor?”. “Insolúvel. Insolúvel de Oliveira, muito prazer”. Nada mais tem solução, enquanto a democracia for considerada apenas um meio para se chegar a um fim econômico. 

Quando a máquina da boçalidade se desencadeia, ninguém segura mais a produção de erros. Eduardo Galeano já nos chamava a atenção para a existência de uma “ditadura financeira internacional”, cuja ordem de funcionamento se alimenta vorazmente da “obrigação de fazer vista grossa para os manobrismos do mundo dos negócios”. Nem a beleza, nem a justiça ficam livres da contaminação nefasta. Assim, o saudoso jornalista uruguaio, em O teatro do bem e do mal (2002), ilustra os tempos sombrios que se avolumam tragicamente: “As potências donas do planeta raciocinam bombardeando. Elas são o poder, um poder geneticamente modificado, um gigantesco Frankenpower que humilha a natureza: exerce a liberdade de transformar o ar em sujeira e o direito de deixar a humanidade sem casa; chama erros aos seus horrores, esmaga quem se antepõe em seu caminho, é surdo aos alarmes e quebra o que toca”.

O processo de globalização econômica vem condicionando as relações sociais e o comportamento humano a sustentar irresponsavelmente um regime de patrimonialismo secular. Este processo resultou, entre outras coisas, no desenvolvimento da tecnologia, na maximização do lucro e no aumento da carga de trabalho, na “presentificação” e aceleração do tempo em função do encurtamento das fronteiras, na desterritorialização, na sobreposição das culturas mais influentes sobre outras e na indefinição da identidade individual como problemática existencial. A respeito, basta acompanhar o perfil pessoal que está sendo incentivado pela necessidade capitalista de maximização do lucro. É o caso ilustrativo da protagonista do romance Tempos Extremos (2014), desenvolvido pela escritora e jornalista Míriam Leitão: “Da vida de economista do setor financeiro, Sônia havia ficado com esse talento. Sabia vender e comprar, entrar e sair, falar e calar. Tudo na hora certa. Só sua vida era incerta, escondida, como um segredo. O que se conhecia era um amor longo e infrutífero, seguido de amores breves e inúteis. Era melhor na alocação de ativos e na distribuição de recursos em carteiras de investimento”. 

Em Ideologia Alemã (1845-1846), Marx e Engels destacam a relação entre trabalho e modo de vida: “o que os indivíduos são depende das condições materiais de sua produção”. O que somos, portanto, está ligado ao que produzimos e como produzimos. Produz-se cada vez mais tecnologia e produtos sofisticados que não são destinados aqueles que os fabricam, o grande contingente de mão-de-obra, e sim a uma restrita porção do mercado de consumo. Vivemos então em um “sonho de consumo” com “pesadelo de carência”, pois grande número de pessoas permanece ligado ao processo de produção, mas não tem pleno acesso a este mercado. Tudo o que acontece na política global é a repetição cansativa de um mesmo erro de raiz: Estado mínimo, Mercado máximo e Sociedade sem poder.

No campo das relações interpessoais, convivemos dentro de uma sociedade altamente narcísica, na qual a colaboração cedeu lugar à competitividade e ao individualismo. O “outro” é concebido como rival, ou uma ameaça. Jean-Paul Sartre, grande filósofo existencialista, manifestou uma frase que ilustra muito bem esta estrutura narcísica social: “o inferno são os outros”. Uma leitura psicológica nos permite afirmar que a projeção deste mal-estar reflete uma condição de “inferno interior”, produzido em grande parte pelos próprios desafios da convivência em sociedade. Ora, sabemos que não podemos sobreviver sem o convívio social, sem afeto, pois o processo de troca é fundamental na construção do ser humano. A essência desta problemática não está no fato de termos que conviver em sociedade, mas na maneira como se estruturam nossas relações.

Martin Heidegger, em O Ser e o Tempo (1927), compreende os tempos contemporâneos como “uma época que se caracteriza pelo ‘esquecimento do ser’, por uma vida que se vive mergulhada nas coisas do mundo, assumidas como se fossem a realidade única e sem nem mesmo suspeitar uma realidade originária que seja seu princípio. Essa perda do sentido do ser e do próprio problema que suscita constitui a decadência espiritual de nossa terra, uma decadência extrema porque recusa até reconhecer-se como tal”. A sociedade de consumo, de ultravalorização dos bens materiais e do capital, proporcionou o abandono do ser em si, do sujeito enquanto experiência rica de interioridade.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.



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