terça-feira, 2 de junho de 2015

O TRABALHADOR COMO MERCADORIA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Entre todas as mudanças operadas no bojo do processo de desregulamentação laboral, cumpre ressaltar o mecanismo da terceirização por significar um rompimento de toda a política protecionista que justificou a criação do Direito do Trabalho, sob viés eminentemente voltado para a proteção social. Terceirização significa a presença de um intermediário na relação entre o trabalho e a empresa, que lhe aproveita a força de trabalho. Esse intermediário não utiliza a força de trabalho para produzir bens ou serviços. Não se serve dela como valor de uso, mas como valor de troca. Não a consome: subloca-a. O que consome é o próprio trabalhador, na medida em que o utiliza como veículo para ganhar na troca. Em outras palavras, o mercador de homens os utiliza tal como o fabricante usa seus produtos e como todos nós usamos o dinheiro. Usa o trabalho como mercadoria, a mesma mercadoria que, ao vender, faz alarde de suas vicissitudes e, ao comprar, a deprecia, ofertando baixos salários.

Em linhas gerais, a terceirização é o fenômeno através do qual uma empresa contrata um trabalhador para prestar seus serviços a uma segunda empresa – tomadora. A tomadora se beneficia da mão-de-obra, mas não cria vínculo de emprego com o trabalhador, pois a empresa-contratante é colocada entre ambos. Do ponto de vista econômico, pela terceirização, as empresas procuram otimizar seus lucros pelo crescimento da produtividade, pelo desenvolvimento de produtos com maior valor agregado – com maior tecnologia – ou ainda devido à especialização dos serviços ou da produção. Buscam, como estratégia central, otimizar seus lucros e reduzir preços, em especial, por meio de baixíssimos salários, altas jornadas e pouco ou nenhum investimento em melhoria das condições de trabalho, que passam a ser de responsabilidade da subcontratada. Do ponto de vista social, a grande maioria dos terceirizados é desrespeitada, criando a figura de um “trabalhador de segunda classe” com destaque para as questões relacionadas à vida dos trabalhadores, aos golpes das empresas – que fecham do dia para a noite e não pagam as verbas rescisórias aos seus trabalhadores empregados – e às altas e extenuantes jornadas de trabalho.

As empresas terceirizadas abrigam as populações mais vulneráveis do mercado de trabalho: mulheres, negros, jovens, migrantes e imigrantes. Esse “abrigo” não tem caráter social, mas é justamente porque esses trabalhadores se encontram em situação mais desfavorável e, por falta de opção, submetem-se a esse emprego. Não é verdade que a terceirização gera emprego. Esses empregos teriam que existir para a produção e realização dos serviços necessários à grande empresa. A empresa terceira gera trabalho precário e, pior, com jornadas maiores e ritmo de trabalho exaustivo, acaba, na verdade, por reduzir o número de postos de trabalho. A respeito, o senador Paulo Paim (PT-SP), no artigo “Olhos desumanos” (Correio Braziliense, 15/05/2015), adverte com veemência: “é inadmissível que direitos trabalhistas e previdenciários sejam alvo de ataques. As medidas provisórias nº 664 e nº 665 estão aí. Nesse conjunto está inserida a não menos perversa terceirização, que, como eu tenho dito, equivale à revogação da Lei Áurea. Algo desumano. Nesse cenário de fragilidade para os trabalhadores, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Respeito as posições contrárias. Mas não concordo”.

Os trabalhadores pagam ainda um outro preço pela terceirização. Ao se fragmentar, a empresa também fragmenta o universo trabalhista; mas, ao se recompor, formando a rede, não o recompõe. Os terceirizados não se integram aos trabalhadores permanentes. Como contexto histórico do processo de terceirização, encontra-se a tese da flexibilidade dos direitos sociais que tem dimensões e desdobramentos mais profundos. É temerário reduzir a crise do Estado Social a um contexto exclusivamente fiscal ou administrativo. Ela é, antes de tudo, uma crise de déficit de cidadania e de democracia. Uma sociedade justa é aquela em que todos têm garantido seu direito ao trabalho, vivem do seu trabalho e não exploram o trabalho alheio. É, antes de tudo, uma sociedade do trabalho, em que a categoria trabalho se estende e se universaliza.

Quando o senador Paulo Paim alertou que a terceirização se coloca como uma neoescravidão, deve-se compreender que esse mecanismo coloca o trabalho em função do capital. Porém, o caminho de valorização trabalhista sugere outro rumo: privilegiar o direito ao trabalho, pois esta estrutura reconhece no trabalho o responsável pela criação de todas as riquezas, materiais e espirituais, da sociedade. Gonzaguinha, em Um homem também chora (1983), já chamava atenção para o papel fundamental do trabalho: “Um homem se humilha/Se castram seu sonho/Seu sonho é sua vida/E vida é trabalho/E sem o seu trabalho/O homem não tem honra/E sem a sua honra/Se morre, se mata”.

A terceirização faz parte de um conjunto de medidas que visam a adequar a forma do Estado ao processo de globalização neoliberal. Para tanto, preconiza-se o enxugamento da máquina pública por meio da “privataria”, da abertura sem critério do mercado, da desregulamentação das relações trabalhistas por meio de contratações temporárias, da flexibilização de direitos trabalhistas, objetivando chegar ao que se convencionou chamar de Estado enxuto e reproduzindo, assim, a lógica predatória do capitalismo da época do laissez faire. Considerar o trabalhador como mercadoria, portanto, representa um grave retrocesso histórico, deteriorando sua condição digna de “homem social”.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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