quarta-feira, 17 de junho de 2015

CIÊNCIA, DEMOCRACIA E UNIVERSIDADE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Em coluna intitulada “Ciência, democracia e regime” (Correio Braziliense, de 17/06/2015), Ari Cunha defendeu argumento apropriado e pertinente: “É possível existir ciência sem democracia? Infelizmente, sim. Da mesma forma, é possível a existência da arte na ausência de ética. Mas a ciência, como arte humana do saber, não pode prescindir da ética democrática. Se existe relação entre a ciência e a democracia, ela está no fato de que o exercício do saber humano encontra na liberdade de pensamento e ação o principal estímulo e o catalizador. Ou seja, ao respirar ares menos poluídos pelo cerceamento de ideias, a ciência flui e cresce naturalmente”.

Defender o regime democrático como princípio essencial para o desenvolvimento do ofício científico passa fundamentalmente pela promoção das oportunidades de formação superior para incontáveis contingentes de pessoas antes privados de tê-las, sem ocorrer o perecimento da qualidade de ensino e aprendizagem. Fica a pergunta: como vai poder a instituição, nascida para atendimento cultural das elites, reciclar-se a ponto de popularizar sua matrícula, bem como deixar as lições do saber pelo saber, antes transmitidas pela semântica cifrada e codificada da linguagem científica, para aderir ao novo saber pragmático, quase pontual e tecnocêntrico, exigido pelo exercício profissional dos integrantes desta nossa sociedade industrial e de serviços?

Ao examinar essa questão pelo viés histórico, Paulo Nathanael Pereira de Souza, em “Desafios à universidade nos novos tempos” (Gazeta Mercantil, de 04/11/2008), oferece um painel explicativo com os seguintes dizeres: “Com a afluência das massas às benesses da civilização, bem como a velocidade das mudanças políticas no século XX, as escolas de todos os graus de ensino foram invadidas por multidões de alunos de diferentes origens sociais e capacidades intelectuais. E, em vez de terem reis e papas como mantenedores, passaram as universidades a ser sustentadas por orçamento público e recursos da bolsa dos usuários. Daí que se obrigaram a participar do dia-a-dia do mundo e a serem exigidas como centros de fornecimento de recursos humanos qualificados, necessários ao pluralismo laboral dos mercados”.

Na opinião de Gil da Costa Marques, em “O papel da universidade” (Folha de S.Paulo, de 20/06/2009), “a universidade tem duas funções primordiais. A primeira é expandir as fronteiras do conhecimento e, assim, enriquecer a cultura científica e tecnológica do país. A mais importante, no entanto, é promover a formação de recursos humanos qualificados, os quais são elementos-chave no fomento do desenvolvimento econômico e social”. Convém, contudo, salientar que o conhecimento como parte da formação cultural de uma nação, de um povo, lato sensu, não deve ser entendido simplesmente como uma forma de uma necessidade técnica, esta concebida como um aparato de competências e habilidades necessárias às classes dominantes e seu aparato político, ideológico e produtivo. A discussão que se deve realizar é que tipo de cultura, de orientação humanística, de concepção de mundo, de criação de maturidade e capacidade intelectual que queremos ter ao inserir a universidade como elemento do processo de conhecimento, de criatividade e capacitação intelectual, moral, ética e crítica dentro da sociedade civil. 

Isso não quer dizer que os aspectos ideológicos, políticos e econômicos da sociedade de classe não devam ser considerados, pois são fundamentais não só na formação do conhecimento, como interferem profundamente na concepção de homem que se quer formar dentro de uma ideia ampla, transformadora e crítica de orientação humanística da cultura em geral. A respeito, lança luz esplêndida Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas (1956): “A cabeça da gente é uma só e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total”. Olhar criticamente significa procurar “aumentar a cabeça, para o total”. Implica, portanto, uma atitude humilde e corajosa. Humilde, no sentido de reconhecer nossos limites – só quem reconhece que não sabe, que há ainda muito por ser conhecido, que “as coisas que há são demais de muitas”, empreende uma busca no sentido de ampliar seu saber. E corajosa, porque precisamos ser pessoas capazes de compreender o mundo em que vivemos, traduzi-lo em termos compreensíveis para todos e organizá-lo, tendo em vista a realização de uma comunidade política democrática.

A universidade precisa se concentrar na busca amorosa da sabedoria, do saber amplo e aprofundado, tendo em vista o desenvolvimento da atitude crítica. Procura, ao voltar-se para seus objetivos de estudo, vê-los com clareza, com profundidade e com abrangência. Não se ancora em certezas. Ao contrário, seu espaço é o da dúvida, da interrogação constante, do questionamento, da pergunta pelo fundamento, pelo sentido. O empenho universitário deve se mirar no exercício continuado de compreensão, que procura ir além da explicação de caráter utilitário e funcional. Até porque acontece que o mundo é complicado demais para ser vivido e especialmente para ser compreendido. Ele não se revela de imediato, desafia-nos e nos confunde, chega mesmo a atemorizar. Carece de ser pensado, analisado em seus ritmos e determinações para poder ser concebido como um todo plural, e não apenas como um amontoado de fragmentos desconexos. Frente ao árduo desafio mencionado, a universidade precisa fazer da angústia do labirinto trampolim para a fundação da liberdade.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

Nenhum comentário:

Postar um comentário