domingo, 14 de junho de 2015

A BUSCA DO BODE EXPIATÓRIO


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Muito latim para pouco Pai Nosso: “De nada adianta o governo insistir em discursos positivos, incentivar o consumo, pois quem vive da renda do trabalho sabe que as coisas estão ruins e vão piorar muito. O que mais irrita os consumidores é que eles sabem exatamente de quem é a culpa: da presidente Dilma Rousseff, que, no primeiro mandato, optou por experimentalismos na economia que levaram ao desastre. Arrumar a casa custará muito caro e levará tempo. A fatura, como sempre, será paga pelo lado mais fraco, a população”. Com esta opinião, Vicente Nunes, no artigo “Choque no bolso” (Correio Braziliense, 13/06/2015), engrossa a fileira de jornalistas que preferem eleger o “bode expiatório” da vez a priorizar a sobriedade informativa, a consistência argumentativa e a gentileza propositiva como virtudes fundamentais ao fazer crítico de qualidade. 

A problemática da presidenta identificada pelo colunista do Correio Braziliense como “bode expiatório” na crise econômica é um assunto que está relacionado ao discurso mítico-religioso e também à ideia de expiação, expurgo e purificação. O ato de criar bodes expiatórios é uma característica muito comum no âmbito das relações entre os povos, ou mesmo nas interações pessoais. O termo “bode expiatório” teve sua origem em rituais hebraicos da tradição judaica, descritos na Bíblia:

“Havendo, pois, acabado de fazer expiação pelo santuário, e pela tenda da congregação, e pelo altar, então fará chegar o bode vivo. E Aarão porá ambas as suas mãos sobre a cabeça do bode vivo, e sobre ele confessará as iniquidades dos filhos de Israel, e todas as suas transgressões, e todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode, e enviá-lo-á ao deserto, pela mão de um homem designado para isso. Assim, aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles à terra solitária; e deixará o bode no deserto” (Levítico, XVI, 20-22).

Segundo o Dicionário Aurélio (1975), bode expiatório é “a pessoa sobre quem se faz recair as culpas alheias ou a quem são imputados todos os reveses”. Na tradição bíblica, esse bode fazia parte do ritual o qual os hebreus expiavam suas culpas diante do Senhor. Todos os anos, no dia do Quipur (O Dia do Perdão), o sacerdote simbolicamente lançava sobre o bode todos os pecados do povo e Israel e os soltava no deserto, a fim de que os castigos e as maldições caíssem longe dos fiéis. Exatamente por isso a expressão hoje designa àquele inocente que é escolhido para levar a culpa do que os outros fizeram.

René Girard, em A violência e o sagrado (1990), defende a tese de que o vício humano de destacar o bode expiatório faz parte do processo de passagem da indiferenciação para a diferenciação social. Este princípio é a própria fundação da cultura. A indiferenciação gera a rivalidade generalizada, que ameaça o grupo social. Diante da ameaça, o grupo cria mecanismos coletivos de diferenciação. A primeira solução diante da crise é o sacrifício vitimizador, que ela será sacrificada em nome do grupo. Esta vítima fundadora ou “bode expiatório” é o cerne da diferenciação primeira da sociedade: a comunidade de um lado e a vítima do outro.

Na eleição irresponsável do “bode expiatório” feita pelo colunista do Correio Braziliense, corre-se o risco de aumentar de tamanho o clube dos apáticos e dos céticos em relação à política. É bem verdade que os recorrentes escândalos pioram a imagem que os brasileiros têm dos políticos – que já não é das melhores. Existem, porém, um grupo que acredita que o melhor é se organizar para mudar o que está errado. A pergunta da moral é: o que devemos fazer? A resposta nos é dada, de certa forma, nos códigos, formalizados ou não, em que se encontram as regras, as normas, as leis. A pergunta da ética é: como queremos viver? Aqui, a resposta aponta para aquilo que chamamos de vida boa, espaço de afirmação dos direitos de todos, de construção do bem comum.  

Aponta-se um desafio porque não estão dadas todas as condições para a construção da vida boa. O que se requer é uma perspectiva utópica, no sentido, por um lado, de conhecimento claro das características do presente, dos limites que nos tolhem e, ao mesmo tempo, das possibilidades, das alternativas que devemos construir para a superação dos problemas e, por outro, da mobilização concreta, por meio do trabalho, da convivência solidária, para que nosso país tenha a configuração que julgamos efetivamente humana, construída por nosso desejo e empenho de viabilizar a vida coletiva em plenitude. 

Não só a presidenta Dilma Rousseff, mas todos nós somos corresponsáveis pela crise econômica, à medida em que investimos a maior parte de nossas fichas político-culturais na composição inflacionada do homo economicus, “habitado por uma suposta racionalidade que reduz todos os problemas da existência humana a um cálculo”, como ressalta Pierre Bourdieu, em As estruturas sociais da economia (2001). Há um risco de “quantofrenia” aguda (a doença da medida) que espreita todos aqueles que, em vez de medir para melhor compreender, querem compreender apenas aquilo que é mensurável.

Muitos gestionários mantêm uma confusão entre racionalização e razão. Mesmo com a preocupação de esclarecimento, a racionalização é um mecanismo de defesa que, sob as aparências de um raciocínio lógico, tende a neutralizar aquilo que é perturbador, aquilo que não entra em “sua” lógica. Nesse sentido, a racionalização está do lado do poder, ao passo que a razão está do lado do conhecimento. Este último não deve submeter-se a um princípio de eficácia, e sim a um princípio de pesquisa do sentido. O mais importante, nesse contexto, é compreender significações, ajudar cada um a analisar o sentido de sua experiência, definir as finalidades de suas ações, permitir que ele contribua na produção da sociedade em que ele vive. 


* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

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