quarta-feira, 17 de junho de 2015

A BRANCURA E O MASCAVO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

O mundo ocidental nasceu sob a égide de Minerva. Minerva, na mitologia grega, era filha de Júpiter, e era a deusa da sabedoria, da guerra, das ciências e da arte. Conta a lenda que Júpiter devorou a Prudência, e passou a sentir uma fortíssima dor de cabeça. Recorreu, então, a Vulcão, que, com uma segura paulada, abriu-lhe a cabeça. De seu cérebro surgiu Minerva, completamente armada, e já em idade e condições de poder socorrer seu pai na guerra dos gigantes, em que se distinguiu especialmente por sua valentia. Minerva tinha uma divergência com Netuno, pois ambos disputavam o privilégio de dar o seu nome à cidade de Atenas. Os doze grandes deuses, escolhidos para árbitros da questão, resolveram que daria o nome à cidade aquele dos dois que conseguisse produzir a coisa mais útil a ela. Netuno, com um golpe de tridente, conseguiu fazer brotar da terra uma oliveira, o que fez com que lhe fosse dada a vitória. 

Curioso é notar que Júpiter engole a Prudência, e de sua cabeça brota a deusa da ciência e da arte. É como dizer, ao afirmar “engolir a prudência”, que, recolhida a ordem moral, brota a ordem teórica e técnica em seu lugar. Se existe, ou não, um simbolismo intencional na lenda grega, o fato é que a História nos revela, na sua sucessão episódica, a retração do ideal contemplativo da vida humana por conta do ideal operativo. Assim, desvalorizamos a orientação sapiencial e supervalorizamos a orientação técnica.

Antes de impulsionar obtusamente o racionalismo frio e mecânico, a tecnologia dava corpo a uma era de exaltação sentimental e imaginativa. A máquina aparecia, antes do mais, como um instrumento de multiplicação das forças humanas. Infelizmente, isto foi muito mais canalizado para formar a religião do conforto via conquista dos bens materiais. Valorizou-se, assim, o trabalho, e perdeu-se o sentido da produção humana. Organizou-se, como mera “válvula de escape”, a indústria da distração. O homem procura distrair-se, porque não tem consciência de que o que sua natureza exige é satisfação, não distração. Pensa poder satisfazer-se com a distração. E distrai-se da procura da verdadeira satisfação. A respeito, muito bem se pronunciou o filósofo Roland Corbisier, em Consciência e nação (1950): 

“Tudo conspira contra essa interiorização da vida. As facilidades, os divertimentos, os espetáculos, multiplicam-se em proporções jamais conhecidas, permitindo ao homem, sem esforço e sem risco, esquecer-se e fugir constantemente de si mesmo. O divertimento é o grande itinerário de fuga e de evasão. A margem de tempo que outrora existia entre o trabalho e a diversão, permitindo o florescimento da vida própria, da vida interior, desapareceu, devorada por um trabalho que enerva e extenua, não deixando no homem outra exigência senão a de narcotizar-se com os espetáculos e os prazeres. Depois de terem ganho o pão, encaminham-se todos para o circo. Não se recolhem mais”. 

Esvaziando a produção e o ócio enquanto instâncias que evidenciam a potencialmente humana em termos positivos e construtivos, agigantaram-se, hegemonicamente, como modelos corporativos e associativos as “empresas-máquinas”, sendo estas questionadas, com primor, por Charles Chaplin, no filme Tempos Modernos (1936). Nele se encontra uma sofisticada problematização crítica e irônica sobre o alienado modelo industrial, preocupado em olhar para o mundo exterior apenas como “mercado”, isto é, lugar do lucro. Não havia nenhuma preocupação com a vida dos empregados, que eram tratados como engrenagens de uma máquina; nenhuma preocupação com o meio ambiente, que podia ser degradado impunemente. Mesmo com alguns avanços administrativos, mais na ordem do discurso do que no aspecto atitudinal, considerando preceitos como “responsabilidade social” e “desenvolvimento sustentável”, ainda persiste uma prática trabalhista mais inclinada à escravidão e menos propensa à liberdade. Lembro-me, aqui, da sutileza de João Cabral de Melo Neto, em destacar esta distorção de valores, no poema “Psicanálise do Açúcar”, que integra o livro Educação pela pedra (1966):

 “O açúcar cristal, ou açúcar de usina,/mostra a mais instável das brancuras:/quem do Recife sabe direito o quanto,/e o pouco desse quanto, que ela dura./Sabe o mínimo do pouco que o cristal/se estabiliza cristal sobre o açúcar,/por cima do fundo antigo, de mascavo,/do mascavo barrento que se incuba;/e sabe que tudo pode romper o mínimo/em que o cristal é capaz de censura:/pois o tal fundo mascavo logo aflora/quer inverno ou verão mele o açúcar”. A partir de uma perspectiva sócio-histórica, tais versos reportam que, na base da brancura progressista promovida pela civilização do açúcar, encontrava-se no bojo desta expressão produtiva brasileira o mascavo barrento, isto é, a prática da exploração do trabalho forçado da mão-de-obra escravizada. Justifica-se mais ainda esta análise, convocando também os seguintes versos do citado poema cabralino: “Mas como a cana se cria hoje,/em mãos de barro de gente agricultura,/o barrento da pré-infância logo aflora/quer inverno ou verão mele o açúcar”. 

Frente aos fatos, precisamos reencontrar, nos dizeres de Henri Bergson, o “impulso místico”, cujo empenho técnico-científico se inspirava, tendo em vista promover a suavização do trabalho, de modo que o homem pudesse se libertar da árdua luta pela satisfação de suas necessidades elementares, e, assim, alcançar níveis mais elevados de vida, cultivando os bens do espírito e gozando da liberdade.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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