sexta-feira, 19 de junho de 2015

LIVRO DE VIDRO


Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Considerando a matriz grega como um dos fundamentos importantes no desenvolvimento da civilização ocidental, as esculturas nasceram para venerar os deuses, os únicos, até então, a merecerem tamanho destaque. Convém salientar que os deuses gregos eram concebidos à imagem e semelhança dos homens, sendo movidos, portanto, a paixões e pensamentos que estavam presentes em reles mortais. A forma humana era alimentada pelo afã divino de ganhar corpo e simultaneamente buscar constantemente a perfeição. Estaria aí o fascínio encantador das esculturas: projetar a arte como engenho mental e sensível projetado na composição criativa do ritmo, do equilíbrio e da harmonia ideal. A plasticidade versátil, ao longo da História, vem sendo gravada em suportes diversificados (pedra, madeira, argila, vidro), representando, com primor, o amor artístico pela beleza, considerada motor estético para projeções especulativas, motivadas pelo jogo movimentado de perguntas e respostas, ancoradas por uma dimensão totalmente plurissignificativa. 

Dessacralizar a arte se fez possível graças ao empenho do escultor em percebê-la também ao “rés-do-chão”, experimentando, assim, uma perspectiva ousada que suplementa a dimensão sublime, já muito consagrada. O escultor, como sujeito-ponte, misturou as estações plenas e planas da existência, alcançando um nível de horizontalidade ímpar, o que proporcionou artísticas criações, sendo elas formadas, mas também deformadas, segundo a tentativa louvável de ilustrar matrizes animadas e inanimadas. Assim, ganham brilhantismo escultural as emanações imaginárias e realistas que brotam do humanismo autoral despojado.

Cabe ao artista conduzir harmoniosamente o arranjo escultural, sempre atento à escuta dos significados múltiplos que povoam o processo criativo. Existem também os momentos de temperar a obra com profundas inquietações, pertinentes ao manejar lúcido e lúdico, que são embalados e abalados pelo frescor das ideias e pelo fogo das convicções. Não se deve temer a locomotiva sensível que leva o escultor a mundos desconhecidos. O retorno dessa viagem se faz arte, arte esculpida segundo o gosto do previsto e o sabor do acaso. O escultor também se dedica a misturar realismo com a beleza propriamente dita. Em decorrência disso, as obras esculpidas possuem múltiplos vetores de percepção, permitindo leituras diversificadas. Esculpir significa manipular a realidade, orientando-a para sustentar linhas e curvas artísticas capazes de ressaltar o fruto processual do labor criativo em composição. 

Grande escultor italiano, Michelangelo (1475-1564), questionado sobre como fazer uma escultura, habilidosamente respondeu: “simplesmente retiro do bloco de mármore tudo que não é necessário”. Esculpir, portanto, comunica que o suficiente é o bastante. Belo adágio da sabedoria minimalista, por sinal. Poeticamente, Regina Mello, no fabuloso livro Cinquenta (2010), apresenta um conjunto de versos que podem muito bem simbolizar o objetivo escultural: “não se define o sol claro/que clareia e colore o mundo/não quero o sol/quero um raio seu”. Ou seja, esculpir é, diante do sol, encontrar satisfação com um raio dele. 

Nascida em Itaúna-MG, a poeta especialmente mencionada é Bacharel em Escultura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, além de artista plástica pela Escola Guignard. Gestora cultural, curadora e artista-pesquisadora, Regina Mello também se destaca pela realização de inúmeras exposições e eventos nacionais e internacionais, além de conduzir o Museu Nacional da Poesia (MUNAP), na condição de diretora-fundadora. Como se percebe, a multiartista possui uma ampla trajetória de formação que também abraça a escultura. Dentre seus trabalhos nesta área, está a notável obra intitulada Livro de Vidro (2005), cujo repertório comporta a relação entre Literatura e outros Sistemas Semióticos.

O livro-escultura é composto por placas de vidro com poesias da autora, esculpidas à base de um talento caligráfico-semântico primoroso. Um tom esverdeado domina a tela, abrindo um fantástico portal conectivo entre a natureza e a cultura, no sentido de promover o florescimento poético por todos os lados. O trabalho rememora parodicamente as tábuas de pedra utilizadas por Deus na escritura dos Dez Mandamentos, sendo estes entregues ao profeta Moisés para melhor difundi-los. Acontece que os poemas esculpidos de Regina Mello se apresentam como “Obra Aberta”, conforme designação de Umberto Eco, pois oferecem ao público espectador uma rede de sentidos que movimentam a reestruturação constante do pensamento e da sensibilidade. 

Nesse sentido, diálogo frutífero há entre o Livro de Vidro (2005), de Regina Mello, e O jogo das contas de vidro (1943), produzido pelo escritor alemão Hermann Hesse, considerando, especialmente, esta emblemática passagem: “tudo se afigura não só como se tivéssemos duas maneiras diferentes de exprimir-nos e falar, cada uma delas só podendo ser traduzida na outra na forma de insinuações, porém, mais ainda, como se fôssemos dois seres absoluta e radicalmente distintos, que jamais poderão chegar a se entender mutuamente. Parece-me extremamente duvidoso apurar quem de nós dois seria propriamente o ser humano, autêntico e de pleno direito, tu ou eu, se é que um dos dois o é realmente”. 

Alimentando-se desse tipo de peleja especulativa transbordante, o Livro de Vidro, polissêmico e polifônico, coloca-se, ao mesmo tempo, leve e pesado, literal e metaforicamente falando. A obra de Regina Mello nos ajuda a problematizar a temporalidade histórica, cuja preferência hegemônica se molda conforme o enquadramento coercitivo do mundo-vitrine, ignorando o fato de que ele é composto por pessoas-vidraças. Face ao exposto, os poemas em vidro, esculpidos por Regina Mello, se revelam como grande chance para o público ficar “vidrado” no que realmente vale a pena conferir de perto. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.


Livro de Vidro (2005), de Regina Mello​:



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