domingo, 5 de julho de 2015

SE ENAMORA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Composição de Garofalo, Monti, V. Giuffre, G. Castaldo e Edgar Poças, Se Enamora, gravada pela Turma do Balão Mágico, em disco de 1984, entra para a história da música popular brasileira pela coragem e leveza no tratamento da temática, envolvendo a educação para a sexualidade, tendo como público de alcance primeiro a criançada. Linda canção, bela letra: “Quando você chega na classe/Nem sabe/Quanta diferença que faz/E às vezes/Faço que não vejo e nem ligo/E finjo, ser distraída demais/Quantas vezes te desenhei/Mas não consigo/Ver o teu sorriso no fim/Te sigo/Caminhando pelo recreio/Quem sabe/Você tropeça em mim/Se enamora/Quem vê você chegar com tantas cores/E vê você passar perto das flores/Parece que elas querem te roubar/Se enamora/Quem vê você chegar com tantos sonhos/E os olhos tão ligados nesses sonhos/Tesouros de um amor que vai chegar/Quando toca o despertador/De manhãzinha/Me levanto e vou me arrumar/E vejo/A felicidade no espelho/Sorrindo/Claro que vou te encontrar/Fico só pensando em você/E juro/Que vou te tirar pra dançar/Um dia/Mas uma canção é tão pouco/Nem cabe/Tudo que eu quero falar/Se enamora/Quem vê você chegar com tantas cores/E vê você passar perto das flores/Parece que elas querem te roubar/Se enamora/Quem vê você chegar com tantos sonhos/E os olhos tão ligados nesses sonhos/Tesouros de um amor que vai chegar/Se enamora/E fica tão difícil/De ir embora/E às vezes escondido/A gente chora/E chora mesmo sem saber porque/Se enamora/A gente de repente/Se enamora/E sente que o amor/Chegou na hora/E agora gosto muito de você”.

Pela música, podemos acompanhar a trajetória do próprio indivíduo que, no desenvolvimento da sua existência familiar e social, percebeu o papel vital da sexualidade, como espaço e fonte de alegrias, conflitos, tristezas, esperanças. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a Sexualidade Humana como “uma energia que nos motiva para encontrar amor, contato, ternura e intimidade; que se integra no modo como nos sentimos, movemos, tocamos e somos tocados; é ser-se sensual e ao mesmo tempo sexual; ela influencia pensamentos, sentimentos, ações e interações e, por isso, influencia também a nossa saúde física e mental”. 

A Educação para a Sexualidade engloba não só a informação sexual, mas a discussão de valores do domínio socioafetivo que vão emergindo no processo de socialização que se faz através da família, da escola e de toda a rede social, valores que são veiculados de forma explícita ou implícita desde o nascimento. Ressalta-se, ainda, que a sexualidade integra componentes sensoriais e emotivo-afetivos, cognitivos e volitivos, sociais, éticos e espirituais, adquirindo o verdadeiro sentido no contexto de um projeto de vida que promova o conhecimento e a aceitação de si próprio e do outro. 

A necessidade de se falar de Educação para a Sexualidade na escola assume uma enorme relevância por várias ordens de razão. A unidade de ensino e aprendizagem precisa servir de parâmetro saudável a fim de que os estudantes possam descobrir a diferença entre sexualidade e genitalidade, além de adquirir respeito pelo próprio corpo e pela pessoa do outro. É temeroso deixar que o acesso das crianças e dos jovens à realidade sexual seja feita ao sabor do acaso, acabando muitas vezes por ser alcançada exclusivamente pelas vias da pornografia, da curiosidade mórbida, da experimentação às escondidas e das condições geralmente traumatizantes.

O zoólogo estadunidense Alfred Kinsey (1894-1956), nos livros O comportamento sexual nos homens (1948) e O comportamento sexual nas mulheres (1953), fundamentou bases importantes para a Educação Sexual ser discutida e praticada à luz de instrução e sensibilidade qualificadas. Para o professor da Universidade de Indiana (EUA), a heterossexualidade seria apenas uma opção entre múltiplas condutas sexuais: “falando em termos biológicos, não existe, na minha opinião, nenhuma relação sexual que eu considere anormal [...]. O problema é que a sociedade está condicionada por normas tradicionais para fazer crer que a atividade heterossexual dentro do casamento é a única correta e sã entre as expressões sexuais”. Kinsey difundiu a atividade sexual livre e completamente dissociada da procriação, e abominou a distinção tradicional entre homem e mulher, diferença que, para ele, não estaria determinada pelo sexo, mas sim pela cultura. Poeticamente, eleva-se esse refinado entendimento, por exemplo, na música Paula e Bebeto (1975), composta por Milton Nascimento e Caetano Veloso: “Qualquer maneira de amor vale a pena/Qualquer maneira de amor vale amar”.  

Na canção Química (1987), o músico-compositor Renato Russo questionava o modelo educacional alheio às questões afetivas e emocionais, centrando apenas suas disciplinas em formulações reflexivas de cunho mental, funcional e racionalizador: “Estou trancado em casa e não posso sair/Papai já disse, tenho que passar/Nem música eu não posso mais ouvir/E assim não posso nem me concentrar/Não saco nada de Física/Literatura ou Gramática/Só gosto de Educação Sexual/E eu odeio Química!/Não posso nem tentar me divertir/O tempo inteiro eu tenho que estudar/Fico só pensando se vou conseguir/Passar na porra do vestibular”. Na verdade, a história da construção pessoal fundamenta-se por uma alternância de momentos afetivos e cognitivos, não paralelos, mas integrados. Por isso, a escola precisa proporcionar felicidade, realização pessoal, satisfação e conhecimento, promovendo, assim, a dignidade humana, sendo que a educação para a sexualidade apresenta um papel preponderante nestes termos. Desse modo, conseguiremos reduzir a ignorância acerca da dinâmica sexual, permitir um desenvolvimento pessoal integral, melhorar as relações interpessoais, e zelar por um comportamento sexual prazeroso e construtivo. 

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. 

PELO AMOR DE CARTOLA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Salvo melhor juízo, eis as principais afirmações que sustentam o credo amoroso dominante: 1) o amor é um sentimento natural e universal, presente em todas as épocas e culturas; 2) o amor é um sentimento surdo à “voz da razão” e incontrolável pela força da vontade; 3) o amor é a condição sine qua non da máxima felicidade a que podemos aspirar. O ideário amoroso ressalta a importância da espontaneidade e relega a razão a segundo plano. No entanto, a prática amorosa desmente estas idealizações. Amamos com sentimentos, mas também com a razão e julgamentos. Os eleitos, os escolhidos, possíveis objetos de amor, obedecem a certas condições para serem aceitos, como: classe social, grau de escolaridade, valores, etc., que geralmente são chamadas de afinidades. As expectativas amorosas são altamente idealizadas e levam a sentimentos de frustração e impotência. Cabe ressaltar que as idealizações, segundo Nietzsche, são manifestações de uma concepção metafísica de mundo que desqualifica esta existência tal como ela é. Desta forma, a idealização é uma construção imaginária que supõe a existência de outro mundo, de outra vida para além desta. O projeto de Nietzsche foi desmistificar estas idealizações que se escondem sob a moral, já que se apresenta como dicotomias simplificadoras, entre bem e mal, pretendendo sempre excluir o que é considerado anticonvencional.

Para Elisabeth Badinter, no livro Um é o outro (1986), o amor ideal é a experiência emocional cuja virtude é nos proteger contra a solidão e tem sua fonte no respeito e ternura pelo outro. Porém, a autora adverte, vivemos numa cultura narcísica, inibidora da experiência amorosa. A tese de Zygmunt Bauman, expressa, em Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos (2004), que o sentimento em destaque é ambivalente, incerto e inevitavelmente traz sofrimento. Segundo este autor, nesse mundo de furiosa “individualização”, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre a alegria e a dor e não há como determinar quando um se transforma no outro. Para Bauman, a virtude do amor reside na balança entre liberdade e responsabilidade. Acrescentaria, ao ouvir a sábia canção Autonomia (1977), composta pelo poeta-sambista Cartola, que, longe de servir como mote para o discurso da servidão voluntária, como pensava Etienne de la Boétie, o amor se realiza, em termos vivenciais, na plena autonomia a ser estimulada como virtude transitada em diálogo e respeito: “É impossível nesta primavera, eu sei/Impossível pois longe estarei/Mas pensando em nosso amor/Amor sincero/Ai, se eu tivesse autonomia/Se eu pudesse gritaria/Não vou, não quero/Escravizaram assim um pobre coração/É necessária nova abolição/Pra trazer de volta a minha liberdade/Se eu pudesse gritaria, amor/Se eu pudesse brigaria, amor/Não vou, não quero”.

Compreendo a “nova abolição” sentimental proposta por Cartola como sendo uma crítica da idealização do amor-paixão romântico, pois sem questionar esse modelo afetivo, tempos poucas chances de experimentar uma vida sexual, sentimental ou amorosa mais livre. Quando a voz poética, presente na canção do poeta sambista, recusa-se a gritar e a brigar como formas impositivas de afirmação, diante do vínculo amoroso, Cartola traz à baila o fato de que é preciso negociar constantemente entre as pulsões egoístas, ou seja, o amor a si e o desejo de ter uma relação com o outro. A relação com o outro pode pressupor a disponibilidade para a troca e o compartilhamento das experiências, implicando em um desprendimento dos interesses individuais em favor da manutenção da união. A respeito, quando elaborou sua teoria sobre as transformações da intimidade, Anthony Giddens, em As consequências da modernidade (1991), salienta que a confiança nas pessoas é erigida sobre a mutualidade de resposta e envolvimento; a fé na integridade do “outro” se apresenta como fonte primordial para o sentimento de autenticidade do “eu”. Convém ressaltar que a confiança amorosa costuma ser ambivalente, e a possibilidade de rompimento está sempre mais ou menos presente, conforme poeticamente destaca Vinícius de Moraes, em Soneto de Fidelidade (1938): “Eu possa me dizer do amor (que tive):/Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure”. 

Os laços pessoais podem ser rompidos, e os laços de intimidade podem voltar à esfera dos contatos impessoais – no caso amoroso rompido, o íntimo torna-se de súbito novamente um estranho. A exigência de “se abrir” para o outro que as relações pessoais de confiança pressupõem a injunção de nada ocultar do outro, misturam renovação da confiança e ansiedade profunda. A confiança pessoal exige um nível de autoentendimento e autoexpressão que deve ser em si uma fonte de tensão psicológica. Pois a autorrevelação mútua é combinada com a necessidade de reciprocidade e apoio; estas duas coisas, contudo, são freqüentemente incompatíveis. Tormento e frustração entrelaçam-se com a necessidade de confiança no outro como o provedor de cuidados e apoio. 

Com isso, vivemos numa moral dupla: de um lado, a sedução das sensações; de outro, a saudade dos sentimentos. Amorosamente, estamos diante de um misto de filosofias: “até que a morte nos separe” com “até que a morte do amor nos separe”. Nesse sentido, Jurandir Freire Costa, em Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico (1998), bem formula: “Queremos um amor imortal e com data de validade marcada: eis sua incontornável antinomia e sua moderna vicissitude”. Amor, portanto, não é segurança, é “um cuidar que se ganha em se perder”, lembra Camões. Trata-se igualmente de livrar o amor do encerramento domesticado e do devotamento tradicional. Quando amamos, juntamos paixão e amizade, tirando, assim, os coelhos da cartola da solidão. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. 

quinta-feira, 2 de julho de 2015

COISAMENTE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A citação é longa, mas revela a abreviação da vida: “Em regra, partem do regime econômico as transformações básicas que repercutem, tarde ou cedo, em toda a estrutura. Isto acontece, porque naquele plano das relações dos homens com as coisas materiais, as inovações são estimuladas e facilitadas, sobretudo, por um critério de eficiência e utilidade. A necessidade de produzir e reproduzir constantemente as condições de existência e de sobrevivência; a tecnologia e os instrumentos de domínio e utilização do mundo físico; o ‘meio artificial’, criado pelo trabalho e pela técnica, que se superpõe ao meio natural e singulariza o caráter ativo da adaptação humana; toda a base material das relações humanas é criada e historicamente transformada sob o império da adaptação e da satisfação de necessidades, o que torna prioritários, neste plano, os critérios de utilidade e eficiência, permitindo que do regime econômico partam as mais fortes impulsões às transformações sociais”.

Continua Costa Pinto, em Sociologia e Desenvolvimento (1980), dizendo: “Nos outros planos da estrutura social encontramos as relações dos homens entre si e as instituições e valores que delas resultam como produtos sociais e históricos. Aqui, os conteúdos emocionais são muito mais profundos e essenciais, as ações e reações se regulam por normas e princípios de significação valorativa e são maiores as resistências às transformações. Não seria preciso argumentar, longamente, para demonstrar por que uma sociedade substitui mais facilmente uma máquina do que uma norma, um princípio ou uma atitude diante da vida”.

A economia passa a vigorar como uma espécie de natureza que tem as suas próprias leis e que se impõe à vontade de cada um de nós. A economia não é boa, nem má, não deseja o bem nem o mal a ninguém. A economia é, simplesmente, uma ordem de circulação de riquezas, de produção de bens de consumo. Não diz nada a respeito dos indivíduos. A “economia política”, na qual a economia estava posta a serviço da política, transformou-se pouco a pouco em simples economia, relegando a política a um papel subalterno. Havendo dissolvido a substância que esta ainda possuía, a economia passou a reinar absoluta com suas leis próprias, objetivas e racionais, isto é, leis que têm a razão de ser no próprio sistema produtivo, indiferentes aos desejos e às situações individuais. 

Penso que o conceito marxista de reificação expressa o encadeamento da ruptura excessiva entre ética e política e política e economia, em que o indivíduo se tornou mero agente de uma ordem de coisas maior do que ele, que lhe impõe uma vontade cega e impessoal sob a forma da necessidade férrea das leis do mercado, à qual estamos todos submetidos. Tal é a inevitável reificação que ocorreu no mundo humano, no qual todos os homens se viram transformados em coisas, agentes e instrumentos de produção dos bens necessários à vida. A produção da riqueza, necessária para a subsistência humana, não é reificante. O núcleo duro da reificação consiste na independência com que funciona esse mecanismo, indiferente a qualquer sentimento subjetivo. Ele estimula, porém, o consumo ilimitado e insaciável como condição de sua existência. A respeito, poetiza Carlos Drummond de Andrade, em “Eu, etiqueta” (1984):

“Onde terei jogado fora/meu gosto e capacidade de escolher,/minhas idiossincrasias tão pessoais,/tão minhas que no rosto se espelhavam/e cada gesto, cada olhar/cada vinco da roupa/sou gravado de forma universal,/saio da estamparia, não de casa,/da vitrine me tiram, recolocam,/objeto pulsante mas objeto/que se oferece como signo de outros/objetos estáticos, tarifados./Por me ostentar assim, tão orgulhoso/de ser não eu, mas artigo industrial,/peço que meu nome retifiquem./Já não me convém o título de homem./Meu nome novo é coisa./Eu sou a coisa, coisamente”.

Cabe salientar que o último verso do poema “Eu, etiqueta” – “eu sou a coisa, coisamente” – é emblemático para compreensão desse quadro de submissão mercadológica e pode ser entendido a partir dos seguintes sentidos: a) a personificação da coisa, isto é, “a coisa” é o modo de ser do eu-lírico, se entendermos a relação entre “coisa” enquanto substantivo e “coisamente” enquanto advérbio; b) a coisificação da mente, ou seja, a transformação da capacidade subjetiva do eu-lírico em propriedade do objeto, se nos atermos ao neologismo coisamente (coisa + mente); c) a mentalização da coisa, isto é, o registro dela na “mente” do eu-lírico é tão ressaltado pelos artifícios da sociedade de consumo, a exemplo do marketing propagandístico, que “a coisa” chega ao ponto de ocupar o centro das atenções do sujeito; d) a mentira ou a artificialidade presente no mundo das coisas, se levarmos em consideração a relação entre “coisa” enquanto sujeito e a sua ação correspondente: “mente”, na condição do verbo “mentir”.

Na dança macabra das coisas sólidas, adverte o músico Alceu Valença, em Coração bobo (1980): “a gente se ilude, dizendo: ‘já não há mais coração!’”. Os sentimentos expressam a capacidade que possui o ser humano de conhecer, compreender, sentir e compartilhar emoções que ocorrem em sua intimidade. Eles geram a afetividade, quando estão sob a ação da vontade dignificada, tornando a pessoa saudável emocionalmente. Quando desequilibrados pelo materialismo, a desrazão torna a existência muito difícil de ser suportada, pois transformamos afeto em apego, impedindo que as emoções nobilitantes façam com que a vontade se eduque e o homem pense melhor. Há sempre o pensamento, o sentimento e a vontade interligados, que somos convidados a direcionar eticamente para o bem, o bom e o belo. 


* Professor da Faculdade JK, Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

ELETROMAGNITUDE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


De primeira, sem deixar a bola cair, um chute impressionante. Lá onde a coruja dorme. Obra-prima assinada por Gilberto Mauro. Gol de quem conhece. Pura eletromagnitude deste pianista bom de verso e prosa, ao dizer: “A arte doa. O pensamento liberta. Só o amor e o humor salvam. O resto é paliativo”. O que a arte doa? A apreensão do belo. A beleza pertence à esfera da sensibilidade. Os diálogos de Platão afirmam que a experiência da beleza é uma das grandes vias para compreender quem somos e o que nos rodeia. Seria o belo como equivalente do bem, verdadeiro e uno. A estética, com a filosofia moderna, concentrou-se no parecer subjetivo diante da arte. Immanuel Kant mostrou como a beleza depende da apreciação: sem subjetividade, não há reconhecimento do belo. A reação do sujeito é tão importante quanto as características do objeto. Uma obra de arte não é representação de uma coisa bela, mas a representação bela de uma coisa. 

A arte é encontro com o ser e, nesse sentido, é poiesis, criação que revela e desvela o ser. Merleau-Ponty chama a atenção para o fato de a arte nos conduzir a uma experiência primordial. A experiência estética recria o real, dá-lhe outro sentido, outra dimensão, abre novos horizontes. Reconfigura o mundo, pois o artista não quer copiar a realidade. Mesmo a mais aparente desordem revela sempre outro modo de dizer o mundo. Uma pintura, uma escultura, um poema ou uma sinfonia não são uma mera distração, um simples passatempo, mas sim um modo de o artista se comunicar, ao pôr em comum vários sentidos. A beleza exige uma consciência que a aprecie, contudo, a realidade é que transborda a consciência. Torna-se interessante afirmar que a beleza resulta da interação entre a consciência e as coisas.

O mundo da arte é o mundo do singular, do único, do exclusivo. Ao contrário da técnica, que é o mundo do prático e do genérico. A arte nos liberta da redução ao imediato e da fúria do utilitarismo. Ela é a criação de um mundo intemporal dentro do mundo das coordenadas físicas, pois visa contemplar a seguinte dinâmica: “tudo que se faz eterno é terno”, conforme destaca o próprio Gilberto Mauro, em sua música Um canteiro (2006). A arte é a expressão da reflexibilidade, da inteligência, da emoção e da imaginação. Caso contrário, “computadores fazem arte/artistas fazem dinheiro”, como cantava Chico Science, no álbum Da lama ao caos (1994). A distinção entre a beleza desinteressada da criação artística e a finalidade de objetos tecnológicos remonta a Aristóteles. Aquilo que designamos quando falamos de arte é poiesis. A techné visa a utilização na vida cotidiana. Marcel Duchamp, ao apresentar um urinol de louça, a que deu nome de A Fonte, numa exposição de 1917, em Nova York, quebrou a noção da obra de arte como produto, esteticamente bela, emocionalmente profunda. Nascia o conceito de ready-made, fazendo arte com objetos industrializados: apropriar-se de uma coisa já feita e dar-lhe título e um sentido alegórico, com o propósito de chocar o espectador, como desde sempre fizeram as vanguardas artísticas. Diz-se que, após Duchamp, tudo pode ser arte: descontruído o conceito, as fronteiras da arte ficam fluidas, imprecisas e ambíguas.

Por excelência, a arte é reconhecida, através dos tempos, como atividade do livre pensar criativo. Por que pensar é libertário, considerando o que disse Gilberto Mauro? Porque refletir tem como horizonte a busca da verdade por meio de caminhos exercitados pelo benefício da dúvida especulativa. O pensamento precisa ser educado e emitido para o bem, pois quem pensa com elevação é bem sucedido em seus empreendimentos honestos. Temos a necessidade existencial de fazer perguntas, de conhecer a nós mesmos, de incomodar o status quo das coisas e do mundo. Metaforicamente, pensar permite escalar as alturas e mergulhar nas profundezas, sem perder o sentido da superfície como noção de parâmetro especulativo. O pensamento se alimenta do raciocínio, enquanto processo de ordenar e coordenar aquilo que foi descoberto pela investigação. Implica descobrir maneiras válidas de ampliar e organizar o que foi descoberto ou inventado enquanto é mantido como verdade. 

Considerando a funcionalidade reflexiva e o experimentalismo artístico expostos, chegamos, na esteira de Gilberto Mauro, a considerar também que a salvação maior da humanidade se encontram no amor e no humor. Em outras palavras, considerar autenticamente que a vida vale a pena ser vivida, considerando tanto prazeres como desprazeres, depende fundamentalmente da nossa capacidade de amar. O humor é fundamental para suavizar dores e ressaltar primores, isto é, “louvando o que bem merece deixando o que é ruim de lado”, conforme aconselham Gilberto Gil e Torquato Neto, em Louvação (1967). No amor, encontramos a expressão mais completa de nossa possibilidade de entrega, doação e, na mesma medida, nossa maior capacidade de receber, compreender, aceitar e desejar outra pessoa escolhida por nós e que, por sua vez, nos escolheu. 

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

CONTRA A REDUÇÃO DA MATURIDADE PARLAMENTAR

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


02 de julho de 2015. Placar da mancada: com 323 votos a favor e 155 votos contra, com duas abstenções, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que reduz de 18 para 16 anos a idade penal para crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. Para virar lei, o texto ainda precisa ser apreciado mais uma vez na Câmara dos Deputados e, depois, ser votado em outros dois turnos no Senado. O resultado da votação mostra que o Congresso Nacional, considerando sua bancada reacionária, detesta a democracia e adora ter o chicote e o cassetete nas mãos.

Os apologistas do cárcere sempre primaram pelo agravamento das penas e pela redução da maioridade penal. São cientificamente obsoletos, mas incansáveis em matéria de autoritarismo sádico. No apagar das luzes, a Câmara dos Deputados transformou-se em uma câmara de gás nazista, seguindo à risca o Código da Violência, denunciado pelo escritor Paulo Lins, em Cidade de Deus (1997): “Falha a fala, fala a bala”. Disseram os apologistas do cárcere para a sociedade brasileira que não vão dedicar seus mandatos parlamentares a viabilizar medidas de proteção à criança e ao adolescente, conforme regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal: “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

É importante ressaltar que existe sanção para o menor, sendo denominadas medidas socioeducativas, elencadas no artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei 8.063/1990. As medidas socioeducativas são decorrentes de um ato infracional análogo ao crime e poderão ser as seguintes: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. A medida deverá ser aplicada pelo Juiz, observando os seguintes fatores: gravidade da infração, circunstâncias do fato e capacidade do menor infrator em cumpri-la. Devemos coletivamente concentrar nossos esforços para que o Estado tenha melhor capacidade para cumprir o disposto na legislação, implementando políticas públicas destinadas à criança e ao adolescente, assegurando-lhes o acolhimento em uma edificante rede de proteção social.

O último Censo revelou que os adolescentes brasileiros – 12 a 18 anos – somam 20 milhões. Já o número de adolescentes infratores em todo o país é de 20 mil, isto é, 0,1% da população. Destes 20 mil, pouco mais de 6 mil estão em medida de internação, ou seja, 14 mil não são atos de alta periculosidade. Enquanto existem 87 delitos graves cometidos por adultos para cada 100 mil habitantes, existem apenas 2,7 infrações graves praticadas por adolescentes para a mesma população, sendo que 70% destas infrações são roubos e não atentados contra a vida das pessoas. A diminuição da idade penal põe em risco todas as conquistas que foram feitas sobre direitos da criança e do adolescente. Como visto, o menor infrator sofre sanções chamadas medidas socioeducativas que, se cumpridas do modo previsto no ECA, pode solucionar o problema, ao contrário da equivocada redução da maioridade penal. Melhor seria se aumentássemos o investimento eficaz e eficiente em políticas públicas na área de educação, cultura, saúde e lazer, assegurando os dizeres constitucionais e cumprindo a função de Estado Democrático de Direito.

Já alertava Michel Foucault, em Vigiar e punir: história da violência nas prisões (1975): “o princípio da moderação das penas, mesmo quando se trata de castigar o inimigo do corpo social, se articula em primeiro lugar como um discurso do coração. Melhor, ele jorra como um grito do corpo que se revolta ao ver ou ao imaginar crueldades demais”. Entre o princípio contratual que rejeita o criminoso para fora da sociedade e a imagem do monstro “vomitado” pela natureza, o ressentimento de nossos tiranos engravatados, representando o exército dos revoltados, expôs, na verdade, a impotência dos “legisladores” em encontrar o fundamento racional de um cálculo penal. Com tamanha ferocidade parlamentar, o Hino Nacional Brasileiro acabou ganhando uma nova letra: 

“Vamos celebrar a estupidez humana/A estupidez de todas as nações/O meu país e sua corja de assassinos/Covardes, estupradores e ladrões/Vamos celebrar a estupidez do povo/Nossa polícia e televisão/Vamos celebrar nosso governo/E nosso Estado, que não é nação/Celebrar a juventude sem escola/As crianças mortas/Celebrar nossa desunião/Vamos celebrar Eros e Thanatos/Persephone e Hades/Vamos celebrar nossa tristeza/Vamos celebrar nossa vaidade/[...]/Vamos celebrar nossa bandeira/Nosso passado de absurdos gloriosos/Tudo o que é gratuito e feio/Tudo que é normal/Vamos cantar juntos o Hino Nacional/(A lágrima é verdadeira)/Vamos celebrar nossa saudade/E comemorar a nossa solidão/Vamos festejar a inveja/A intolerância e a incompreensão/Vamos festejar a violência/E esquecer a nossa gente/Que trabalhou honestamente a vida inteira/E agora não tem mais direito a nada/Vamos celebrar a aberração/De toda a nossa falta de bom senso/Nosso descaso por educação/Vamos celebrar o horror/De tudo isso - com festa, velório e caixão/Está tudo morto e enterrado agora/Já que também podemos celebrar/A estupidez de quem cantou esta canção” (Texto extraído da música "Perfeição", gravada pela Legião Urbana, em 1993).


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.