quarta-feira, 30 de setembro de 2015

RAÍZES DO PARLASHOPPING

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Arremedos de fausto e luxo são exercitados no Brasil desde os tempos coloniais. No livro Tratados da Terra e Gente do Brasil, alerta o padre Fernão Cardim, visitante de Pernambuco, em 1582, onde já se ensaiava uma sociedade florescente, viva e ávida de diversões, funções e espetáculos, tudo com muito luxo e ruído: “Vestem-se homens e mulheres e filhos de toda sorte de veludo, damasco e outras sedas, e nisto têm grandes excessos. As mulheres são muito senhoras e não muito devotas; os homens são tão briosos que compram ginetes de 200 e 300 cruzados; e alguns têm três, quatro cavalos de preço: e os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas de que iam vestidos. São sobretudo dados a banquetes, e gastam quanto têm: Enfim em Pernambuco se acha mais vaidade que em Lisboa”.

O ócio desprezível, a ostentação descontrolada e a vulgaridade desenfreada também tomaram conta do modus vivendi brasileiro, durante o Império. Machado de Assis lamentava o fato de, na programação cultural, predominar espaço para atrações vulgares e medíocres. Em crônica publicada no jornal O Cruzeiro, de 01/09/1878, o notável folhetinista protestava: “Talvez o leitor lastime não ver em toda essa enfiada de recreios públicos alguma coisa que entenda com a mentalidade humana. [...] Danças, vistas, tramoias, tudo o que pode nutrir a porção sensual do homem, nada que lhe fale a essa outra porção mais pura; nenhum ou raro desses produtos do engenho, frutos da arte que deu à humanidade o mais profundo dos seus indivíduos. Pobre espírito! Quem pensa em ti, nessa dança macabra de coisas sólidas? Quem oferece alguma coisa ao paladar dos delicados, não corrompido pelo angu do vulgo?”. 

Não há como negar que, no Brasil República, tanto a vida quanto a configuração do urbano sofreram consideráveis modificações. Dentre elas, destacam-se aquelas resultantes da presença de expressões do setor terciário, tais como o comércio informal de rua, os prédios destinados a serviços especializados e, posteriormente, os shopping centers. O surgimento e a proliferação destes “templos do consumo” consolidaram o referido setor como imprescindível para a comercialização e consumo de mercadorias. Juntamente com o shopping center, foram sendo agregadas condições de lazer, entretenimento e cultural a tal ambiente, o que denota sua relevância adquirida junto à sociedade. Tanto é que, no setor em questão, o Brasil, conforme a Associação Brasileira de Shopping Centers (ABRASCE), ocupa o 5º lugar no ranking mundial, atrás de Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e França.

A respeito, é preciso considerar a ressalva feita pelo jornalista Frei Betto, no livro Diálogos criativos (2008): “para nós, que vivemos no Brasil, o shopping center é algo mais do que na Europa ou nos Estados Unidos. É onde os pobres desaparecem da paisagem; não há mendigos, não há crianças de rua, não há pedintes nem violência urbana, ou seja, é onde faço de conta que a minha realidade não existe. O principal produto que o shopping oferece é gratuito: a ilusão de que vivo numa sociedade ideal, onde todos os bens estão ao alcance da mão e ninguém está privado dessa possibilidade, porque não vejo a multidão de pobres”. 

De forma irreverente, o grupo Mamonas Assassinas também criticou a diversão superficial e o consumismo exacerbado que predominam nos shoppings. Basta conferir o conteúdo bem-humorado da canção Chopis Centis (1995): “Eu dí um beijo nela e chamei pra passear./A gente fomos no shopping, pra mó di a gente lanchá./Comi uns bicho estranho, com um tal de gergelim./Até que tava gostoso, mas eu prefiro aipim./Quantcha gente,/Quantcha alegria,/A minha felicidade/é um crediário/nas Casas Bahia./Esse tal Chopis Centis é muito legalzinho,/prá levar as namorada e dá uns rolêzinho./Quando eu estou no trabalho,/não vejo a hora de descer dos andaime/prá pegar um cinema, ver Schwarzeneger/também o Van Damme./Quantcha gente,/Quantcha alegria,/A minha felicidade/é um crediário/nas Casas Bahia”.

Como produto da massificação cultural, o “angu do vulgo” não educa o gosto e nem ajuda a atribuir sentido às coisas, enriquecendo-as de significados. Em geral, trata-se de uma produção simbólica de baixa qualidade. Uma diversão que contém mais entretenimento e menos cultura. Cultura é tudo aquilo que engrandece o nosso espírito e a nossa consciência. Entretenimento é o que agrada aos nossos sentidos, sem o crivo da crítica apurada. Face ao exposto, conseguimos, por exemplo, perceber o conjunto de interesses escusos, que se encontram por trás da construção do Parlashopping, a ser feito ao lado do Congresso Nacional. Ao sancionar a Medida Provisória 668, transformada na Lei n° 13.137, no dia 22/06/2015, a presidenta Dilma Rousseff, honrando nebuloso acordo feito com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), autorizou a Parceria Público Privada para a construção do ultrajante centro comercial. Um verdadeiro acinte, considerando o tempo de “vacas magras” que afeta a maior parte dos brasileiros.

O Parlashopping também é incompatível com a destinação prevista para aquele espaço e representa uma grave ameaça à preservação de Brasília como Patrimônio da Humanidade. Modificações dessa natureza prejudicam a estrutura arquitetônica, urbanística e paisagística da cidade. O projeto do empreendimento, orçado em R$ 1 bilhão, pretende contemplar a construção de três novos anexos ao prédio principal, com a instalação de salas comerciais, lojas, restaurantes e estacionamentos para oferecer mais conforto aos deputados. Continua tendo razão o escritor e jornalista Lima Barreto, ao satirizar os abusos dos poderosos ineptos: “Bossuet dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes, o verdadeiro fim da política dos políticos da Bruzundanga é fazer os povos infelizes”.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

DONA LILI

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A liberdade é essencial na filosofia política, por se tratar do primeiro dos bens civis do cidadão e base de sua vida. Pela palavra, considerando a liberdade individual e a responsabilidade social em expressá-la, o homem, como ressaltava Aristóteles, se consolida como um ser vivo político. Registrado na célebre obra intitulada Política, encontra-se a distinção que o filósofo grego fez entre a palavra e a voz, considerando, em termos mais específicos, as finalidades comunicativas das operações expressivas em questão. Se a voz exprime somente a dor e o prazer, a palavra consegue exprimir o útil/justo e o prejudicial/injusto. A capacidade política do homem provém, portanto, da desenvoltura argumentativa presente na capacidade de construir teses e práticas a favor da utilidade e da justiça.

Em discurso pronunciado no Athénée Royal de Paris, em 1819, Benjamin Constant alerta, com perspicácia, sobre as limitações que cercam a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos, quando seguidos à risca, sem considerar a relevante ponderação ética: “O perigo da liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a participação no poder social, os homens não se preocupassem com os direitos e garantias individuais. O perigo da liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca de interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político”.

Diante do dilema apresentado por Constant, uma lei é considerada justa, quando sempre garante a liberdade, considerando o cidadão como senhor de suas escolhas e responsável pleno pelos seus atos. Isso inclui também a garantia legal da dignidade com que o cidadão deve ser tratado pelos agentes públicos. Liberdade política significa também impedir movimentos de censura que prejudicam a democracia. Um cidadão livre é aquele que pode se exprimir, celebrar suas crenças, se fazer representar, produzir, empreender e usufruir dos frutos produzidos individual e socialmente. Para que este modelo funcione a contento, é necessário empenho participativo para superar a linha que divide a sociedade em duas classes, como diria o jornalista e poeta francês Nicolas Chamfort, no século VII: uma que tem mais apetite que jantares, outra que tem mais jantares que apetite.

Em matéria de cidadania, a liberdade precisa, portanto, sair do mundo das ideias (liberty) para se realizar no mundo sensível (freedom). Para tanto, faz-se necessário trazer a equivalência dos jantares e dos apetites. Em outras palavras: precisamos zelar pela justiça em seu estado mais nobre. Entendemos o justo como o estabelecimento coletivo do correto, viabilizando o respeito à igualdade de todos os cidadãos. Reivindicando, com primor artístico, a realização deste paradigma vital, Edson Gomes, grande nome do reggae brasileiro, salienta, na música Lili (1990), que a liberdade tende a se efetivar de forma coletivamente socializada, ou seja, a experiência individual da liberdade só pode ser experimentada em uma sociedade humana livre: 

“Vamos amigo lute/Vamos amigo lute/Vamos amigo lute/Vamos amigo ajude, se não/A gente acaba perdendo o que já conquistou/A gente acaba perdendo o que já conquistou/Vamos levante lute/Vamos levante ajude/Vamos levante grite/Vamos levante agora/Que a vida não parou/A vida não para aqui/A luta não acabou/E nem acabará/Só quando a liberdade raiar/Só quando a liberdade raiar/Liberdade/Liberdade/Teu povo clama lili/Dona lili”.

É necessário que todo cidadão, muitas vezes tratado como consumidor, como peça de um jogo para levar ao poder pessoas individualistas e que não se preocupam com o coletivo, reafirme sua posição como um agente de transformação, capaz de mudar situações de miséria e exclusão em que vive boa parte da população. No campo da liberdade política, ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Significa participar do destino da sociedade democraticamente. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva. 

A comunidade civil não pode, portanto, ser considerada como um apêndice ou uma variável da comunidade política. A civil tem preeminência sobre a política. Sua justificação é o serviço prestado aos cidadãos, todos, na construção de uma sociedade justa, solidária e depositária de valores. A referência é aos valores relacionais, morais, éticos e de abertura à transcendência. O desenvolvimento humano integral só é bem entendido e praticado quando fundado na verdade e na solidariedade. A política se configura mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objetivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. 

O que nos faz humanos é o que nos possibilita, com liberdade, governar nosso destino, desde que lutemos contra nossa ‘‘inércia mental e volitiva’’ e acrescentemos a isso o tempero da bondade, para que possamos construir uma sólida e resistente ponte por sobre o abismo de nossa própria ignorância. Por isso, o exercício da liberdade demanda de todos nós força e sagacidade. Inspiro-me, neste caso, nas sábias palavras do escritor italiano Giovanni Boccacio, expostas na clássica obra Decameron (1348-1353): “Sabe-se que as coisas deste mundo são todas transitórias e mortais, em si e fora de si cheias de tédio, de angústia e de tormentas, passíveis de infinitos perigos; às quais nós, que vivemos misturados a elas e somos parte delas, não poderíamos certamente resistir nem evitar se a especial graça de Deus não nos emprestasse força e sagacidade”. 


* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

ENTRE O FASCÍNIO E O MEDO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Fascínio e medo se misturam quando se nota como as fronteiras entre o humano e a tecnologia se encontram cada vez mais diluídas, considerando o acelerado desenvolvimento da comunicação em escala global. Ao mesmo tempo que se observa a ampliação das oportunidades de contato entre as pessoas, nem sempre a realização presencial da interação se confirma. Assusta o abastecimento da autossuficiência virtual como cultura dos “novos tempos”. Se, por um lado, justiça seja feita, muitas relações de hoje nasceram no ambiente virtual e prosperaram, convém também atestar a existência de uma parcela representativa de interações que permanece encapsulada no ambiente digital. Também chama a atenção a performance dos dispositivos linguísticos que promovem, mas também atrapalham a subjetividade humana à luz do código tecnológico vigente. 

O poeta JoãoZinho da Vila, em seu livro Meu masculino é feminino (2014), traz luz interessante sobre os mecanismos computacionais que interferem incisivamente no desenvolvimento das relações sociais e, em particular, nos fenômenos de simbolização, assim como nos mecanismos de transmissão dos conteúdos. No poema “Lágrimas cibernéticas”, a voz poética de JoãoZinho da Vila problematiza: “Minhas lágrimas escorrem/ sobre um teclado/ que não consegue digitar:/ sauddddaaadeeessSSSSSSSS...”. Mesmo que o computador seja especialista em inteligência, a nossa especialidade, sua competência se encerra na composição de uma inteligência artificial, sem materialidade, sem peso, sem odores, sem carne, sem sentimentos; enfim, desumana. O poeta suspeita, com razão, do fetiche tecnológico que promete embalar, sem desconforto algum, as relações humanas. É ledo engano aceitar que tudo o que estiver envolvido em uma aura de tecnologia pode ser considerado de qualidade positiva. O parâmetro exitoso se encontra muito mais presente no uso humano da máquina, considerando os vícios e as virtudes desta relação, à luz da ética fundamental.

Ressalta JoãoZinho da Vila a limitação da máquina em dar vazão aos sentimentos que só podem ser protagonizados pela proximidade presencial entre os corpos. Existe, assim, um hiato entre o que é sentido humanamente e o que é expressado computacionalmente, lacuna esta que a tecnologia sozinha não consegue preencher. Precisa-se de empenho “humano demasiadamente humano” para deixar fluir a sensibilidade subjetiva, independentemente do imperativo tecnológico em questão. Se de um lado, “as flores de plástico não morrem”; do outro, “o pulso ainda pulsa”, conforme expressam as canções Flores e O pulso, gravadas pelo grupo Titãs, em 1989. 

Face ao exposto, desenvolveu-se tecnologicamente a “sociedade da informação”, mas há muito o que trilhar em matéria de “sociedade da comunicação”. Nesse sentido, explica Bernard Miège, em O pensamento comunicacional (2000), que a substituição do “valor-trabalho” pelo “valor-saber” não se deu por completa, mesmo diante do contexto pós-industrial. Os serviços de comunicação ainda se desenvolvem dependentes das atividades industriais. Entre as seis primeiras marcas do planeta, segundo o ranking divulgado pela Interbrand, em 2014, quatro pertencem à área de tecnologia da informação: Apple (1ª), Google (2ª), IBM (4ª.) e Microsoft (5ª.). A industrialização, ao longo dos tempos, priorizou o útil sobre o inútil como valor absoluto. Com isso, a comunicação foi empobrecendo poeticamente e enriquecendo pragmaticamente. Não à toa o saudoso poeta Manoel de Barros (1916-2014) destacava a importância dos “inutensílios” para o desfrute da vida em sua fruição mais plena de sentidos: “Nasci para administrar o à toa/o em vão/o inútil./Pertenço de fazer imagens./Opero por semelhanças./Retiro semelhanças de pessoas com árvores/de pessoas com rãs/de pessoas com pedras/etc. etc./Retiro semelhanças de árvores comigo./Não tenho habilidade pra clarezas./Preciso de obter sabedoria vegetal./(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade/uma rã no talo)./E quando esteja apropriado para pedra, terei/também sabedoria mineral”. 

Sem poética, a comunicação perde o fio da meada chamada razão com sensibilidade. A humanidade gerou a tecnologia para gozar a vida em abundância. O lado nefasto do desenvolvimento técnico ocorre quando ele corporifica o congelamento dos afetos, via robotização do ser. Terceirizar a interioridade humana, entregando-a ao comando automático em destaque nas máquinas, significa arcar com um sério risco alienador. A respeito, já salientava a escritora e jornalista Clarice Lispector (1920-1977), na crônica “Cérebro eletrônico: o que sei é que é tão pouco” (Jornal do Brasil, em 13/07/1968): “A sensação é de apoio para o homem. Compensação do erro. Há a possibilidade de você lidar com uma máquina e seus sensores como a gente gostaria de lidar com o nosso cérebro (e nossos sensores), fora da gente mesmo e numa função perfeita”.

A cibernética vestiu o sujeito em corpo de objeto. Etimologicamente, objeto – do latim objectum, algo lançado à nossa frente – significa a valorização da coisa predominante ao sujeito. Contraposto ou radicalmente separado do sujeito, a ciência determinista e sua rede tecnológica materializaram a ideologia do objeto existente em si, fora do eu, distinto de mim e dotado de autossuficiência. O resultado deste imbróglio pode ser acompanhado pela irreverência crítica presente em outro poema de JoãoZinho da Vila, intitulado “Memória”: “Deletei todas/as fotos da minha/memória,/apaguei a/emoção do/meu computador,/para não sentir/mais dor, processei meu/coração/e esfaqueei o/meu HD./O sangue escorreu/pelos labirintos/do meu vazio./Meu computador/chorou muito,/mas no dia/seguinte ele/percebeu que é/apenas uma máquina/e as máquinas não amam”. Este poema traz também à baila a razão cordial que promove o ser humano em suas possibilidades interativas, portanto, nos jogos de linguagem que a partir daí se desenvolvem.  


* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O REVOLUCIONÁRIO E O REVOLTADO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Na abertura do livro Ética na educação: filosofia e valores na escola (2003), o professor e filósofo Jorge Thums cita a canção Contador de estrelas (1999), composta por Fábio Jr. e Marinho Marcos: “Sempre que eu me pego/Contando estrelas no céu/Fica uma pergunta na minha mente/O que eu faço neste mundo?/Qual é o meu papel?/Pra onde é que vai a vida da gente?/Não é por acaso que a gente vive aqui nesse mundo/Existe uma razão maior/E eu quero saber antes do fim/Saber quem sou, pra onde vou, de onde vim./A vida é tão maravilhosa, é tão bonita./Pena que a gente não sabe viver!/Mas, um dia, a gente aprende, a gente conquista./E o sonho de ser feliz um dia vai acontecer”.
Trata-se de uma música em que os compositores tiveram a habilidade de não considerar os afetos de um ponto de vista estreitamente “psicológico”, isto é, como estado de alma observável e controlável, mas como disposição interior, ethos. O sentimento manifesta um modo de existir e exprime um modo de ser. É nossa vida por inteiro, corpo e alma, que se encontra implicada numa história afetiva da qual a alegria e a tristeza são as formas originárias das quais nascerão todas as outras. A alegria é o que sentimos quando percebemos o aumento de nossa realidade, isto é, de nossa força interna e capacidade para agir. Aumento de pensamento e de ação, a alegria é caminho da autonomia individual e política. A tristeza é o que sentimos ao perceber a diminuição de nossa realidade, de nossa capacidade para agir, o aumento de nossa impotência e a perda da autonomia. A tristeza é o caminho da servidão individual e política, sendo suas formas mais costumeiras o ódio e o medo recíprocos.
A canção de Fábio Jr. e Marinho Marcos apresenta outro mérito: defende a esperança como atitude prática frente à tristeza. A tristeza é o que sentimos ao perceber que nossa realidade diminui porque nossa capacidade de agir encontra-se diminuída ou entravada. Por sua vez, a esperança se coloca como uma potência intrínseca para a realização de um objetivo. Assim, nutridos de esperança, procuramos tornar o desejo verdadeiro, fazendo oposição à falência da expectativa de que algo vai realmente acontecer. Dialogando com o título de um poema de Aroldo Pereira, podemos definir a esperança como “paciência revolucionária”. Em que sentido? Explica o poeta, em parangolivro (2007): “mudar o mundo/é a nossa bandeira/mas não é pra já/é luta pra vida inteira”. A esperança não desanima, mesmo quando o êxito não é imediato.
A esperança nos unifica no conjunto da humanidade, na amorosidade. A amorosidade, aqui, entendida como um movimento de plenitude que extrapola a materialidade e o consumo das coisas, que se liberta do aprisionamento da propriedade, valorizando a essencialidade das relações. Enquanto a voz poética de um dos coautores da canção Contador de estrelas, Fábio Jr, se empenhou em enaltecer a revolucionária esperança, o citado compositor e músico da cena pop brasileira entrou no azedume de proclamar a revoltada desesperança, durante o evento Brazilian Day, ocorrido, no dia 06/09, em Nova York e transmitido pelo canal Multishow, da Globosat: “Vocês sabem o que está acontecendo no Brasil: desordem e roubalheira. É uma quadrilha. Eu tenho vergonha de ver nossos governantes, todo mundo roubando, todo mundo metendo a mão”.
A revolta é a atitude da mera indignação que nela estaciona. A pessoa fica horrorizada com o que vê: corrupção, pobreza, miséria, desespero. Isso nos horroriza e muitas vezes nos imobiliza: ficamos apenas revoltados. O indivíduo grita, bate, chuta, exclama: “Alguém tem de fazer alguma coisa”. Discursando de maneira torpe e truculenta contra a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula e culpabilizando exclusivamente os políticos petistas ou da base aliada ao governo pelo mal da corrupção brasileira, Fabio Jr. continuou mascando isso e aquilo de forma abrupta: “Vocês sabem onde está aquele dedinho que o Lula perdeu, né? Onde é que ele enfiou? No nosso. E dói pra caramba!”. Estimulado pelo revoltado pop star, a plateia ensandecida emplacou um coro inflamado, xingando a presidenta com expressão sexista e machista de baixíssimo calão.
Propagando impropérios aos borbotões, com o uso da liberdade de expressão sem a responsabilidade argumentativa, o cantor se fez corrupto, conforme advertência registrada no Evangelho segundo Marcos: “Ora, o que sai do homem, isso é que mancha o homem. Porque é do interior do coração dos homens que procedem os maus pensamentos: devassidões, roubos, assassinatos, adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação, orgulho e insensatez. Todos esses vícios procedem de dentro e tornam impuro o homem” (Mc 7, 20-23). 
O revoltado dispara desavenças. O revolucionário aprecia estrelas. Quando indignado, o revolucionário é aquele que dá o passo adiante, querendo mudar aquele estado desagradável de coisas que impedem a coletividade de experimentar a vida digna em plenitude. Todas as culturas que se sobressaem no mundo têm seus princípios comportamentais bem definidos e cultuados socialmente. No Brasil, vivemos uma pobreza enorme de comportamentos aceitos, aprovados socialmente. Aliás, o padrão comportamental é exatamente o avesso, o incorreto. Ser honesto, justo, correto e de índole boa parece algo desprezível. É preciso suplantar essa forma de ser coletivo em nome de uma nova ética comum.
Encontra-se presente no discurso alienado do artista brasileiro uma forma apenas superficial de focar o problema em destaque. A corrupção não é um ato, e sim um estado pessoal e social que suspende a interioridade honesta em nome do oportunismo aparente. A esperteza costuma tomar o lugar da inteligência no processo dissimulador. O triunfalismo atropela a sabedoria, impedindo que a verdadeira política se concretize como arte orientadora da vida em comunidade, isto é, a obra humana coletiva.  

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. 

domingo, 13 de setembro de 2015

EDUCAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Educação é toda relação de mão dupla, no sentido de despertar um processo subjetivo de evolução. Essa confluência leva o educando a promover autonomamente o seu aprendizado moral e intelectual. Trata-se de um processo sem qualquer forma de coação, pois o educador apela para a vontade do educando e conquista-lhe a adesão voluntária para uma ação de aperfeiçoamento. Educar é, pois, elevar, estimular a busca da maturidade, despertar a consciência, facilitar o progresso integral do ser.
O processo educativo é sempre uma relação de indivíduo para indivíduo. E isso ocorre por dois motivos: primeiro porque uma individualidade só se reconhece como individualidade e progride como tal, quando é reconhecida e posta em contato com outra. Segundo, porque só ocorre confluência positiva não-violenta através do amor e o amor só se dá por meio de entre atenções compartilhadas. Um educador pode amar muitos educandos, mas com cada um deve estabelecer uma relação individual. Amamos indivíduos e não massas e grupos. Amar alguém é conhecê-lo profundamente, é interessar-se pela sua felicidade e pelo seu progresso. Por isso, o amor verdadeiro é sempre educativo, e Educação verdadeira é sempre um ato de amor. O amor não é um apetrecho, um aspecto da Educação. A relação entre amor e Educação é intrínseca, indissociável. Qualquer processo que se afasta disso não é Educação, é simplesmente alguma forma de domínio, de patologia ou de prejuízo para aquele que o recebe.
O que se entende muitas vezes por Educação é apenas o processo de integração do indivíduo na sociedade. Ou seja, é sinônimo de socialização. Nessa concepção isolada, ela pode ser tornar um esforço de modelação do homem, abafando-lhe a individualidade e promovendo a padronização social. Logo, a Educação alimenta equivocadamente um paradigma conservador – mantendo o “status quo”, e prejudicando a evolução humana – e um sistema autoritário, desrespeitando a individualidade do educando e deixando de desenvolvê-la como um ser humano, rico de promessas de transformação. O homem se torna apenas o produto acabado de uma dada cultura e de todas as suas mazelas sociais.
Há de reconhecer que a Educação tem um aspecto socializador, mas socializar deve significar: 1) familiarizar o sujeito com a cultura e organização social em que está inserida, mas não a modelar absolutamente de acordo com esses padrões. O desenvolvimento da capacidade crítica, da criatividade e da autonomia de pensamento afastam esse perigo. A respeito, poeticamente alertava o escritor Aníbal Machado, em Cadernos de João (1984): “o espírito muda de posição ou retorna à antiga em que repousa e se aborrece. Só mais tarde vem a saber que o melhor tempo era quando andava livre à procura de uma solução, quando fazia passear suas inquietações”; 2) despertar no indivíduo o sentido de justiça, solidariedade e amor ao próximo, porque esses são os valores essenciais para a formação de uma sociedade justa. Neste sentido, é emblemática a linda canção Vamos viver (1997), imortalizada na voz de Sandra de Sá: "Vamos consertar o mundo/Vamos começar lavando os pratos/Nos ajudar uns aos outros/Me deixar amarrar os teus sapatos/Vamos acabar com a dor/E arrumar os discos numa prateleira/Vamos viver só de amor/Que o aluguel venceu na terça-feira/O sonho agora é real/E a chuva cai por uma fresta no telhado/Por onde também passa o sol/Hoje é dia de supermercado/Vamos viver só de amor/Vamos viver só de amor/Vamos viver só de amor/Vamos viver só de amor".
 Ao contrário, socializar tem sido, quase sempre, ensinar às pessoas os padrões de injustiça, exploração, egoísmo e orgulho, vigentes nas relações sociais e políticas. Subentende-se, neste modelo competitivo e predatório, que é preciso ensiná-la a lesar o próximo, a pensar em primeiro lugar em si e em seus próprios interesses. Em contrapartida, educar um indivíduo para integrar-se na sociedade deve significar equipá-lo de valores reais com que ela possa justamente contribuir para a evolução coletiva. A fim de que a instrução seja de fato um dos aspectos da Educação, o conteúdo transmitido deve ser verdadeiro. Todo conhecimento verdadeiro pode transformar o homem positivamente, e quem transmite um conhecimento pode provocar alguma mutação naquele que o recebe. Esta mudança pressupõe a transmissão de um conteúdo cognitivo empenhando em ajudar o outro a evoluir.
O ideal do processo educativo consiste, portanto, em desenvolver o educando de acordo com a natureza, na evolução harmoniosa do amor-próprio e do amor ao próximo; levá-lo a desenvolver-se na liberdade iluminada pela razão. A função da razão, por sua vez, é dirigir a conduta humana para o “bem do intelecto” e para o “bem do caráter”. Assim, desenvolver-se-á a autêntica felicidade, e o educando se elevará ao verdadeiro ideal do homem. Tamanha missão pedagógica levou o saudoso Rubem Alves (1933-2014) a chamar, o educador de “fundador de mundos”, “mediador de esperanças” e “pastor de projetos”. Ainda no livro Educador: vida e morte (1982), Marilena Chauí defende a tese de que a educação está para a alegria assim como a servidão está para a tristeza. Cabe à educação ampliar nossa capacidade de agir com autonomia, impedindo, assim, que a virtude humana em destaque seja diminuída ou entravada pela apatia opressora.
Acredito que três preocupações muito importantes devem animar a educação da sociabilidade. Há o domínio da verdade – e seu avesso, o que é falso ou indeterminável. Há o domínio da beleza – e sua ausência, em experiências e objetos que são feios ou medíocres. E há o domínio da moralidade – o que consideramos ser bom e o que consideramos ser maligno.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

AUTOAJUDA: AJUDA OU ATRAPALHA?

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Por trás do fenômeno de vendas emplacadas pela literatura de autoajuda, encontra-se uma tremenda confusão que se faz entre os sentimentos de autoestima e vaidade. Adverte o músico e escritor Zeca Baleiro, em Bala na agulha (2010): “o livro de autoajuda e seus similares atropelam a individualidade dos cidadãos, nivelando todos – por baixo – em uma grande massa humana, de comportamentos e atitudes padronizados, sem levar em conta a complexidade própria da espécie: ‘Faça isso, faça aquilo!’; ‘seja amável com o próximo’ etc etc etc. Nada que um humano com o mínimo bom senso não devesse saber fazer com sua vida por sua própria conta e risco. O que me inquieta é pensar como, através dos tempos, uma certa qualidade de pensamento e da reflexão foi-se deteriorando, deteriorando, até chegar a patamares inimagináveis de cretinice, de ‘baixeza’ mental, inversamente proporcionais aos êxitos monstruosos das vendas desses tais livros e, pior, com a adesão cada vez mais cega das pessoas. É como se um arrastão de mediocridade fosse furando o cerco, minando a resistência crítica, como uma grande devastadora onda, até ganhar adeptos entre mentes, senão brilhantes, pelo menos ‘pensantes’. E assim, vai se delineando o espírito de uma época”.
Considerando o que disse Baleiro, podemos afirmar que a mediocridade está para a vaidade, assim como a resistência crítica está para a autoestima. Os livros de autoajuda atuam na brecha íntima dos leitores que sofrem de baixa autoestima e esperam se ver logo livres deste problema com soluções simples e cômodas de sucesso. Com o ego massageado, o leitor tem a sua vaidade alimentada por meio do cumprimento das doutrinas facilitadoras de conforto, com a promessa de que nenhum esforço precisa ser feito para tal, a não ser sua própria “força de vontade”. Basta, como destaca Baleiro, seguir “fórmulas de felicidade e bem-estar” que “são repetidas como mantras em escala industrial”.
Os leitores de literatura facilitadora preferem o caminho da vaidade que fortalece o exibicionismo de plantão. A vaidade depende de observadores externos, pessoas que nos aplaudam e nos admirem. A gratificação da vaidade depende de sermos capazes de nos destacar. Desse modo, a literatura de autoajuda, com suas receitas de sucesso, sustenta nosso complexo de pódio, nossa honra ao mérito narcisista. Só interessa o tão cobiçado primeiro lugar para atingir o centro das atenções e, assim, ganhar glória diante da opinião pública. Já quem busca a autoestima se interessa por outro tipo de literatura: a provocativa. Neste caso, outro tipo de mérito é almejado: utilizar a vida presente para fazer o máximo de benefícios existenciais, resultante de ações desinteressadas. Pensar nesses termos – pensar, pensar, pensar – gera mais confiança, mais convicção, permitindo que atuemos de acordo com aquilo em que acreditamos. A autoestima, portanto, corresponde a uma sensação íntima de bem-estar relacionada com termos sido capazes de executar alguma tarefa à qual nos propusemos. O que conta é a pessoa determinar para si uma tarefa e conseguir realizá-la. Autoestima tem a ver consigo mesmo. É estar feliz com o próprio desempenho.
Só quem tem autoestima considera a vaia como o aplauso dos descontentes, como diria Nelson Rodrigues. Os vaidosos preferem atalhos a travessias. Consideram todos os problemas como obstáculos. Caem no conto do vigário de que os remédios funcionam como belos coletes a prova de dor. Abafam as tristezas para só ostentarem alegrias. Vaidade depende apenas do mundo das aparências, ao passo que a autoestima depende da nossa essência. Essência que contém o bruto a ser lapidado com esmero, trabalho e dedicação, conforme conta Valdo Motta, no poema Cristo Baixo (1999): “a língua trava e as palavras mascam/no trabuco enguiçado, impotente./O corpo, esse vibra sob o impacto/da chuva horizontal de risos e vaias./Prossigo a via-crucis, crista baixa,/sem perder o rebolado, que amar gente/tem destas surpresinhas agradáveis./Daqui a pouco, taruíra, estarei/sarado dos arranhões, e, cabeçudo,/a me entornar de amor por todo mundo”.
Enquanto a literatura de autoajuda só se ocupa das delícias, promovendo o ‘novo’ pensamento positivo da vez, “a literatura de alta ajuda”, como salienta Francisco Bosco, possibilita ao leitor o autêntico enfrentamento da via árdua de seu processo negativo que o condenava a uma existência passiva. A potência de agir consistentemente edificada não costuma se dá pelo consolo fácil do pensamento positivo: “a autoajuda em nada ajuda nas situações que talvez sejam as mais críticas e decisivas da vida do sujeito. Nessas, só o que pode ajudar é a via angustiosa de um pensamento negativo”, adverte Bosco, em Alta ajuda (2012).
Quem lê Moby Dick (1851), escrito por Herman Melville, pela ótica da autoajuda, só o percebe como um livro de aventuras com a história do capitão Ahab, a bordo do Pequod, tentando caçar o imenso e temido cachalote branco. O livro é mais do que isso. Experimente lê-lo pelo viés da “alta ajuda”. Quando estava selecionando a tripulação, o capitão Ahab disse: “não quero em meu barco ninguém que não tenha medo de baleia”. É que uma pessoa sem medo pode ser imprudente. O medo nos protege. Mas, fica a pergunta: não é preciso ser corajoso para sair para o mar caçando baleias? Acontece que o capitão queria pessoas com medo, mas dispostas a enfrentá-lo. É a isso que se chama coragem. Os covardes são os que se deixam vencer pelo medo. Os corajosos avançam apesar dele.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

QUEM VAI FICAR NO GOL?

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

De quantos discorreram sobre o Brasil e sua trajetória, desde o “Descobrimento” até os dias de hoje, foi em Sérgio Buarque de Holanda que encontrei a melhor ‘‘explicação’’ para as coisas que acontecem ao nosso redor. Aprendi, com o autor de Raízes do Brasil (1936), que nas expressões de vida coletiva convivem dois tipos – o “aventureiro” (caçador) e o “trabalhador” (lavrador) – que se combatem e regulam contraditoriamente as humanas atividades e o próprio jeito de ser do homem. Para o trabalhador, interessa o ‘‘como’’, o ‘‘porque’’, a ‘‘hora’’ para chegar ao ponto desejado. No segundo caso – o “aventureiro” – seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore. Nunca vi melhor expressão para designar os homens de nosso tempo. Melhor: para retratar os políticos que, chega eleição, passa eleição, não mudam de comportamento. São assim, nasceram assim, vão continuar assim. Não é verdade que cada povo tem o governo que merece.
Há diferenças notáveis entre o ‘‘aventureiro’’ e o ‘‘trabalhador’’. O “trabalhador” é o que vê primeiro a dificuldade a vencer, mas não se atropela para alcançar o prêmio que lhe cabe. O “aventureiro” não tem limites, está a serviço do poder, mascara a realidade, joga sujo para ganhar. De qualquer jeito. Há, portanto, uma ética do “trabalhador” e uma ética do “aventureiro”. O primeiro caminha lentamente e seu campo de visão abrange além do olhar. Porque sabe que há tempo para tudo. O segundo vai na base do vale-tudo. Daí Sérgio Buarque de Holanda sustenta que, na obra de ‘‘conquista’’ e ‘‘civilização’’ dos novos mundos, o ‘‘trabalhador’’ foi presença diminuta. Era um tempo de gente “valente”, os homens de “grande ação”, fossem bandidos oficiais ou não, homens das armas, aventureiros de todo naipe, principalmente degredados, como ferozes cães treinados para vigiar e matar, se preciso. Afinal, o que faziam os capitães do mato? Só gente desse jaez poderia atender aos ditames da ordem colonial. E os há, ainda hoje.
O fato de o Brasil ficar entre um extremo e outro – mas sempre preferindo a conciliação – tem uma explicação. A lei, por aqui, não tem muito valor, a não ser para determinados bacharéis em seus conflitos forenses. No cume do Estado – no Império como na República – há pessoas que gostam de governar sem questionamento. Mesmo com o Parlamento aberto, a chamada Justiça soberana, com ditadura ou regimes com mandatos temporários. Sérgio Buarque de Holanda diz sem meias palavras que as nossas Constituições são feitas para não serem cumpridas, as leis e ordenações existem para serem violadas, tudo, naturalmente, em favor dos poderosos. É que, dada a nossa formação, subjugada ao mando de El Rei, os políticos jamais se interessaram pelos princípios, salvo as clássicas e honrosas exceções. Preferem tratar com as gentes como simples vassalos. Princípios e programas? Daí a famosa frase atribuída a Holanda Cavalcanti: ‘‘Nada há mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”. Falava ele da semelhança entre os dois grandes partidos no tempo da Monarquia.
Entre o ‘‘trabalhador’’ e o ‘‘aventureiro’’, este sempre prevalece. Cinco séculos depois do “Descobrimento”, eis-nos às voltas com as tentativas de eleger governos democráticos, mas dominam os “coronéis”, ‘‘sabidos’’, os ‘‘astutos’’, os ‘‘aventureiros’’ que se misturam nas legendas patrimonialistas das elites. E mantém a hegemonia. O dinheiro torna árido o coração, fecha-o no egoísmo, impede que ele se abra na direção da solidariedade e da fraternidade. Todo o mal-estar que reina no mundo pela má distribuição das riquezas vem daí. Os donos de riquezas querem ficar cada vez mais ricos. E acabam oprimindo os pobres, fazendo-os ficar cada vez mais desamparados.
É o que sempre me vem à mente, quando leio esta passagem do Evangelho. Alguém perguntou a Jesus o que devia fazer para ter como herança a vida eterna. ‘‘Cumprir os mandamentos’’ foi a resposta de Jesus, que até enumerou pacientemente esses mandamentos: ‘‘Não matar, não cometer adultério, não furtar, não levantar falso testemunho, não prejudicar a ninguém, honrar pai e mãe’’ (Mc 10,19). O jovem respondeu que tudo isso ela já praticava desde seus verdes anos. Jesus não pôde deixar de envolvê-lo num olhar de infinita simpatia; e acrescentou: ‘‘Só te falta uma coisa: vai, vende tudo o que tens e distribui aos pobres, e terás um tesouro no céu. Então, vem e segue-me’’ (Mc 10,21). Mas aí aconteceu a decepção. O jovem era muito rico. Não teve coragem de renunciar à sua riqueza. Ele afastou-se cabisbaixo, entregue à pobreza de sua riqueza. Foi quando Jesus fez a grave admoestação: ‘‘Como é difícil os que têm riquezas entrarem no Reino de Deus!’’ (v. 23). E diante do espanto dos discípulos, completou ainda com mais veemência: ‘‘É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus!’’ (v. 25).
Se o homem adotasse esse conselho do sábio bíblico, seria capaz de construir um mundo mais feliz. E descobriria no fim o que o sábio descobriu a respeito da posse da sabedoria: ‘‘Todos os bens me vieram com ela, e havia em suas mãos riqueza incalculável’’ (Sb 7,11). Que não se perca nunca a esperança de um dia se fazer deste País um lugar de justiça, liberdade e dignidade. Mesmo sabendo que ainda teremos muitas eleições com as marcas dos “luzias” travestidos de “saquaremas”, quando chegam ao poder. Enquanto a ética do “aventureiro” prevalecer sobre a ética do “trabalhador”, conforme adverte o músico Erasmo Carlos, em Quem vai ficar no gol? (2001), gestão política, nestes termos, significará: "Quando o salário aumenta, a voz do povo quer festejar/É mais uma graninha no fim do mês pra poder gastar/Só que pra ter o aumento o dinheiro sai de algum lugar/E seja de onde for, é o próprio povo quem vai pagar/Me avisa quem vai ficar no gol?/Quem vai ficar no gol?/Quem vai ficar no gol?".

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

TIM MAIA E A AMBIGUIDADE BRASILEIRA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Existe uma abordagem crítica que considera o Brasil como o somatório de vários Brasis: o Brasil pobre e o Brasil rico, autoritário e tolerante, moderno e atrasado, o Brasil do Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Ao compor e cantar a música Vixe (1997), Tim Maia entra no time daqueles que consideram essa visão maniqueísta demais. De maneira propositiva, o Síndico da MPB procurou trabalhar a ambiguidade como uma categoria sociológica fundamental para compreender a formação cultural do Brasil e, consequentemente, a forma de ser brasileiro.
Tim Maia apresenta, primeiramente, os obstáculos que dificultam o desenvolvimento do país: “Vixe tanta gente/Tanta perda, tanta guerra/Tanta perdição/Vixe tanta coisa/Tanto lixo, tanta luta/Tanta rejeição/Vixe pouca água/Pouca sorte, pouca roupa/Pouca atenção/Vixe muita fome/Muita morte, muita sede/Muita solidão”. Sem perder de vista o encanto pelas virtudes brasileiras, o cantor não supervaloriza os problemas nacionais, preferindo ampliar o foco no poder de resolução presente no reconhecimento dos valores positivos da nação e na aplicação destes em iniciativas proveitosas para o bem-estar coletivo: “Vixe o desperdício/De uma terra fértil e forte/Pro poder plantar/De tantas riquezas/Água pura,/Rios, matas, fartos minerais/Que bobagem é essa/Vamos povo, vamos gente/Vamos chegar lá/O país é forte, é bacana/É bonito/Vamos acordar”. Era como se o Síndico da MPB misturasse o ufanismo romântico de País tropical (1969), de Jorge Ben Jor, e o realismo cético de Que país é este (1978), de Renato Russo (Legião Urbana), para poder demonstrar que o Brasil é, ao mesmo tempo, o país da “problemática” e da “solucionática”.
Esta canção de Tim Maia faz parte de um pensamento social brasileiro que considera a ambiguidade como uma categoria importante na explicação e compreensão de nossa identidade. Lembra o princípio antropológico adotado por Roberto DaMatta que, em suas obras, comprova como o nosso cotidiano, as nossas cerimônias e os nossos rituais estão eivados de ambiguidade. Em Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro (1979), o antropólogo analisa, entre outros, dois rituais nacionais: o dia da pátria e o carnaval, que se configuram como rituais simétricos e inversos no quadro da vida social brasileira. “O povo que faz o carnaval é precisamente o povo do Sete de Setembro; o chefe ‘boa-praça’ é o homem do ‘você sabe com quem está falando?’; o homem cordial é capaz de violência; e o malandro e o caxias são igualmente admirados”, constata DaMatta.
Vixe, de Tim Maia, recupera as origens históricas da ambiguidade brasileira. Desde o século IV, começou a se formar na Europa um mito que versava sobre a existência de um Paraíso Terrestre. Miragem projetada numa localidade geográfica real, recôndita no mundo ainda desconhecido. A exuberância de nossas florestas, o ouro encontrado, as delícias das frutas tropicais, a beleza das índias nuas, entre outros fatores, levaram os europeus “descobridores” a projetarem sua “visão do paraíso” para as terras brasileiras. Ao mesmo tempo, deu-se início ao processo de exploração do Brasil Colônia. A escravidão passou a ser a relação de trabalho predominante – uma relação tão desumana que se poderia projetar, também, nessa mesma terra, a ideia de inferno. Assim, a nossa ambiguidade começou a aparecer desde o nosso mito de origem: entre o paraíso e o inferno.
Reconhecido mundialmente como potência ambiental, o Brasil, porém, ainda carrega o estigma subalterno submetido a ele desde os tempos de colônia de exploração. Enquanto a mercadoria cana-de-açúcar, por exemplo, se transformava no principal protagonista de nossa história, passando a ter um status de sujeito, os negros escravizados eram comercializados como meros objetos. O próprio nome dado ao país reforça esta ambiguidade. Conforme Otávio Souza, em Fantasias do Brasil (1994), “Brasil, o nome do pau, primeiro produto de nossa terra esgotada pela fúria colonialista... nome do produto explorado; brasileiro, nome do explorador: é essa dupla referência que nosso passado colonial parece ter reservado”. Portanto, de terra de Santa Cruz a Brasil, experimentou-se o convívio do ideário cristão de igualdade, do catolicismo ibérico, com 400 anos de escravidão. A ambiguidade desenvolvida entre sujeito e objeto, corpo e alma, vai ser fundamental para o entendimento do dilema brasileiro. Aceitava-se a escravização do negro, a partir de uma retórica dualista, pregada pelas políticas do Reino e da Igreja, em que só o corpo se sujeitava às penas do “cativeiro temporal”, cabendo às almas “a liberdade, ou alforria eterna”. Sobre esta ambiguidade, Alfredo Bosi, em Dialética da colonização (1992), alerta: “Estranha religião meio barroca meio mercantil! Religião que acusa os vencedores, depois entrega os vencidos à própria sorte. Religião que abandona o verbo divino, frágil, indefeso, às manhas dos poderosos que dele saqueiam o que lhes apraz”.
Ciente do poder corrosivo do vil metal, Tim Maia, de maneira astuta, mostra que a ambiguidade brasileira deve ser lida como uma de nossas vantagens relativas. Relativas, por quê? Pois além de ter composto sabidamente uma espécie de mix de Canção do exílio (1847), de Gonçalves Dias, e O navio negreiro (1869), de Castro Alves, para compreender o Brasil ambíguo, na canção Vixe, Tim Maia também foi magistral, ao criticar a força dos nossos vícios patrimonialistas, em Não quero dinheiro (1971): “Quando a gente ama/Não pensa em dinheiro/Só se quer amar/De jeito maneira/Não quero dinheiro/Quero amor sincero/Isto é que eu espero/Grito ao mundo inteiro/Não quero dinheiro/Eu só quero amar”. Este, sim, o verdadeiro grito de independência do Brasil!


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

"O PRIMEIRO AMOR É UM ETERNO TROPEÇÃO"

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Arrisco-me, com gosto, a fazer uma generalização: se fosse possível congelar nossas vidas e reuni-las em um único momento, como numa fotografia daquilo que fomos, e se, além disso, nos fosse possível escolher qual seria este momento, é certo que escolheríamos um momento de afeto. E se nos perguntassem qual a coisa mais importante de nossas vidas, escolheríamos aquela em que o amor é a maior presença. 

Em Mirna (2002), Nelson Rodrigues proferiu apimentada sentença: “não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo”. Realmente, a alegria amorosa é propriamente “trágica”, pois traz à cena a experiência de magnitude, despistando o fim certo de tudo para o bem do instante-chama. O trágico aqui vem ao sabor de Nietzsche que, no livro O crepúsculo dos ídolos (1889), ressaltou com esperança ímpar: “dizer sim à vida mesmo nos seus problemas mais estranhos e árduos”. O amor constitui o espanto de ser no fascínio da relação. Em nós, vive algo que supera todas as aflições: a alegria. Só é alegre quem acredita em um regime sensível formado por uma intuição imediata do mundo. Viver no presente implica aceitar o primado da ação (o ato) sobre a esperança, o que equivale a trocar a passividade do estado de espera pela manifestação ativa da vontade de fazer. 

A citação declaração de Nelson Rodrigues critica a vinculação do amor com a inspiração suprema e o fim perfeito. Ilusoriamente, a felicidade expressa a pura esperança de um estado no qual não exista o sofrimento. A alegria, por sua vez, é o encantamento que pode ser experimentado, porque não se inscreve na ordem do absoluto nem das grandes expectativas, e sim na relatividade dos sentimentos que sobrevêm em meio ao desprazer ou ao sofrimento. A alegria de viver vem da coragem humana de instituir um estilo de vida para, nele, construir intimidades sem intimidações. A boca que diz “eu te amo” também diz “adeus”. Entre encontros e despedidas, amar suporta o meio dizer. Para tanto, faz-se necessário um adentrar-se na falta do outro. 

A psicanalista Inez Lemos, em Pedagogia do consumo: família, mídia e educação (2007), apresenta a mesma pujança de Nelson Rodrigues, ao salientar que: “amar requer longa viagem pelo caminho da desilusão”. Assim como tudo o que é vivo e humano, o amor se define como um princípio de degradação e desintegração. Contudo, os seres vivos vivem de sua própria desintegração, combatendo-a pela regeneração. Heráclito dizia: “Morrer de vida, viver de morte”. Nossas moléculas se degradam e morrem, sendo substituídas por outras. Vivemos utilizando o processo de nossa decomposição para nos rejuvenescer, até o momento em que isso não é mais possível.  Acontece o mesmo com o amor, que só vive renascendo incessantemente. 

Em Amor, poesia, sabedoria (1997), o sociólogo Edgar Morin conceitua o amor como “o ápice da união entre loucura e sabedoria”. O mundo nos muda a cada segundo. Células morrem, outras nascem: fluxo em maturação constante. Mutatis mutandis: ninguém pode saber quem sou de verdade. Nem mesmo eu sou capaz de me conhecer plenamente. Por isso, ninguém pode amar-me pelo que realmente sou. Seres regidos por um inconsciente, somos atemporais, alógicos. Como achar, então, sentido em uma pessoa? Delírio. Ainda assim, a alegria acontece quando o inconsciente sopra esperança. Esperança no amor, mesmo diante do "trágico" script: felizes e infelizes para sempre.

Escrevo estas reflexões, saboreando o sublime livro Veracidade (2015), composto por Isabella de Andrade. Brasiliense, a escritora e jornalista nos envolve com sua prosa poética. A rosa dos ventos não se vai com a cinza das horas. Não há lições definitivas na travessia da alteridade sentimental. Nem acerto, nem erro, amar não é uma questão de desempenho. A perfeição tem um grave defeito: não inclui o ser humano. Assim, compreendemos melhor o dizer irreverente do modernista Oswald de Andrade: “a alegria é a prova dos nove”. Dez seria a perfeição; nove, por sua vez, o imperfeito, o inacabado. Porém, lacunas não são falhas, mas espaços para a evolução. Com Isabella de Andrade, fui educado sentimentalmente a reconhecer, com mais leveza e menos pesar, que a união e a separação constituem o amor por excelência. Trata-se da mais louvável tentativa em busca do sutil-visceral afeto que tempera nossa essência subjetiva. 

Estamos em construção e desconstrução permanentes. A vida existe, assim, para a morte, o que dá margem à renovação contínua – a vida é um festival do novo. Essa renovação é a fonte de toda beleza, mas também de toda alegria. E este sentimento, como já assinalamos, convive com a ausência de certezas. Enquanto o apego representa amar de mãos fechadas, o afeto significa amar de mãos abertas. Fiquemos com um belo exemplo pinçado da narrativa construída por Isabella de Andrade. Texto marcado por uma inesquecível batida liricamente cordial. “As noites são mais bonitas quando te lembro, Clarissa. É como se o vento quente e abafado lá de fora refrescasse meus cabelos com a mesma intensidade da brisa do mar. Dia desses eu achei um bilhete seu. Dizia: aproveita meu bem, o primeiro amor é um tropeção. Ainda tropeço pelas noites, Clarissa. É como se a vontade transformasse em instante toda a verdade de quando fecho os olhos. Acrescentei uma palavra em caneta colorida. O primeiro amor é um eterno tropeção”. 

* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

MORTE E VIDA, TRAVESSIA...

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Místico, filósofo e alquimista chinês, Lao-Tsé (571 a.C-531 a.C), refere-se assim à questão da morte: “Quando nasce, o homem é fraco e flexível./Quando morre, é forte e rígido./Isto acontece com tudo./As árvores, as plantas são macias e tenras quando novas./Secas e duras quando morrem./A firmeza e resistência são sinais da morte./A fraqueza e flexibilidade, manifestações da vida”. Os antigos diziam que a sabedoria, aquilo que se adquire no curso da vida, não é possível no início, mas somente no fim de nosso caminhar – tortuosas, e quiçá gloriosas, veredas. Um único dia, do amanhã, poderá ressignificar todos os milhares de dias do ontem. Assim, dizer que vivemos dias a mais ou dias a menos é algo extremamente complicado nesta matemática que se estabelece entre morte e vida. Em relação a que dizemos que estamos mais vivos ou mais mortos?

Existir é insistir na vida, é suportar o mundo e prosseguir vivendo. Existir é difícil, e a tristeza, implacável. “Eu prefiro a morte sorrindo do que ter a vida chorando”, canta o roqueiro psicodélico, Serguei, em Eu não volto mais (1966). Trata-se de uma reflexão instigante em defesa da vida em plenitude, pois o tédio se faz mortífero ao prejudicar nossa potência de prazerosa alegria enquanto existimos. E a motivação de prosseguir vivendo deve ser uma esperança simples: a de vencer as agressões do cotidiano. Sem a sensação de perigo que o medo nos traz, lançaríamos a nós mesmos numa correnteza sem fim e enfrentaríamos o perigo impossível: a fera enorme ou as profundezas do abismo. O medo é a nossa segurança. É, portanto, nosso aliado na luta pela vida. 

O medo também é resultado da dúvida: produto de nosso desconhecimento sobre todas as coisas que nos cercam; sumo de um desconhecimento que é mais profundo ainda: o desconhecimento que é mais profundo ainda: o desconhecimento sobre nós mesmos. Temos medo porque não sabemos o futuro: “e o futuro é uma astronave/que tentamos pilotar/não tem tempo, nem piedade/nem tem hora de chegar/sem pedir licença/muda a nossa vida/e depois convida/a rir ou chorar” – como bem canta Toquinho, em Aquarela (1983). Esperança é viver do avesso. É considerar que há uma vida apesar da morte. E é pensar que há uma mesma coisa. A condição da esperança é ser um mistério: “nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá/O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar/Vamos todos numa linda passarela/De uma aquarela que um dia enfim/Descolorirá” – prossegue, com maestria, o músico. Descolorir, na imagem proposta na citada canção, significa compreender que vida e tempo se entrelaçam, porque viver não é encontrar-se com o infinito. Considerando que a vida – este espetáculo com começo, meio e fim – deve ser aproveitada, tendo em vista um determinado tempo.

A morte é paladina da humildade. Ao anunciar o fim do existir e ao comunicar o término da experiência, a morte nos iguala a todas as formas da vida. Porta-voz da igualdade, a morte nos nivela a tudo que há no mundo. Por maiores que sejam nossa fama, nossa riqueza e nosso poder, perecemos igualmente. A respeito, canta Gilberto Gil, em Roda (1975): “Se morre o rico e o pobre/Enterre o rico e eu/Quero ver quem que separa/O pó do rico do meu/Se lá embaixo há igualdade/Aqui em cima há de haver/Quem quer ser mais do que é/Um dia há de sofrer”. 

Não se julga a vida por aquilo que se herda: se muito ou pouco, não importa. A questão que se deve considerar é quão hábil fomos, e que conquistas obtivemos, através daquilo que nos foi dado. Enterrar moedas de ouro, na tentativa de guardá-las, não demonstra meus talentos. Para viver em sintonia com a ética da vida em abundância é preciso multiplicar o ouro. Usar os poucos recursos que temos para operar milagres. Ser é ser em entrega. Estamos inseridos num conjunto. Portanto, a ética deve levar em conta não apenas minha individualidade, mas também a coletividade da qual faço parte. Uma conduta ética pressupõe alteridade, pressupõe a presença do outro. E pressupõe, também, a responsabilidade que tenho sobre este outro e o impacto que minhas ações acarretarão sobre ele. E como pensar este outro senão como todo o conjunto de seres vivos? Porque o conceito ideal de vida precisa conter todos os seres em sua multiplicidade e diversidade.

No inferno, Dante e o poeta Virgílio leem a advertência: “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais!”. O primeiro castigo pelos pecados seria renunciar as expectativas de que algo bom aconteceria depois da morte. André Comte-Sponville sugeriu uma releitura da clássica Divina Comédia (1555), pondo uma sádica advertência na entrada do Inferno: “Enchei-vos de Esperança, ó vós que entrais!”. Gerar expectativas de um futuro melhor é uma forma de tortura mental muito eficaz, pois gera ansiedade em demasia e, assim, decepção na certa. Sábia é a doutrina de Buda, para quem o estado ausente de sofrimentos depois da morte, o Nirvana, é um reconfortante lugar onde desaparecem desejo e esperança. Pela lógica, o Paraíso de Dante deveria ser um convite para a paz da salvação sem possibilidade de entristecimento com expectativas.

A tomada de consciência de que temos os dias contados, imprime na vida do homem o sentido de missão e de destino, a urgência de nada adiar, mas antes de avançar na construção do seu projeto de vida, coerente e unitário. A tomada de consciência da morte como intrínseca e constitutiva da existência descobre ao homem novos valores, tais como os da humildade, do perdão, da coragem e da esperança. Reporta-nos a uma outra dimensão do existir, em que se diluem as diferenças e se instaura uma verdadeira comunhão entre os homens fundada no seu destino comum. A incidência da ética no morrer visa os seguintes valores: o respeito ético pela vida humana e a exigência ética de uma morte digna.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

REMINISCÊNCIAS...

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Importante personagem do livro A república dos sonhos (1984), escrito por Nélida Piñon, Madruga, cheio de vitalidade, faz alusão à zona erótica do corpo para defender a tese de que é preciso profundidade para contemplar o passado e suas reminiscências: “– A ida ao passado nos revigora. Se for preciso, Bento, vá aos celtas, de quem descendemos. E se não for capaz de viajar, estará dando prova de que não tem imaginação, Madruga o espicaçou. Diante do silêncio de Bento, ele prosseguiu. – Todo país é um sexo por onde se enfia sem medir a profundidade do prazer. Tudo que se quer é ir fundo, o maior número de vezes possível. E o Brasil não foge desta regra”.

Reminiscência, do latim reminiscentĭa, é um conceito que se pode associar a evocações, memórias ou recordações. Uma reminiscência é a representação mental de uma situação, um feito ou outra coisa que teve lugar no passado. Em geral, entende-se a reminiscência como uma imagem pouco precisa ou uma recordação que a pessoa não atesoura com clareza. Uma reminiscência é quase um rastro ou uma pegada de algo que aconteceu anteriormente. A respeito, esclarece o filósofo Walter Benjamin (1892-1940), no ensaio Sobre o conceito de história (1940): “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.

Em pesquisa intitulada “Duas histórias especulativas contemporâneas: baseadas em fatos reais!” (2014), cuja apresentação se deu no IV Congresso Internacional de História, realizado na cidade goiana de Jataí, as historiadoras Michele dos Santos e Isabella Ferreira Viana Ribeiro defenderam uma relação humana mais lúdica e inventiva com os traçados da memória: “Se explorarmos o passado como a um brinquedo nos depararemos com uma série de possibilidades que foram esquecidas, mas não nulificadas, podendo ser, então, ‘salvas’. E, é com essa emancipação/libertação que nos deparamos ao divagarmos pelos mundos das histórias alternativas, pois elas pretendem ‘recuperar’ no passado o que foi perdido. Narrativas como O homem do castelo alto e Amphitryon são um elogio não só àquilo que o passado poderia ter sido, mas, antes de tudo, representam àquilo que a história não disse sobre ele”.

O que está fora da “ordem do discurso”, conforme destaca o filósofo Michel Foucault (1926-1984), dá mostras de que a explanação histórica se faz retórica e poeticamente ao mesmo tempo. Nessa perspectiva, há a desconfiança sobre a história existir enquanto campo de uma organização factual, de totalidade empírica, na qual se localizaria a verdade tal qual se acreditou existir, una e reconhecível, apesar de suas encenações várias. A respeito, Hayden White, em Meta-história (1973), destaca o importante papel dos “passos imaginativos” na composição da historicidade, em termos narrativos. Surge, assim, a figura do “historiador poético” que rasura a cômoda distinção apelada no par objetivo/subjetivo para operar um recorte interpretativo capaz de se afastar do quadro clássico de estruturar o saber: na classificação, no fato e na ordem. Desse modo, um todo orgânico linguístico se realiza entre a ficção e a realidade.

É impressionante como os aspectos factuais e fantasiosos se interpenetram na viagem que fazemos ao passado. Pelos caminhos primorosos da linguagem, Nélida Piñon, em A república dos sonhos, por meio da narradora Breta, destaca que, durante a peregrinação ao Cebreiro, Xan, o avô de Madruga, conta ao neto o quanto “um país se empobrece depressa quando lhe roubam suas histórias. Ou quando seus filhos se descuidam de descrever ou inventar outras em seu lugar”. Conhecer as raízes do Brasil profundo, recomenda a escritora carioca, significa vivenciar conscientemente a realidade. É o propósito, por exemplo, do personagem Tobias, filho de Madruga, que apresenta uma visão crítica do país, na contramão da memória hegemônica, responsável direta pela promoção de esquecimentos oportunistas:

“– As nossas franquias institucionais sempre representaram uma farsa, padrinho. Começando pelo aparato jurídico que é capenga, amolece diante dos regimes fortes. Por isso nos tornamos todos tiranos. Da estirpe de Getúlio, Médici e outros mais. Oferecemos café às visitas, que mal nos chegam na soleira da porta, com a chibata na mão. Não temos feito outra coisa que dilapidar um patrimônio que uns chamam de nação, outros de país, ou de pátria. O Brasil vem mentindo para si mesmo a cada hora. E não existe pior elite que a nossa. Ela condena os fracos e os miseráveis ao extermínio ou ao exílio. O exílio do silêncio e da não participação social. Da privação dos direitos humanos, disse a Venâncio, seu ouvinte diário”.

Interessa, portanto, muito mais relacionar o passado diretamente com o presente e reanimá-lo a cada investidura no ato de narrar. É simplório conservar o passado num esforço museal de memória. Não é a simples evocação do passado que deve servir para explicar o presente, mas é o sujeito que, estando numa posição dialética com o passado, se dispõe a referendar as reminiscências dignas de ressurgirem no presente, mostrando, assim, que não existe um passado em si, mas um passado visto com os olhos do presente.

Quem aprecia história se interessa pelo real. Mas também pelo real mais que real, conforme destaca o avô de Madruga: “Xan entrelaçava os fatos e as lendas com linguagem colorida e vivaz. E sempre que precisava enxertar novos elementos ao relato, abria parênteses, sem perder por isso o fio da meada. Diante, porém, da ansiedade alheia pelo desfecho, jamais acelerou o relato. Condenava a quem o forçasse a abreviar a história: – Se uma história exige um ano até ser contada, seria um crime amputar-lhe a beleza e a imaginação. Quem não sabe ouvir, vá bater em outra freguesia. Ou passe a viver sem elas”.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

AS TRÊS PORTAS

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A história nos ensina quais são os caminhos que estão fechados e que devemos manter fechados, porque vimos que esses caminhos não são bons. Há caminhos que se abriram para nós e nós percebemos que eles são bonitos. Queremos manter a porta aberta. E há caminhos que ainda não conhecemos e que temos que criar. Há porta que se fecha, há porta que se abre e há porta que tem que ser criada.

Sobre a porta que se fecha: que coisas queremos deixar fechadas para sempre, para que nunca mais se abram? Sem dúvida, a porta mais terrível que nós aprendemos da história: que nada de bom se constrói com a violência. Nós aprendemos isso. Porque construímos tanta coisa com violência e tudo desabou, causou mal. A violência das guerras, a violência das imposições religiosas, a violência dos conflitos raciais, a violência dos conquistadores, a violência dos poderes totalitários. Nada disso valeu a pena. 

Qual a porta mais bonita que nós precisamos abrir? É a porta da paz. Nós não construiremos paz sem profundidade existencial. Não construiremos paz sem atitude contemplativa. Não construiremos paz sem um pouco mais de simplicidade e de silêncio. A nossa sociedade precisa de um pouco mais de silêncio, menos barulho para deixar que a paz penetre em nossos corações. Precisamos também viabilizar uma cultura de paz com empenho político dedicado ao tratamento radical da violência que nos afeta. Como canta o grupo O Rappa: “Paz sem voz não é paz, é medo!”.

Outra porta importante para nós é a porta da solidariedade, da fraternidade. Se aspiramos a viver melhor, escolhamos o lugar de servir na causa do bem de todos. Por isso, fraternidade, em termos políticos, significa consciência cidadã, significa construir uma sociedade de igualdade, de melhor distribuição de renda, de emprego, de justiça, de honestidade. É isso que nós temos que construir. E que porta criar? É difícil dizer, porque se não criamos ainda, é o nada que está aí. Há um pensador, Jacques Delors – que fez um trabalho muito importante para a ONU – que disse que nós teremos que aprender quatro coisas: aprender a ser, aprender a conviver, aprender a fazer, aprender a aprender.

Nós somos seres aprendizes até o último minuto de nossa vida. Como é importante que a gente entre mesmo na dinâmica, no processo educativo, para que saibamos captar as realidades mais profundas, que nos vão educando ao longo de nossa vida. Aprender a conviver é o maior dos desafios e o mais virtuoso. ‘Viver com’. Viver nós vivemos, desde que temos vida. Mas conviver significa encontrar o outro. Como diz Leonardo Boff: “ser uma rede, um nó de relações”. Nós seremos tanto mais gente, tanto mais humanos, quanto mais ampla for a nossa rede de relações.

Nós precisamos transformar este mundo. Ele não pode continuar assim. Nós temos que olhar quais os caminhos novos a construir, que perspectivas novas temos que abrir. Não só perpetuar o já existente, não só manter as portas abertas daquilo que conhecemos ou fechar aquelas que devemos fechar, mas criar novas portas, novas iniciativas. Para tanto, aprender a ser é fundamental. Nós, infelizmente, estamos mergulhados no mundo do ter e esquecemos o mundo do ser. Em “Oração do Milho” (1965), a poeta Cora Coralina (1889-1985) chama nossa atenção para a dinâmica da humildade como experiência ética e desapegada do instinto materialista: 

“Senhor, nada valho./Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres./[...]/Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo/e de mim não se faz o pão alvo universal./O Justo não me consagrou Pão de vida, nem/lugar me foi dado nos altares./Sou apenas o alimento forte e substancial dos que/trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre./Sou de origem obscura e de ascendência pobre,/alimento de rústicos e animais do jugo./[...]/ Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão/do eito./Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante./Sou a farinha econômica do proletário./Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam/a vida em terra estranha./Alimento de porcos e do triste mu de carga./O que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro./Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos/paióis./Sou o cocho abastecido donde rumina o gado./Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que/amanhece./Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos./Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,/que me fizestes necessário e humilde./Sou o milho”.

Os versos de Cora Coralina podem ser identificados como uma alegoria a favor da humildade. Humildade representa as coisas mais simples e ingênuas, mas também as maiores complexidades. Para alguns é sinal das fraquezas humanas, para outros, a mais sublime das virtudes. Etimologicamente, humildade vem do latim humus, de onde também deriva Homem e Humanidade. O fato dessas palavras estarem vinculadas à húmus, é certamente uma sábia exortação de que mantemos com a terra um vínculo eterno e embrionário. Reconhecer e aceitar essa verdade é não somente um princípio elementar de ecologia profunda, mas uma apologia ao valor e à lição da humildade. 

Se a humildade está relacionada com solo fértil e produtivo, talvez a ostentação, a luxúria e o esnobismo representem o oposto disso e, portanto, não passem de terra desgastada e empobrecida, talvez simples cascalho. Devo fazer uma última observação sobre a etimologia de humildade: além de húmus, como vimos, esta palavra também estar relacionada ao termo grego homo, com o sentido de unidade e integridade. Um homem íntegro prefere o saber relativo ao poder absoluto, opta em colaborar, ao invés de vorazmente competir. Como já dizia o filósofo inglês John Locke (1632-1704): “todo o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente". Quando você adora o poder, quer o mundo inteiro para si, você exclui todos. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

domingo, 6 de setembro de 2015

SORRISO AMARELO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Dados disponibilizadas pelo IBGE e pelo Banco Mundial apontam que o Brasil chegou a ser, por volta de 1990, o país com a pior distribuição de renda de todo o mundo. Isso ocorreu possivelmente como consequência das políticas impostas durante o período ditatorial, combinada com a crise econômica que se iniciou no final da década de 1970 – crise essa também consequência das políticas adotadas durante aquele período. Por volta de 1990, os 10% mais ricos ficavam com mais da metade da renda nacional, enquanto os 10% mais pobres recebiam 0,6% dela. O que um representante médio daqueles mais ricos recebia e gastava em quatro dias era igual ao valor que, em média, um representante dos 10% mais pobres levava todo um ano para ganhar. 

A melhora obtida na distribuição de renda brasileira, em especial neste início de século, nos tirou do último lugar. Entretanto, ainda estamos em uma das piores posições. Atualmente, o que um típico representante dos 10% mais ricos ganha em pouco mais de uma semana equivale àquilo que um dos representantes dos mais pobres leva um ano para ganhar. Ou, em outras palavras, a renda somada de quase meia centena de famílias entre as mais pobres equivale à renda de uma única família do contingente formado pelos 10% mais ricos. 

As estimativas em destaque estampam a inaceitável desigualdade social e deixam sem nenhum crédito o fetiche da igualdade nacional. Extremamente necessário para compreender o descompasso nacional, disfarçado de ordem e progresso, Casa Grande & Senzala (1933), escrito por Gilberto Freyre, e O povo brasileiro: formação e o sentido do Brasil (1995), produzido por Darcy Ribeiro, apresentam linguagem perigosamente adoçada para descrever situações amargadas que até hoje conduzem o modus operandi da sociedade brasileira:  

(I) “A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo; de sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido a religião de família e influenciado pelas crendices da senzala [...] Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social”.

(II) “Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários – tantas vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem-feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho [...] Mas esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica; têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político”.

(III) “A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelo efeito social da miscigenação”. 

(IV) “Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o botão dê comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo”. 

O elogio da miscigenação racial foi o mote utilizado por Gilberto Freyre para abrandar os efeitos nefastos do regime escravista, camuflando, assim, as razões de fundo da desigualdade social em nosso país. Desse modo, estruturou-se a ficção da “morenidade” como virtude brasileira a ser projetada para o mundo como exemplo harmonioso de respeito às diferenças. Nota-se que as concepções freyrianas possuem uma certa similaridade com os argumentos de Darcy Ribeiro sob a especificidade de nossa nacionalidade: “Apesar de tudo, somos uma província da civilização ocidental. Uma nova Roma, uma matriz ativa da civilização neolatina. Melhor que as outras, porque lavada em sangue negro e em sangue índio, cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a viver mais alegre e mais feliz”. O fetiche da igualdade nacional continua se manifestando a todo o vapor, mesmo diante do trágico descompasso social que, desde os tempos coloniais, favorece uma minoria próspera e deixa uma multidão aflita. Como viabilizar o desenvolvimento como expansão das liberdades, se ainda existe a pobreza como privação das capacidades básicas da pessoa humana? A alegria brasileira, no fundo, ainda tem o sorriso amarelo.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.