Marcos
Fabrício Lopes da Silva*
Roland Barthes (1915-1980) justifica assim
a escrita de Fragmentos de um discurso
amoroso (1977): “a necessidade deste livro funda-se na consideração
seguinte: o discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Tal discurso talvez
seja falado por milhares de sujeitos (quem pode saber?), mas não é sustentado
por ninguém; é completamente relegado pelas linguagens existentes, ou ignorado,
ou depreciado ou zombado por elas, cortado não apenas do poder, mas também de
seus mecanismos (ciência, saberes, artes)”. A advertência feita pelo semiólogo
francês apresenta fundamento, considerando o
medo de se apaixonar que se alastra mundo afora, resultado de um pesado
tributo pago ao logocentrismo e ao racionalismo moderno.
Na comparação entre amor e paixão,
reside uma dicotomia perigosa. O amor costuma gozar de certo tratamento apolíneo, enquanto a paixão é lida convencionalmente
como manifestação dionisíaca. O amor
seria, portanto, sóbrio, enquanto a
paixão, ébria. Livia Garcia-Roza, em Faces (2011), apresenta uma série de
aforismos nesse sentido: (a) “Paixão é uma desordem egoísta”; (b) “O amor é
eterno porque está fora do tempo”; (c) “Estar apaixonado é uma doença (a melhor
delas), que o amor às vezes interrompe”; (d) “A paixão é uma bala perdida”; (e)
“A paixão é uma das formas que a loucura adota”.
O amor conta com um apoio bíblico de
peso, ao ser elevado à categoria de expressão humana da afetividade madura: “O amor é paciente, é benigno; o amor não arde
em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente,
não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se
alegra com a injustiça, mas regojiza-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta” (1 Co 13. 4-7). Por sua vez, a paixão costuma ser
assinalada em projeções sombrias: (a) “Não reine, portanto, o pecado em vosso
corpo mortal, de tal maneira que obedeçais às suas paixões” (Rm 6.12); (b)
“Pois nós também, outrora, éramos néscios, desobedientes, desgarrados, escravos
de toda sorte de paixões e prazeres, vivendo em malícia e inveja, odiosos e
odiando-nos uns aos outros” (Tt 3.3); (c) “Amados, exorto-vos, como peregrinos
e forasteiros que sois, a vos absterdes das paixões carnais, que fazem guerra
contra a alma” (1Pe 2.11).
Quem emprestou a sua voz para cantar
a paixão tão menosprezada na escala dos afetos? Quem foi capaz de perceber a
paixão como a fome de amor que sustenta a vida? Quem livrou a paixão do sentido
doentio e a projetou como genuína expressão da energia vital? Como exemplo de
defensor da paixão, é digno destacar o talento poético e musical de Wanderley
Alves dos Reis (1945-2012). Simplesmente, Wando. O cantor romântico se empenhou
ao máximo para estimular paixões e, assim, promover a sensibilização afetiva de
um público movido pela “razão cordial”, pois é no coração que residem os
valores, o mundo das excelências, dos afetos e dos grandes sonhos que orientam
a vida.
Em Fogo e paixão (1988), uma das canções mais famosas de Wando, o
músico revela a perspectiva poética dos apaixonados, que acreditam no amor como
a arte de se entregar, de corpo e alma, ao desejo de admirar o outro: “Você é
luz/É raio, estrela e luar/Manhã de sol/ Meu iaiá, meu ioiô/Você é sim/É nunca
meu não/Quando tão louca/Me beija na boca/Me ama no chão/Me suja de carmim/Me
põe na boca o mel/Louca de amor/Me chama de céu/E quando sai de mim/Leva meu
coração/Você é fogo/Eu sou paixão”. Wando canta a coragem presente na ousadia
apaixonada de quem tece orgulhosamente inúmeras louvações ao amado. Mesmo que a
paixão seja uma ‘alucinação amorosa’, Wando a enalteceu mesmo assim, correndo
todos os riscos, inclusive o de ser tachado de ridículo ou piegas pelos racionalistas
de plantão. Estes adoram acusar os apaixonados de possessivos, ao considerá-los
uma raça de incuráveis que querem que o outro se incorpore a eles convertidos
em sombra viva. Tolinhos! Wando destaca uma espécie refinada de apaixonados: os
generosos, que se dão inteiramente, se jogando de forma intensa nas mãos do
outro. Eles acreditam piamente que o coração é “um órgão erétil”, como diria
Barthes, em Fragmentos de um discurso
amoroso.
No livro citado, o semiólogo chega a
problematizar: “O que o mundo, o que o outro vai fazer de meu desejo? Essa é a
inquietude em que se concentram todos os movimentos do coração”. Ao apaixonado,
cabe à fé de que o amado é capaz de lhe oferecer o melhor dos mundos. Existe a certeza
de que “o outro é paraíso”. Na paixão, a gente quer se fundir com o outro,
desejando transferir a moradia de seu ser para a casa do ser alheio.
Vidas renascem com paixões. Vidas viram cinzas sem elas. Crente no
milagre da multiplicação da paixão, Wando evidencia, em Moça (1988), o que Barthes caprichosamente chama de
“escrutar longamente o corpo amado”: “Moça, me espere amanhã/Levo o meu coração
pronto pra te entregar/Moça, moça, eu te prometo/Eu me viro do avesso/Só pra te
abraçar/(...) Eu quero me enrolar nos teus cabelos/Abraçar teu corpo
inteiro/Morrer de amor, de amor me perder”. Repare como esta bela pretensão
amorosa traz plenitude significativa ao verbo escrutar, destacado por Barthes, como ação de “vasculhar”, isto é, “vasculho o corpo do outro, como se
quisesse ver o que há dentro”. Wando, com a sua poética do pathos, mostra que a existência humana, de fato, se
configura como uma coexistência afetiva. A experiência-base da vida humana é o
sentimento, o afeto e o cuidado. O amor soma desejo e paixão.
* Professor da
Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários
pela Faculdade de Letras da UFMG.
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