terça-feira, 2 de junho de 2015

ENTRE BARTHES E WANDO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*
           
Roland Barthes (1915-1980) justifica assim a escrita de Fragmentos de um discurso amoroso (1977): “a necessidade deste livro funda-se na consideração seguinte: o discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Tal discurso talvez seja falado por milhares de sujeitos (quem pode saber?), mas não é sustentado por ninguém; é completamente relegado pelas linguagens existentes, ou ignorado, ou depreciado ou zombado por elas, cortado não apenas do poder, mas também de seus mecanismos (ciência, saberes, artes)”. A advertência feita pelo semiólogo francês apresenta fundamento, considerando o medo de se apaixonar que se alastra mundo afora, resultado de um pesado tributo pago ao logocentrismo e ao racionalismo moderno. 

            Na comparação entre amor e paixão, reside uma dicotomia perigosa. O amor costuma gozar de certo tratamento apolíneo, enquanto a paixão é lida convencionalmente como manifestação dionisíaca. O amor seria, portanto, sóbrio, enquanto a paixão, ébria. Livia Garcia-Roza, em Faces (2011), apresenta uma série de aforismos nesse sentido: (a) “Paixão é uma desordem egoísta”; (b) “O amor é eterno porque está fora do tempo”; (c) “Estar apaixonado é uma doença (a melhor delas), que o amor às vezes interrompe”; (d) “A paixão é uma bala perdida”; (e) “A paixão é uma das formas que a loucura adota”.

            O amor conta com um apoio bíblico de peso, ao ser elevado à categoria de expressão humana da afetividade madura: “O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regojiza-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1 Co 13. 4-7). Por sua vez, a paixão costuma ser assinalada em projeções sombrias: (a) “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de tal maneira que obedeçais às suas paixões” (Rm 6.12); (b) “Pois nós também, outrora, éramos néscios, desobedientes, desgarrados, escravos de toda sorte de paixões e prazeres, vivendo em malícia e inveja, odiosos e odiando-nos uns aos outros” (Tt 3.3); (c) “Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das paixões carnais, que fazem guerra contra a alma” (1Pe 2.11).

            Quem emprestou a sua voz para cantar a paixão tão menosprezada na escala dos afetos? Quem foi capaz de perceber a paixão como a fome de amor que sustenta a vida? Quem livrou a paixão do sentido doentio e a projetou como genuína expressão da energia vital? Como exemplo de defensor da paixão, é digno destacar o talento poético e musical de Wanderley Alves dos Reis (1945-2012). Simplesmente, Wando. O cantor romântico se empenhou ao máximo para estimular paixões e, assim, promover a sensibilização afetiva de um público movido pela “razão cordial”, pois é no coração que residem os valores, o mundo das excelências, dos afetos e dos grandes sonhos que orientam a vida.

            Em Fogo e paixão (1988), uma das canções mais famosas de Wando, o músico revela a perspectiva poética dos apaixonados, que acreditam no amor como a arte de se entregar, de corpo e alma, ao desejo de admirar o outro: “Você é luz/É raio, estrela e luar/Manhã de sol/ Meu iaiá, meu ioiô/Você é sim/É nunca meu não/Quando tão louca/Me beija na boca/Me ama no chão/Me suja de carmim/Me põe na boca o mel/Louca de amor/Me chama de céu/E quando sai de mim/Leva meu coração/Você é fogo/Eu sou paixão”. Wando canta a coragem presente na ousadia apaixonada de quem tece orgulhosamente inúmeras louvações ao amado. Mesmo que a paixão seja uma ‘alucinação amorosa’, Wando a enalteceu mesmo assim, correndo todos os riscos, inclusive o de ser tachado de ridículo ou piegas pelos racionalistas de plantão. Estes adoram acusar os apaixonados de possessivos, ao considerá-los uma raça de incuráveis que querem que o outro se incorpore a eles convertidos em sombra viva. Tolinhos! Wando destaca uma espécie refinada de apaixonados: os generosos, que se dão inteiramente, se jogando de forma intensa nas mãos do outro. Eles acreditam piamente que o coração é “um órgão erétil”, como diria Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso.

            No livro citado, o semiólogo chega a problematizar: “O que o mundo, o que o outro vai fazer de meu desejo? Essa é a inquietude em que se concentram todos os movimentos do coração”. Ao apaixonado, cabe à fé de que o amado é capaz de lhe oferecer o melhor dos mundos. Existe a certeza de que “o outro é paraíso”. Na paixão, a gente quer se fundir com o outro, desejando transferir a moradia de seu ser para a casa do ser alheio.

Vidas renascem com paixões. Vidas viram cinzas sem elas. Crente no milagre da multiplicação da paixão, Wando evidencia, em Moça (1988), o que Barthes caprichosamente chama de “escrutar longamente o corpo amado”: “Moça, me espere amanhã/Levo o meu coração pronto pra te entregar/Moça, moça, eu te prometo/Eu me viro do avesso/Só pra te abraçar/(...) Eu quero me enrolar nos teus cabelos/Abraçar teu corpo inteiro/Morrer de amor, de amor me perder”. Repare como esta bela pretensão amorosa traz plenitude significativa ao verbo escrutar, destacado por Barthes, como ação de “vasculhar”, isto é, “vasculho o corpo do outro, como se quisesse ver o que há dentro”. Wando, com a sua poética do pathos, mostra que a existência humana, de fato, se configura como uma coexistência afetiva. A experiência-base da vida humana é o sentimento, o afeto e o cuidado. O amor soma desejo e paixão.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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