quarta-feira, 26 de agosto de 2015

PELOS PODERES DO POVO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Na opinião acertada de Severino Francisco, em “Desratização da política” (Correio Braziliense, de 24/08/2015), eis as razões mais fortes da corrupção política no Brasil: “O financiamento de empresas é a matriz da corrupção, da deformação e da desqualificação que transformou a política em um processo de seleção dos piores elementos da sociedade e não dos melhores. É ele que viabiliza a reeleição de bandidos de carteirinha que deveriam estar trancafiados na Papuda, frequentam os gabinetes da República e decidem o nosso destino. Com esse dinheiro sujo, eles compram votos, eleitores, mandatos, projetos de leis e até juízes. Graças a ele, o crime compensa. As manifestações de rua são altamente positivas. Mas, em vez de atirar a esmo em muitas direções, elas deveriam se concentrar nos dois alvos: a reforma política e o fim do financiamento de empresas. A riqueza das campanhas levou ao delírio do roubo e quase quebrou o país”. 

Acrescentaria ao parecer do jornalista a histórica falta de compromisso do poder com a sociabilidade sustentável. O poder de A implica a não-liberdade de B e a liberdade de A implica o não poder de B. Este paradigma encontra-se equivocado. É verdade que o homem, no exercício do poder, encontra-se submetido a duas condições básicas: a liberdade e a sociabilidade. Liberdade porque lhe é conferida a faculdade de optar, escolher, entre diversas alternativas, o curso da sua existência, já que diversamente ao reino animal, o homem se encontra no mundo da cultura e por isso não está submetido apenas a condicionamentos biológicos, fazendo por si próprio o destino e a condução da sua vida. Não obstante, o homem é essencialmente convivência, posto que impossibilitado de conseguir todos os bens que deseja, vê-se obrigado a associar-se aos demais para supri as suas carências e viver em harmonia com o grupo ao qual pertence. Esta condição o leva a sair da esfera privada, relações entre desiguais para a esfera civil, assumindo a condição de cidadão, relacionando-se em igualdade de condições com os demais, participando, assim, dos destinos do grupo.

O fenômeno do poder político está estritamente ligado ao advento da sociedade, quando o homem sai do estado selvagem em que se encontrava para o denominado estado civil, no sentido de civilizado. No Brasil, o poder como dominação (poder de fato) vem prevalecendo sobre o poder como regulação (poder jurídico). Ainda preso à concepção tradicionalista de aparelho que governa a sociedade, o Estado se atropela enquanto sociedade organizada juridicamente. É que para os governantes mal-intencionados, o objetivo é manter os seus privilégios, realizando-se o máximo de injustiça tolerável na perspectiva dos governados. Por outro lado, busca-se o máximo de justiça social possível, com o aumento do espaço político dos grupos sociais e uma maior distribuição dos bens.

A criação do Estado proveio da necessidade do homem de viver em comunidade, já que ele não se bastava para suprir suas carências, precisando da ajuda de outros para ajudá-lo nessa empreitada. Assim, visando ao bem-estar social, criou-se o Estado (a administração), o qual controlaria o comportamento dos membros do grupo mediante a aplicação de normas jurídicas. Segundo Cícero, em Da república (51 a.C.), “o Estado é a coisa do povo; e o povo não é um aglomerado qualquer de seres humanos reunidos de uma forma qualquer, mas a reunião de pessoas associadas por acordo”. Qualquer que fosse a acepção de Estado, este não podia prescindir da justiça – palavra que remete à noção daquilo que é justo. Com a evolução histórica dos grupamentos humanos, o tipo de poder dominante determinava o modo como este se estruturaria; o tempo provou que a melhor organização política era a Democracia – pelo menos a menos problemática. Nesse regime, o povo detinha a autoridade diretamente, ou indiretamente quando elegia representantes para agir em nome dele. 

Uma das explicações para a corrupção política brasileira revela-se na forte influência do poder remunerativo e do poder coercitivo sobre o poder normativo. Gaudêncio Torquato, em Novo manual de marketing político (2014), deposita esperanças no “poder expressivo” da comunicação, quando esta favorece o debate de ideias e ações construídas pelas interações sociais de qualidade coletiva. Nesse sentido democrático, oportuno retornar os estudos da Hannah Arendt, que fundamentou o conceito de poder no consentimento e não na violência. A cientista política em Sobre a violência (1969), trabalhou com a ideia de poder e de lei cuja essência não se assenta na relação de mando-obediência e não identifica o poder como domínio. Aqui, a noção de obediência refere-se ao apoio às leis para as quais os cidadãos haviam dado o seu consentimento. Desse modo, “poder”, em Arendt, refere-se sempre a uma relação de consentimento em que as instituições se sustentam no “apoio do povo”.

Acompanhando a tradição política brasileira, percebemos, infelizmente, que o poder autêntico está noutro lugar. O poder autêntico é o poder econômico, financeiro, esse que não aparece, no qual não se vota, que está num lugar não assinalado, a pressionar, a exigir, a mandar. E pode acontecer que países democráticos, com governos escrupulosamente democráticos, se encontrem na terrível situação de ter de cumprir obrigações que lhes são impostas de cima, e esse “de cima” não é democrático. Isto é, temos um sistema democrático regido por um sistema não democrático. Como superar esse constante clima de “democracia interrompida”? É necessário que se abra o debate para que a sociedade civil encare a contradição e deixe de viver de empréstimo. E reclamar a autonomia, que é sempre dos cidadãos, ainda que deleguem, e exigir transparência aos representantes.  

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

MALUCO BELEZA E MALUCO DUREZA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Está presente no álbum O dia em que a Terra parou (1977) uma das maiores lições de saúde mental já receitadas. Refiro-me à canção Maluco Beleza, de Raul Seixas e Claudio Roberto, na qual os mencionados compositores destacam: “Enquanto você/Se esforça pra ser/Um sujeito normal/E fazer tudo igual/Eu do meu lado/Aprendendo a ser louco/Um maluco total/Na loucura real/Controlando/A minha maluquez/Misturada/Com minha lucidez/Vou ficar/Ficar com certeza/Maluco beleza”. Ou seja, para conseguir a almejada paz, nas diferentes esferas da vida, é preciso passar por alguns momentos de caos. Alcméon, filósofo grego que viveu no século VI antes de Cristo, diria que a saúde é o equilíbrio de forças contraditórias.

Considerando os personagens da canção Maluco Beleza, enquanto “você” traz em si a ilusória sensação doentia de estabilidade e permanência, “eu do meu lado” busca de tirar proveito do equilíbrio dançarino de forças. Costumo dizer que “você” é o maluco dureza da história, pois pensa de forma protocolar, achando que nunca se contradiz, sendo regido apenas pela lógica e se agarrando firmemente em suas verdades imutáveis. O maluco dureza, vestido com essa camisa de força racional, encara os dias em total estado de insegurança, desprotegidos por uma guerra que começa já dentro da própria cabeça. Algemado em suas próprias convicções, tenta, sem sucesso, se equilibrar em um pensamento único, sem se movimentar. Ao contrário, o maluco beleza, o sadio, compreende que a paz procurada não está na previsibilidade e na constância, e sim no reconhecimento de que ambas inexistem: nada é previsível nem constante. Segundo Martha Medeiros, em Feliz por nada (2011), “a pessoa de mente saudável é aquela que, sabedora da sua impotência contra as adversidades, não as camufla, e sim as enfrenta, assume a dor que sente, sofre e se reconstrói, e assim ganha experiência para novos embates, sentindo-se protegida apenas pela consciência que tem de si mesma e do que a cerca – o universo todo, incerto e mágico”.

Caminhar é um exercício sequencial de perdas e recuperações do equilíbrio. Como faz o maluco beleza, bailando sobre as cordas bambas do chão. Também podemos fazer a leitura de quem quer estar permanentemente equilibrado: no caso, o maluco dureza que, seguro, procura não sair do lugar. Acomodação gera estagnação. A vida cobra movimento. Isso faz muito sentido, pois para inovar, ser criativo, abrir novas possibilidades, é necessário fazer diferente, o que equivale a sair da "zona de conforto", uma vez que ela se refere ao ato de acomodar-se e fazer coisas apenas dentro do conjunto de hábitos, o que é muito conservador. O problema do hábito é que ele é inimigo da novidade, e, sem esta, não há avanço, surgindo, assim, ‘o mais do mesmo’. Alcançamos a beleza e deixamos a dureza quando, além de fundamentar hábitos produtivos, abrimos espaço para o diferente, para a ousadia saudável, aquela que surpreende, mesmo se, às vezes, erramos, tropeçamos, caímos. É preciso ter fé no poder de superação. Ousar quantas vezes for preciso.  

No universo, a nítida tendência à desordem pode ser lida como aliada, se compreendemos melhor seu princípio constitutivo chamado entropia. O legal, no entendimento da entropia (em grego, significa transformação), é que, quando deixamos de colocar energia, a tendência é a desordem, o caos. Em outras palavras, não dá para parar de gerar algum movimento. Armado até os dentes contra qualquer instabilidade, quem fica parado assiste à desorganização de seus sistemas. Nasce aí uma proposta equivocada de normalidade que vem imperando sobre o nosso horizonte, provocando adoecimentos mentais que precisam de um outro registro de análise para serem melhor tratados. Por isso, Dalmiro Manuel Bustos, em Novos rumos em psicodrama (1992), chegou em dado momento declarar que:

“Sempre fugi do conceito psiquiátrico clássico de enfermidade mental. Como já me manifestei anteriormente, jamais compreendi uma pessoa através de seu sintoma ou diagnóstico psicopatológico. A loucura só existe no olhar de quem a teme. Se não se teme, não é loucura: é sofrimento, luta, mas não é loucura. Só o medo pode levar-me a afastar alguém rotulando-o”. 

O que disse Bustos ganha exemplo com o depoimento de Maura Lopes Cançado, em Hospício é Deus (1979). Neste diário em que conta o dia-a-dia da sua internação psiquiátrica, a escritora e jornalista descreve seu sofrimento com a frieza da ciência pautada por códigos reducionistas. Revela esse sentimento a partir de uma metáfora instigante – a da mala cheia de etiquetas e rótulos: “Terminarei pela vida como essas malas, cujos viajantes visitam vários países e em cada hotel por onde passam lhes pregam uma etiqueta: Paris, Roma, Berlim, Oklahoma. E eu: PP, Paranóia, Esquizofrenia, Epilepsia, Psicose Maníaco-Depressiva, etc. Minha personalidade mesma será sufocada pelas etiquetas científicas”.

Nessa passagem, Cançado vê sua “personalidade mesma” sufocada pelas “etiquetas científicas”. No entanto, ao conseguir se constituir como observadora distanciada do “rótulo científico”, ela se preserva de um enquadramento por inteiro. Cançado posiciona-se, com esse comentário, na dobra, no interstício, de sua relação com os médicos. Sente o peso da redução de sua singularidade a um sistema teórico, mas consegue o destacamento necessário para submetê-lo à sua reflexão. Este posicionamento se deu graças à postura arrojada, corajosa e inteligente de uma "maluca beleza" que problematizou, em seu livro, os abusos sistemáticos cometidos pelos "malucos durezas" de plantão. 

* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

BOM DE CRER

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Em Tudo que está solto (2010), Éle Semog lança luz interessante para o tratamento da espinhosa relação envolvendo a cultura do narcisismo e a formação continuada da identidade. A respeito, refiro-me especificamente ao poema “Bom de crer”, cujos versos se dispõem desta feita: “O meu Deus é negro,/tem nariz chato/e cabelos carapinhados./E sendo o principal,/o meu Deus/é melhor que os outros/porque é finito,/não impõe castigo/e só guarda segredo/do que eu não digo./O meu Deus é sensato/criou o que quis,/exceto o pecado,/e regula a vida/pelo fim inacabado,/inclusive o começo./O meu Deus só precisa/de mim e dispensa/futuro, passado,/tempo e espaço./O meu Deus só tem/um perigo.../vez por outra Ele pensa/que mora no meu umbigo”.

O escrito de Semog traz à tona um fato importante: sem narcisismo não haveria cultura. Antes de atribuir-lhe qualquer juízo de valor, é necessário considerá-lo no seu caráter primário atribuído por Sigmund Freud, ou seja, “de um complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva”. Os versos de “Bom de crer” dizem respeito ao próprio cerne da cultura que promete ao sujeito (voz poética) um lugar, um estatuto, um “ser alguém”, ser indivíduo. Abordam as coações sejam religiosas, sociais, étnico-raciais, psíquicas que se transformaram em “segunda natureza”, preço que pagamos pelo processo de civilização. E, por último, expõem, visceralmente, a vontade de “ser alguém” expressa pelo eu-poético que busca diferenciar-se, ao reivindicar a autonomia e, ao mesmo tempo, uma sociedade igualitária e justa.

Pressupor uma união feliz entre indivíduo e cultura é também escamotear o sofrimento e a dominação. Freud, em Sobre o narcisismo (1914), pôde denunciar isto, mas não é equivocado dizer que ficou do lado da cultura em detrimento do indivíduo: “É digno de nota que, por pouco que os homens sejam capazes de existir isoladamente, sintam, não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a civilização deles espera, a fim de tornar possível a vida comunitária. A civilização, portanto, tem de ser defendida contra o indivíduo e seus regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a essa tarefa”. Poeticamente, Semog dialoga com o alerta freudiano, munido de uma autocrítica repleta de ironia inteligente: “O meu Deus só tem/um perigo.../vez por outra Ele pensa/que mora no meu umbigo”.

Lendo na íntegra o poema de Semog, fica o gosto de encruzilhada na indagação: Se a civilização tem de ser defendida contra o indivíduo, quem defende o indivíduo da civilização?  O discurso do “ser alguém” pode ser entendido pela necessidade de nos adaptarmos ao processo civilizatório atendendo às suas exigências de controle dos instintos e ao mesmo tempo, não sermos aniquilados por ele. Ou seja, estamos a favor e contra este processo que não é sinônimo de progresso simplesmente. Progresso e regressão caminham juntos. O homem ao dominar a natureza – essência do conceito de cultura – construiu uma segunda natureza: o controle social e psíquico que a humanidade se impôs. Ser indivíduo é diferenciar-se da natureza e ao mesmo tempo resistir a uma segunda natureza também coercitiva e indiferenciadora.

Quando o eu-poético afirma que seu Deus é negro e tece suas inúmeras características virtuosas, Semog se opõe à civilização hegemônica, substrato da natureza não totalmente conformada e da marginalizaçäo daqueles que pouco receberam de benefícios civilizatórios, apresentando, portanto, na resistência à formação cultural dominante o seu momento de triunfo. Semog parece acreditar em uma 'divindade companheira' que incentiva o indivíduo a exercer sua humanidade de maneira autônoma, em sintonia com a emancipação subjetiva e a expressão da alteridade. Semog, “capoeirista da linguagem”, escapa do “individualismo possessivo” que, segundo o professor estadunidense, Thomas S. Popkewitz, em Reforma educacional (1997), condena os indivíduos a se sentirem proprietários exclusivos de suas capacidades. Em uma linguagem mais referencial, a poesia de Semog chama a atenção para a seguinte distinção: a individualidade é um conceito absolutamente positivo. Já o individualismo é o exagero da individualidade e ele se aproxima do egoísmo. Como uma pessoa se torna tão autoconfiante e apaixonada pela própria imagem - a ponto de desprezar os outros?  Isso estilhaça a capacidade de convivência coletiva digna.

O texto de Semog pode ser interpretado, considerando dois grandes temas: a autoestima e a vaidade. O eu-poético, graças ao exercício de autocrítica, consegue perceber os perigos da atitude narcisista mais trivial. Na mitologia grega, Narciso era um jovem que se apaixonou por seu reflexo na água. A palavra “narcisismo” origina-se justamente desse mito, e é utilizada na psicologia comum para descrever pessoas autocentradas, com grande apreço por si próprias e, não raro, demonstram dificuldades em manter relacionamentos sociais. O narcisismo se caracteriza por uma visão de si inflada, sentimento de superioridade e excessiva autoadmiração. Logo, a autoestima projeta-se como amor próprio; enquanto a vaidade se revela como amor impróprio. A impropriedade, nesse caso, está muito bem expressa na ressalva feita por Semog em seu poema: “O meu Deus só tem/um perigo.../vez por outra Ele pensa/que mora no meu umbigo”.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

GORDINHO SALIENTE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), feita pelo IBGE em parceria com o Ministério da Saúde, acaba de revelar que mais de 56,9% dos brasileiros com mais de 18 anos têm excesso de peso. Deles, 20,8% são obesos. Sem querer atenuar a gravidade dos dados, urge sim contemplá-los, porém sem que eles se transformem em um dedo acusador dos abusos do copo e do garfo, ampliando, assim, os efeitos nefastos da “gordofobia”. Para tanto, convém salientar, por exemplo, as façanhas e proezas de um “gordinho saliente” que vem arrebentando a boca do balão nos gramados futebolísticos. 

Direto do túnel do tempo, desponta um memorável Fla x Flu, que marcou a estreia de Walter, ex-Goiás, com a camisa tricolor. No segundo tempo, o artilheiro entrou em campo e, com estilo, selou a vitória fluminense por 3 a 0. Assim, narrou o lance Luiz Carlos Júnior, pelo canal SporTV: “Olha o Chiquinho! Pro Walter! Goooool! É do Fluminense! É do estreante Walter. Um jogador raro. Acima do peso, mas um jogador de um raro faro de finalização, de precisão, de técnica”. Mais uma vez, o tipo físico sai na frente do talento, quando o assunto é destacar o desempenho futebolístico de Walter. 

O atacante foi eleito um dos craques da seleção do Brasileirão-2013, sendo autor de dribles, jogadas e passes magistrais, além de gols bonitos e importantes. Apresentou, assim, ótimo desempenho, contribuindo, naquela oportunidade, para a bela campanha do Goiás: com 59 pontos, o time ficou em 6º. lugar, na competição futebolística mais importante do país. Dos 48 gols marcados pelo time esmeraldino, Walter balançou a rede do adversário 13 vezes, o que lhe rendeu a 5ª. colocação na artilharia do torneio. Nada mau para um jogador perseguido pela mídia e opinião pública por conta de ter o corpo considerado fora dos padrões atléticos. Infelizmente, chama mais atenção o porte avantajado de Walter do que o talento do atacante. Acontece que o futebol é o mais democrático dos esportes, justamente por acolher as habilidades e competências presentes nos variados tipos físicos que compõem a espécie humana.

Além de habilidoso, merecem ser destacadas como virtudes do craque a autoconfiança e a ousadia. Sabiamente, Walter respondeu à ‘crítica maldosa’ com um futebol de primeira, demonstrado nos gramados por onde passa. Fiquei mais fã do jogador, quando Walter se recusou a comemorar seu gol contra o Atlético-PR, em sinal de protesto por conta da violência promovida por torcedores esmeraldinos, no estádio Serra Dourada, em Goiânia - GO. Com a atitude, Walter mostrou que o mundo das quatro linhas não pode ficar indiferente às ações truculentas que ocorrem fora dos gramados e colocam o Brasil como bicampeão mundial na estatística de mortes em confrontos no futebol. 

Fora os insultos pejorativos projetados sobre o jogador, a polêmica em torno do preparo físico de Walter mostra que a exceção não está morta, e que o diferente encontra ainda seu lugar. Admiro quem diz não, quem não se enquadra, quem está fora e não segue todas as normas. Quando parecia reinar a mesmice no futebol, surge alguém para nos redimir. Contrariando a noção dominante da boa forma física, Walter desmente a regra e supera em talento o exército de musculosos atletas que passam o dia nos aparelhos de ginástica dos clubes tentando, não aprender mais sobre o jogo de bola, mas conquistar mais músculos.

Alguns críticos se arvoram em argumentar: “se com esse peso Walter faz tudo o que faz, imagine-se o que não faria se estivesse no peso ‘ideal’?”. Parece lógico, mas não é. O jogador gastou a bola no Brasileirão exatamente porque tem o corpo que tem. Outro argumento é que nos dias de hoje um atleta de nível não pode ter aquele peso. Jogador de futebol não é simplesmente um atleta. A parte física tem o seu papel, mas sem a parte técnica, teremos apenas um punhado de brutamontes correndo atrás de uma bola. Prefiro acompanhar a categoria de Walter, fazendo gols de placa e jogadas brilhantes para a alegria dos apaixonados pelo esporte bretão. “Viva o Gordo!”, como diria Jô Soares, em seu famoso programa humorístico, exibido pela Rede Globo, nos anos 80. 

Esta história do mundo real me fez lembrar um livro de literatura infanto-juvenil chamado Gorda ou Magra, Abracadabra (1985), escrito por Giselda Laporta. Esperava encontrar ali uma tentativa ousada de tratar as noções de aparência e vaidade, ou seja, uma apurada discussão sobre a rede de preconceitos que costumam sustentar os padrões estéticos da sociedade. As personagens Carla e Rita são duas meninas que não estão satisfeitas com sua aparência. Carla é gorda e tem como apelido “balão”. Ela quer ser magra. Rita é magra, sendo chamada, por isso, de “palito”. Quer engordar. Galatéia e Bruvenildes são as duas bruxinhas que vão realizar os desejos de Carla e Rita. Gorda ou magra, abracadabra!

Feito o encanto, infelizmente, o desenvolvimento do enredo preferiu reforçar ainda mais as noções de que emagrecer quer dizer “encolher” (no caso de Carla) e engordar significa “estufar” (no caso de Rita), como preceituam os estereótipos de plantão. Quando a mãe de Rita vê sua filha, logo reage: “O que aconteceu, Jesus do céu? Você foi picada de abelha? Tá com alegria? Vamos direto pro pronto-socorro!”. Essa passagem monta a ideia de que gordo é ser inchado e doente. A mãe de Carla, quando vê a filha magra, grita: “Acuda, minha Nossa Senhora, a Carla murchou!”. Magreza serviu de referência para um estado esquelético, malnutrido. Ao invés de cultivar o respeito à diversidade biotípica, a obra de Giselda Laporta se deixou contaminar por caminhos estigmatizados. Observamos semelhante descuido no tratamento conferido ao talentoso jogador Walter, vítima da tirania dos sarados que ditam, dentro e fora das quatro linhas, as normas estéticas e atléticas. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

AS LIÇÕES DO ANALFABETISMO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Sobre o analfabetismo, Étienne Bonnot de Condillac (1714-1780) apresenta argumentação taxativa: “O verdadeiro órfão é aquele que não recebeu educação”. O professor emérito da UnB, Isaac Roitman, no artigo “Os órfãos da educação” (Correio Braziliense, 24/08/2015), oferece tentativa esforçada de explicação sobre a oração proferida pelo filósofo francês, considerando a realidade brasileira: “O que se espera de um país que ocupa o oitavo lugar no planeta em número de analfabetos adultos? Temos 14 milhões de adultos que não sabem ler nem escrever, sem contar os analfabetos funcionais. Eles são cegos sociais porque não conseguem decodificar o código escrito ao seu redor. Entre outras dificuldades, eles não conseguem ler o destino dos ônibus, a bula dos remédios, o cardápio das lanchonetes e até mesmo o que está escrito na bandeira brasileira. Eles podem ser considerados como órfãos da educação, pois não tiveram oportunidade de se alfabetizar no sistema educacional ou nunca tiveram oportunidade de frequentar uma escola”.

É necessário, contudo, destacar que os analfabetos historicamente sofrem com a indiferença impetrada pelos alfabetizados percebidos como “cidadãos de primeira classe”. Nesse sentido, o parlamentar pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910) apresentou posição argumentativa preciosa: “Não é dos iletrados e analfabetos – da massa inconsciente ou inerte, como diziam os apologistas do governo – que procediam os vícios das eleições: era dos emboladores de chapa, dos manipuladores, dos cabalistas, dos calígrafos. E era, em última análise, dos candidatos, ou melhor, dos deputados, dos senadores, dos ministros, quer dizer, das classes superiores. Mais escandaloso do que manter o voto dos analfabetos, era julgar que esses mesmos votos dos analfabetos, que não podem escrever, seriam culpados pelas atas falsas, [...] que lhes cabia o crime das qualificações fraudulentas, das duplicatas imaginárias e das apurações indecorosas”.

Como consequência desse quadro, Machado de Assis (1839-1908) concluiu argutamente, na crônica publicada no periódico Ilustração Brasileira, de 15/08/1876, que era falacioso pensar em opinião pública nacional formada pelo saber de todos os brasileiros. O alto índice de analfabetismo diagnosticado desde o Brasil Império oferecia margem para constatar esse parecer machadiano. Tais circunstâncias inquietaram o escritor-jornalista, a ponto de ele se certificar de que: “As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo político. Não se deve dizer: ‘consultar a nação, representantes da nação, os poderes da nação’; mas – ‘consultar os 30%, representantes do 30%, poderes dos 30%’. A opinião pública é uma metáfora sem base; há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na Câmara: ‘Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem...’ dirá uma coisa extremamente sensata”.

Outro entrave para a erradicação do analfabetismo se refere à timidez de uma comunidade acadêmica que palidamente reservam suas ações de pesquisa e extensão para promover a formação educacional daqueles que não foram contemplados pelos ganhos da alfabetização e do letramento. As unidades de ensino e aprendizagem precisam ter como meta principal de suas ações incentivar e compartilhar as benesses da educação para além das prerrogativas formais de instrução. A respeito, o saudoso escritor José Saramago (1922-2010), em Democracia e universidade (2005), esclarece:

“Dir-me-ão: ‘Mas instrução e educação não são o mesmo?’. Não senhores, não é o mesmo. Instruir é, obviamente, transmitir conhecimentos acerca das distintas matérias que estão no programa; educar é, segundo o dicionário, dirigir, encaminhar, doutrinar, e os professores, tenho de dizê-lo, ainda que isso possa incomodar alguém, não estão lá para educar mas para instruir, não podem educar porque não sabem e porque não têm meios para fazê-lo. Para instruir, sim, para isso receberam o encargo da sociedade, que lhes proporcionou os meios científicos, as ferramentas adequadas e os programas pertinentes, o necessário para transmitir um nível de conhecimentos que permita aos alunos progredir técnica e cientificamente na sociedade”.

Para que a instrução e a educação se encontrem no denominador comum da escolaridade, não adianta simplesmente enxergar os analfabetos como “cegos sociais” ou “órfãos da educação”. Uma família de analfabetos, com os seus valores, com as suas tradições, sejam camponeses ou da cidade, pode educar, é a educação mais básica que há, a primeira orientação para governar-se na vida com retidão. Num mundo instruído, as pessoas acolhidas verdadeiramente por ele podem encontrar algo diferente, fórmulas para acrescentar à primeira educação recebida. Assim complementarão e ampliarão a base. Ou seja, a educação recebida no seio da família.

Já sabemos dos estragos feitos por uma escola discriminatória. A respeito, o compositor Lúcio Barbosa, na música Cidadão (1979), chama a nossa atenção: “Tá vendo aquele colégio, moço?/Eu também trabalhei lá/Lá eu quase me arrebento/Fiz a massa, pus cimento/Ajudei a rebocar/Minha filha inocente/Vem pra mim toda contente/‘Pai, vou me matricular’/Mas me diz um cidadão/ ‘Criança de pé no chão/Aqui não pode estudar’”. Para impulsionar a alfabetização plena, a escola precisa se transformar em um espaço cooperativo no qual se intercalem a formação intelectual (consciência crítica), científica e artística de protagonistas sociais comprometidos eticamente com os desafios de construir outros mundos possíveis, fundados na partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.