sábado, 20 de junho de 2015

DIFERENÇA NÃO É DISTÂNCIA


Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A tolerância requer de nós aceitar as pessoas e consentir suas práticas mesmo quando as desaprovamos fortemente. Tolerância então envolve uma atitude intermediária entre a absoluta aceitação e a oposição imoderada. Trocando em miúdos: aceitar a existência de pontos de vista diferentes, conviver com eles, ainda que divergindo deles. Talvez o melhor exemplo dessa tradição seja a frase atribuída a Voltaire, que teria dito para Rousseau: “Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo”. Há que se considerar também o talento poético de Ricardo Evangelista, presente no texto Tolerância, um verdadeiro hino de respeito à diversidade:

“Sem-teto lavrador polícia/Patrão operário sindicalista/Fiscal camelô florista/Juiz torcedor jornalista/Pederasta puta machista/Negro índio turista/Diferença não é distância/Ambulante pedinte logista/Roqueiro punk sambista/Diretor arte e crítica/Estagiário doutor diarista/Faxineiro freguês frentista/Católico muçulmano israelita/É preciso haver tolerância/Protestante ateu hare-krhisna/Padre pastor ou budista/Caipira candango nortista/Engenheiro arquiteto ecologista/Paciente médico dentista/Nisei paraibano paulista/Com a outra ponta do ponto/Poeta editor contista/Americano cruzeirense galista/Vascaíno fluminense flamenguista/Coxa colorado gremista/Flanelinha pedestre motorista/Primitivo popular e erudita/No outro ponto de vista/Porteiro pintor artista/Intelectual boêmio esportista/Viajante cobrador maquinista/Grávida velho taxista/Cego professor autista/Vizinho vendedor visita”.

Palavras-chave do poema publicado no livro Mojepotara (2004): “Diferença não é distância/É preciso haver tolerância/Com a outra ponta do ponto/No outro ponto de vista”. Em relação ao convívio na diferença, devemos primar pelo respeito à opção ideológica de cada indivíduo e pela cautela na comunicação tenaz que se proclama. A palavra tolerância deriva do latim tolerare (sustentar, suportar). É um termo que define o grau de aceitação diante de um elemento contrário a uma regra moral, cultural, civil ou física. Na presente abordagem, propusemos a visão minuciosa em torno da relação terminológica na vida social. Tomás de Aquino concebe o termo tolerância como sendo o mesmo que a paciência. Não significa que se tolere a imoralidade ou desobediência, mas, sobretudo, exercer a capacidade de compreensão e argúcia na interpretação dos fenômenos que surgem ao longo do percurso quotidiano. 

No século 19, em luminoso livro, Sobre a liberdade, o filósofo inglês John Stuart Mill (1806-1873) forneceu um excelente argumento em defesa da tolerância. Argumento sustentado no princípio da ignorância universal dos humanos. Somos seres confinados em incontáveis circunstâncias particulares, a partir das quais pretendemos construir juízos de validade universal. Trata-se, mais do que de impostura, de um autoengano básico: tudo o que sabemos convive com zonas de sombra; cada acréscimo cognitivo abre o abismo de um campo sobre o qual muito ignoramos; quanto mais sabemos, mais ignoramos. Em suma, somos visceralmente incapazes de demonstrar a superioridade no campo dos valores últimos morais.

Relativismo? Nem tanto: o reconhecimento da ignorância deve conduzir à razoabilidade e à defesa da liberdade individual, duas cláusulas pétreas, portanto não relativas. Trata-se de bela fundamentação para a tolerância que, no entanto, deixa em aberta a questão: como tolerar os intolerantes?  Na nossa época e no futuro, penso que a tolerância deverá exercitar-se com menos ênfase sobre a boa vontade dos indivíduos e muito mais sobre a afirmação dos direitos substanciais protegidos pelas coletividades e por suas organizações públicas. A cidadania é uma forma de tolerância que não é baseada na vontade nobre de uma minoria iluminada, mas, sim, na capacidade de organização dos recursos e das instituições que existem na comunidade. A tolerância como ética do respeito da igualdade dos seres humanos se transforma em ética de acesso às oportunidades materiais e afetivas de que uma comunidade dispõe. 

A vida social seria, pois, idealmente habitada por sujeitos moralmente autônomos, movidos por um imperativo categórico: o de não desejar para outros o que não desejariam para si mesmos. A tolerância é “moralidade fina”, não sendo, portanto, “consenso sobreposto”. Caso contrário, ela amputaria o apetite de conhecimento, de compreensão real da alteridade, e dinamitaria a necessidade de debater. Em nome da tolerância, deve-se convocar a aceitação do “outro”, evitando-se a ignorância amável da opinião diferente, a suspensão da diferença como instância plural elementar. Para a vivência da verdadeira tolerância, é necessário o desacordo acompanhado da crítica à opinião tolerada. O elogio nos contenta; a crítica nos apura. Tolerar não apenas o que queremos ouvir, mas principalmente o que precisamos escutar. 

Em suma, a tolerância é o remédio anti-tolice. A tolice aprisiona o Homem, torna-o escravo de si mesmo, ao ponto de levá-lo a crer que a sua voz é a única coisa que merece ser ouvida enquanto o outro fala. Insensatos não escutam. Só falam. A capacidade de ouvir, empenhando-se para compreender o outro, não costuma ser um hábito cultivado pelo insensato. Salomão tinha razão quando proferiu: “o insensato não tem prazer no entendimento, senão em externar o seu interior” (Pv 18.2). 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.



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