quarta-feira, 17 de junho de 2015

A DOR PEDE PASSAGEM

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

De Múcio Goés estes sábios versos: “chega/a/noite/meço/a/dor/e ador/meço”. Considerando o verbo “medir” como ato justo de compreender e, assim, mensurar o que se passa, encontramos na voz poética uma vontade nítida de perceber o comunicado expresso na experiência de dor e que demanda compreensão especial. À medida que o eu-poético experimenta o convite feito pela dor, melhor o mergulho em si, fazendo com que os anseios da interioridade sejam contemplados, em termos de saúde integral. Desse modo, o eu-poético acaba encontrando formas de relaxamento (adormecer e descansar), a partir do alcance da “paz de espírito”. Neste sentido, é bastante oportuno o conceito de “cura” sugerido pelo poeta e doutor em Literatura Comparada (UFMG), Mário Geraldo Rocha da Fonseca: “cura, no sentido de curar o queijo, isto é, proporcionar todas as condições para que o queijo seja mais queijo”. Esta definição vai ao encontro do termo “potência em si”, defendido como excelência subjetiva, por Nietzsche.

Em Quando o sol bater na janela do meu quarto (1989), Renato Russo, band leader da Legião Urbana, apresenta uma sentença instigante: “toda dor vem do desejo/de não sentirmos dor”. A prática de saúde atual, a despeito de todos os avanços científicos, apresenta-se fragmentada e focada na superespecialização e no tecnicismo. Além disso, muitas vezes falha em fornecer ao indivíduo recursos de autoconhecimento, instrução e autoamor que o capacite a sedimentar a busca pela saúde de forma eficaz e permanente. “A grande maioria dos doentes da humanidade”, revela o médico Andrei Moreira, em Cura e anticura (2013), “desejam anestesia e não consciência”. Muito justo que se aliviem sintomas, evitando sofrimento desnecessário e improdutivo, mas o processo educacional que liberta o indivíduo da ignorância e da dependência é fundamental no processo de reconstrução da saúde integral. 

Diz-nos o médico espiritual Bezerra de Menezes, em Rumo à ciência do espírito (2010): “a medicina moderna, ainda eivada de enganos do materialismo, necessita da urgente e decisiva orientação de novos conhecimentos para que não se perpetue somente na produção de confortos orgânicos, uma vez que não sabe ainda se basear nos postulados do espírito imortal para edificar a verdadeira saúde”. O espírito é o princípio inteligente do universo. A matéria é o espaço onde o princípio espiritual desenvolve-se e de que se utiliza para seu processo de amadurecimento em direção à perfeição. A saúde biológica está na dependência da saúde dos corpos que controlam a matéria. O corpo mental determina o funcionamento do corpo físico. É importante compreendermos o papel das emoções, sentimentos e atitudes sobre eles, a fim de melhor ajuizar sobre a responsabilidade do homem na construção dos estados de saúde e doença. 

Poeticamente, José França, em Versos Pós-Modernos (2002), chama a dor de “arte do ruído”. A dor funciona como alarme, um alerta de que algo vai mal e merece a nossa atenção. Então, até certo ponto, a dor cumpre um papel saudável. Logo, a saúde pode ser compreendida como comunicação da plenitude. Acontece que, para um melhor progresso subjetivo, é preciso contemplar o que ainda não foi entendido. A doença, assim, ocupa o espaço do que ainda não foi processado pelo organismo. Desse modo, a dor pede atenção digestiva para que o incômodo alertado por ela cesse, e a saúde possa, então, se estabilizar.  

Convém salientar, portanto, que a dor, como mecanismo de proteção do nosso corpo, nos mantém alertas aos estímulos que possam ser nocivos ao nosso organismo. A doença, portanto, nos afeta como salutar sinalizador voltado para revisão de nossas condutas, no sentido de qualificar tanto o nosso entusiasmo como o nosso recolhimento. Ambos são necessários para que seja experimentada a harmonia como princípio vital. Reveladores neste contexto são os versos da poeta estadunidense Emily Dickinson (1830-1886): “As palavras na boca dos felizes/São músicas singelas/Mas as sentidas em silêncio/São belas -/Somente quem nunca vence/Sabe que é doce vencer./Só goza o sabor do néctar/Quem árdua sede sofrer”. 

Em Eclesiástico, por seu turno, a saúde não é retratada como a ausência de doença ou enfermidade. Vista como a nossa maior riqueza, a saúde, na condição de estado íntegro responsável pelo bem-estar físico, psíquico e social, nos oferece ânimo e alegria frente às dificuldades da vida: “Saúde e vigor valem mais do que todo o ouro, e é melhor um corpo robusto que uma enorme fortuna. Não há riqueza maior que a saúde do corpo, nem maior satisfação que um coração contente” (Ec 30, 15-16). Além da saúde física, fundamental para a vitalidade humana, em Eclesiástico também se destaca a importância da saúde mental ou psicológica como garantia da qualidade existencial: “não se deixe dominar pela tristeza, nem se aflija com preocupações. Alegria do coração é vida para o homem, e a satisfação lhe prolonga a vida” (Ec 30, 21-22).

Habilidosamente, no poema Dor elegante, Paulo Leminski (1944-1989) faz um elogio da dor como experiência de sensibilidade profunda, além de criticar a patologização da vida, isto é, a transformação de uma característica humana em doença ou desordem: “Um homem com uma dor/É muito mais elegante/Caminha assim de lado/Com se chegando atrasado/Chegasse mais adiante/Carrega o peso da dor/Como se portasse medalhas/Uma coroa, um milhão de dólares/Ou coisa que os valha/Ópios, édens, analgésicos/Não me toquem nesse dor/Ela é tudo o que me sobra/Sofrer vai ser a minha última obra”. 

* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

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