quinta-feira, 3 de setembro de 2015

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Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Bem-sucedido é quem é feliz, conforme aconselha Francisco Cândido Xavier (1910-2002), em Respostas da Vida (1975): “A felicidade não é um tapete mágico. Ela nasce dos bens que você espalhe, não daqueles que se acumulam inutilmente”. Uma sociedade feliz reivindica novo tipo de relação social. Afasta-se dos princípios fundamentais do neoliberalismo: a centralidade e a racionalidade inquestionável do mercado, a maximização do lucro, a competitividade, a eficiência, a relação entre custos e benefícios. Estabelece, como primeira prioridade irrenunciável, as necessidades básicas de alimentação, moradia, saúde, educação, trabalho, transporte coletivo e lazer para todos. A injustiça manifesta-se sobretudo na fruição pomposa e abundante dos bens materiais e simbólicos por estreitas camadas privilegiadas da sociedade e na sua carência quase total por parte das imensas massas populares.

Portanto, só haverá justiça à medida que se investir, não simplesmente no crescimento do bolo econômico, mas na sua repartição. O bolo tem crescido, mas a repartição vem sendo diminuída de modo que cada vez menos pessoas detêm mais parte da riqueza nacional. Uma sociedade fraterna se decide, não simplesmente pela acolhida afetiva e benquista entre seus membros, mas sobretudo pela qualidade das relações objetivas que se tecem. Essa se mede pelo reconhecimento da igualdade radical entre todos e pela certeza de que os direitos individuais e sociais, e a participação na construção da sociedade sejam garantidos a todos igualmente. Realiza-se assim a única fraternidade verdadeira, baseada na igualdade e no respeito aos direitos invioláveis de cada pessoa. Temos muitos desafios para viabilizar a sociedade fraternal, porém, como ressaltou Francisco Cândido Xavier: “Não permita que a dificuldade lhe abra porta ao desânimo porque a dificuldade é o meio de que a vida se vale para melhorar-nos em habilitação e resistência”.

O tsunami financeiro que se bateu contra o neoliberalismo, em 2008, veio silenciar a monotônica ladainha rezada até agora. O mercado dispõe da melhor racionalidade e as intervenções do Estado representam o arcaico, entulhos de passado desfeito. Impôs-se então a sociedade neoliberal como modelo único e insubstituível, expressada no “fim da história”, decretado pelo filósofo e economista político nipo-estadunidense Francis Fukuyama. Já não se pode pensar em nenhuma sociedade alternativa. O socialismo, que pretendera sê-lo, decretou a si mesmo atestado de óbito. Não se vê a que horizonte recorrer no momento atual para pensar uma sociedade alternativa. Ironicamente, o neoliberalismo gritou por salvação, voltando os olhos para o Estado. Remédio socialista para doença capitalista. 

O neoliberalismo vigente caracteriza-se pela sua dinâmica excludente, antidemocrática. Nenhum desenvolvimento econômico por si só realiza o milagre da solidariedade. Antes, ele vem sendo conduzido na linha oposta. Por isso, somente a solidariedade pode ser a real resposta à crescente exclusão. Um dos pontos fundamentais da exclusão reside na diferença de acesso à educação. Com efeito, na raiz da exclusão está uma questão de privação de saber, que só pode ser superada pela aquisição de um tipo de aprendizagem criativo. O educador Paulo Freire (1921-1997) já insistia na década de 50 para 60 que um país de analfabetos não pode ser democrático. A democracia implica necessariamente uma base cultural de todos. Ela se constrói ao mesmo tempo que as pessoas têm seus espaços de liberdade e adquiram acesso cada vez maior ao mundo da cultura.

É bom que se dia que as culturas tradicionais prezavam a qualidade e a durabilidade dos bens. O capitalismo não tinha ainda entrado na fase insana da produção em massa de bens de duração cada vez mais curta. A dimensão quantitativa cedia o passo à qualitativa. Fora de círculos esotéricos, os números secularizam-se, matematizaram-se na modernidade no interior da concepção newtoniana do mundo. A quantidade lentamente sobrelevou-se à qualidade, ao simbolismo. Tal deslocamento da qualidade para a quantidade afetou não só o campo das coisas como o das pessoas. Para entendermos melhor estas colocações, trago em meu socorro o filósofo alemão Jürgen Habermas, em sua Teoria da Ação Comunicativa (1999).

Habermas explica que a ação instrumental é uma forma de ação técnica que busca (racionalmente) aplicar os meios adequados para a obtenção de determinados fins. Este é o tipo de ação que se tornou predominante nas sociedades modernas na forma de dois subsistemas: o econômico e o político (“mundo sistêmico”). No subsistema econômico, o dinheiro substituiu a linguagem, e no subsistema político, o poder substituiu a linguagem. A ação instrumental orienta-se para o êxito; a ação comunicativa, por sua vez para o entendimento. O que tem ocorrido na história real do capitalismo é que as forças de racionalização do sistema e a diferenciação do sistema tem se demonstrado superiores às da racionalização comunicativa. Aquele espaço social onde ainda sobrevive a ação comunicativa, Habermas denomina de “mundo vivido”. No mundo da vida predomina a ação comunicativa; no mundo sistêmico, a ação instrumental. Os dois mundos interpenetram-se e dependem um do outro, mas estão sofrendo terrivelmente um processo de desacoplamento. 

O egoísta é o não ser; o solidário, o ser em plenitude. O vínculo burila a autonomia. A autonomia vitaliza, humaniza, dá vida ao vínculo. Eis o retrato poético de quem se doa pelo coletivo melhorado: “Quem tem consciência para ter coragem/Quem tem a força de saber que existe/E no centro da própria engrenagem/Inventa a contra-mola que resiste/Quem não vacila mesmo derrotado/Quem já perdido nunca desespera/E envolto em tempestade decepado/Entre os dentes segura a primavera” (texto extraído da canção Primavera nos dentes, gravada pelo grupo Secos & Molhados, em 1973). 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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