segunda-feira, 7 de setembro de 2015

MORTE E VIDA, TRAVESSIA...

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Místico, filósofo e alquimista chinês, Lao-Tsé (571 a.C-531 a.C), refere-se assim à questão da morte: “Quando nasce, o homem é fraco e flexível./Quando morre, é forte e rígido./Isto acontece com tudo./As árvores, as plantas são macias e tenras quando novas./Secas e duras quando morrem./A firmeza e resistência são sinais da morte./A fraqueza e flexibilidade, manifestações da vida”. Os antigos diziam que a sabedoria, aquilo que se adquire no curso da vida, não é possível no início, mas somente no fim de nosso caminhar – tortuosas, e quiçá gloriosas, veredas. Um único dia, do amanhã, poderá ressignificar todos os milhares de dias do ontem. Assim, dizer que vivemos dias a mais ou dias a menos é algo extremamente complicado nesta matemática que se estabelece entre morte e vida. Em relação a que dizemos que estamos mais vivos ou mais mortos?

Existir é insistir na vida, é suportar o mundo e prosseguir vivendo. Existir é difícil, e a tristeza, implacável. “Eu prefiro a morte sorrindo do que ter a vida chorando”, canta o roqueiro psicodélico, Serguei, em Eu não volto mais (1966). Trata-se de uma reflexão instigante em defesa da vida em plenitude, pois o tédio se faz mortífero ao prejudicar nossa potência de prazerosa alegria enquanto existimos. E a motivação de prosseguir vivendo deve ser uma esperança simples: a de vencer as agressões do cotidiano. Sem a sensação de perigo que o medo nos traz, lançaríamos a nós mesmos numa correnteza sem fim e enfrentaríamos o perigo impossível: a fera enorme ou as profundezas do abismo. O medo é a nossa segurança. É, portanto, nosso aliado na luta pela vida. 

O medo também é resultado da dúvida: produto de nosso desconhecimento sobre todas as coisas que nos cercam; sumo de um desconhecimento que é mais profundo ainda: o desconhecimento que é mais profundo ainda: o desconhecimento sobre nós mesmos. Temos medo porque não sabemos o futuro: “e o futuro é uma astronave/que tentamos pilotar/não tem tempo, nem piedade/nem tem hora de chegar/sem pedir licença/muda a nossa vida/e depois convida/a rir ou chorar” – como bem canta Toquinho, em Aquarela (1983). Esperança é viver do avesso. É considerar que há uma vida apesar da morte. E é pensar que há uma mesma coisa. A condição da esperança é ser um mistério: “nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá/O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar/Vamos todos numa linda passarela/De uma aquarela que um dia enfim/Descolorirá” – prossegue, com maestria, o músico. Descolorir, na imagem proposta na citada canção, significa compreender que vida e tempo se entrelaçam, porque viver não é encontrar-se com o infinito. Considerando que a vida – este espetáculo com começo, meio e fim – deve ser aproveitada, tendo em vista um determinado tempo.

A morte é paladina da humildade. Ao anunciar o fim do existir e ao comunicar o término da experiência, a morte nos iguala a todas as formas da vida. Porta-voz da igualdade, a morte nos nivela a tudo que há no mundo. Por maiores que sejam nossa fama, nossa riqueza e nosso poder, perecemos igualmente. A respeito, canta Gilberto Gil, em Roda (1975): “Se morre o rico e o pobre/Enterre o rico e eu/Quero ver quem que separa/O pó do rico do meu/Se lá embaixo há igualdade/Aqui em cima há de haver/Quem quer ser mais do que é/Um dia há de sofrer”. 

Não se julga a vida por aquilo que se herda: se muito ou pouco, não importa. A questão que se deve considerar é quão hábil fomos, e que conquistas obtivemos, através daquilo que nos foi dado. Enterrar moedas de ouro, na tentativa de guardá-las, não demonstra meus talentos. Para viver em sintonia com a ética da vida em abundância é preciso multiplicar o ouro. Usar os poucos recursos que temos para operar milagres. Ser é ser em entrega. Estamos inseridos num conjunto. Portanto, a ética deve levar em conta não apenas minha individualidade, mas também a coletividade da qual faço parte. Uma conduta ética pressupõe alteridade, pressupõe a presença do outro. E pressupõe, também, a responsabilidade que tenho sobre este outro e o impacto que minhas ações acarretarão sobre ele. E como pensar este outro senão como todo o conjunto de seres vivos? Porque o conceito ideal de vida precisa conter todos os seres em sua multiplicidade e diversidade.

No inferno, Dante e o poeta Virgílio leem a advertência: “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais!”. O primeiro castigo pelos pecados seria renunciar as expectativas de que algo bom aconteceria depois da morte. André Comte-Sponville sugeriu uma releitura da clássica Divina Comédia (1555), pondo uma sádica advertência na entrada do Inferno: “Enchei-vos de Esperança, ó vós que entrais!”. Gerar expectativas de um futuro melhor é uma forma de tortura mental muito eficaz, pois gera ansiedade em demasia e, assim, decepção na certa. Sábia é a doutrina de Buda, para quem o estado ausente de sofrimentos depois da morte, o Nirvana, é um reconfortante lugar onde desaparecem desejo e esperança. Pela lógica, o Paraíso de Dante deveria ser um convite para a paz da salvação sem possibilidade de entristecimento com expectativas.

A tomada de consciência de que temos os dias contados, imprime na vida do homem o sentido de missão e de destino, a urgência de nada adiar, mas antes de avançar na construção do seu projeto de vida, coerente e unitário. A tomada de consciência da morte como intrínseca e constitutiva da existência descobre ao homem novos valores, tais como os da humildade, do perdão, da coragem e da esperança. Reporta-nos a uma outra dimensão do existir, em que se diluem as diferenças e se instaura uma verdadeira comunhão entre os homens fundada no seu destino comum. A incidência da ética no morrer visa os seguintes valores: o respeito ético pela vida humana e a exigência ética de uma morte digna.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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