Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Domingo, 15 de junho de 2014. França e Honduras
entram para a história das Copas como o jogo que marcou o gol da tecnologia. A
vitória francesa por 3 a 0, além de ter contado com um show de Benzema, autor
de dois gols, apresentou um lance memorável. Aos três minutos do segundo tempo,
após chute na trave desferido pelo atacante francês, a bola bateu no goleiro
hondurenho Valladares. O arqueiro ainda tentou evitar o gol, mas não conseguiu
pegar a bola antes que esta cruzasse a linha fatal. Na esteira do que disse
profeticamente o pensador canadense McLuhan, nos anos 60, a tecnologia da linha
do gol, comprovando que a bola entrou, serviu como “extensão” dos olhos do
árbitro brasileiro Sandro Meira Ricci, que, auxiliado pela linguagem técnica,
confirmou o tento francês. Assim, o estádio Beira-Rio, em Porto Alegre (RS), se
tornou o primeiro palco futebolístico a ser agraciado pela novidade que
revoluciona o esporte criado há 150 anos.
É antiga a reinvindicação pleiteando a entrada do
recurso tecnológico para auxiliar o árbitro em tomadas de decisão no tocante a
lances polêmicos. Deve-se, em grande parte, a entrada da televisão no campo da
transmissão futebolística. Seus olhos de vídeo conseguem captar ângulos que a
lente humana não consegue alcançar. O replay e o tira-teima se tornaram provas
decisivas com que se dirime uma questão, contribuindo decisivamente para a
defesa do cumprimento das regras que zelam pelo funcionamento harmônico do
futebol, profissionalmente falando. Ferreira Gullar chegou a tratar desta
questão no artigo “Gol com a mão não vale”, na Folha de S.Paulo, de 15/03/2009.
Para o poeta maranhense, o futebol, em seu
espírito esportivo, consegue a proeza de fazerem valer a justiça e a
meritocracia, pois “nos permite viver numa disputa justa, uma vez que o número
de contendores é o mesmo de cada lado e as regras valem para todos. Se um time
é melhor que outro, isso se deve às qualidades dos jogadores e do treinador”.
Considerando o erro do árbitro como atitude que legitima a ilegalidade, o que
prejudica a eficiência do futebol como “idealização da vida”, Gullar pergunta:
“por que não dotar a arbitragem de recursos tecnológicos que evitariam os
erros?”. A defesa da tecnologia encontra forte argumento neste parecer emitido
pelo autor de Poema Sujo:
“O jogo não é igual à vida precisamente porque
possibilita uma disputa justa, em que todos estão submetidos às mesmas
exigências. Vence o melhor. A obediência às regras é a essência do jogo, porque
são elas que permitem a disputa de igual para igual. O árbitro existe para
impedir a violação das regras. Ampliar sua capacidade de seguir os lances e
apitar sem erros é preservar a essência mesma do jogo. Vitória injusta – por
roubo ou erro – é que não tem graça”.
Reza no mundo da bola da bola que boa arbitragem
é aquela em que o juiz passa despercebido. Um erro capital, seja ele um pênalti
marcado, um impedimento inexistente assinalado ou, ainda, a anulação de um gol
legítimo, põe todo o trabalho do árbitro a perder, pois ele acaba interferindo
diretamente no resultado do jogo. A graça do futebol não se encontra no erro do
juiz, na vitória injusta, na derrota injusta, na revolta do torcedor que se
sente garfado. Abrilhantam, de fato, o espetáculo o drible habilidoso, a jogada
inteligente, o gol bonito, enfim, a beleza e a maestria do próprio esporte
bretão.
Culturalmente, essa decisão adotada pela Fifa
expõe um clima de tensão reflexiva, envolvendo a “língua de tradição” e a
“língua técnica”, para ficarmos nestes termos trazidos à baila por Martin
Heidegger. Os tradicionalistas apontam para a necessidade de se pensar sobre a
supervalorização técnico-científica como aniquilação dos valores subjetivos que
conduzem a humanidade a um bem viver. O elogio dispensado à técnica e ao seu
poder de instrumentalizar a sociedade em matéria de conforto e bem-estar teria
como fator motivacional findar com as especulações metafísicas que tornam as
interpretações de mundo demasiadamente conflitantes em seus parâmetros
constitutivos. Os amantes da técnica, por sua vez, buscam realizar o sonho
moderno de converter os grandes problemas da humanidade em fórmulas passíveis
de manipulação por operadores lógicos. Na visão heideggeriana, a técnica nos
tempos modernos se coloca como “um modo pré-decidido de interpretação do
mundo”.
Ainda na conferência “Língua de tradição e língua
técnica” (1962), o filósofo alemão ressalta que a concepção corrente da técnica
consiste em, primeiramente, ser ela um meio para alcançar fins e, em segundo
lugar, uma atividade humana, ou seja, a técnica é um meio inventado e produzido
pelos homens. Técnica, em grego, é tékhné,
designando um saber voltado para a produção de qualquer coisa. Porém, o
desvelamento dominante na técnica moderna não se desenvolve numa produção no
sentido da criação poética, pois só aquilo que é calculável vale como ente. Daí
provém a ideia de precisão como unidade de medida que tem como horizonte se
aproximar da exatidão. Busca-se, com isso, dominar o conceito de verdade, em
bases verificáveis e controláveis, podendo, dessa maneira, servir à dinâmica
cada vez mais racional da organização total.
No sentido mais pragmático, portanto, a
tecnologia da linha do gol, utilizada, pela primeira vez, no futebol, atende às
demandas de precisão e padronização, requisitadas como critérios de obediência
ao reto cumprimento das leis que programam o esporte. Entretanto, existem
lances, numa partida de futebol, que escapam à operacionalidade tecnológica,
cabendo ao árbitro dar a palavra final sobre as ocorrências em campo. Afinal,
“o cérebro eletrônico faz quase tudo”, como bem assinalou o grande baiano
Gilberto Gil.
* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.
* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário