quinta-feira, 3 de setembro de 2015

GOL DA TECNOLOGIA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Domingo, 15 de junho de 2014. França e Honduras entram para a história das Copas como o jogo que marcou o gol da tecnologia. A vitória francesa por 3 a 0, além de ter contado com um show de Benzema, autor de dois gols, apresentou um lance memorável. Aos três minutos do segundo tempo, após chute na trave desferido pelo atacante francês, a bola bateu no goleiro hondurenho Valladares. O arqueiro ainda tentou evitar o gol, mas não conseguiu pegar a bola antes que esta cruzasse a linha fatal. Na esteira do que disse profeticamente o pensador canadense McLuhan, nos anos 60, a tecnologia da linha do gol, comprovando que a bola entrou, serviu como “extensão” dos olhos do árbitro brasileiro Sandro Meira Ricci, que, auxiliado pela linguagem técnica, confirmou o tento francês. Assim, o estádio Beira-Rio, em Porto Alegre (RS), se tornou o primeiro palco futebolístico a ser agraciado pela novidade que revoluciona o esporte criado há 150 anos.

É antiga a reinvindicação pleiteando a entrada do recurso tecnológico para auxiliar o árbitro em tomadas de decisão no tocante a lances polêmicos. Deve-se, em grande parte, a entrada da televisão no campo da transmissão futebolística. Seus olhos de vídeo conseguem captar ângulos que a lente humana não consegue alcançar. O replay e o tira-teima se tornaram provas decisivas com que se dirime uma questão, contribuindo decisivamente para a defesa do cumprimento das regras que zelam pelo funcionamento harmônico do futebol, profissionalmente falando. Ferreira Gullar chegou a tratar desta questão no artigo “Gol com a mão não vale”, na Folha de S.Paulo, de 15/03/2009.

Para o poeta maranhense, o futebol, em seu espírito esportivo, consegue a proeza de fazerem valer a justiça e a meritocracia, pois “nos permite viver numa disputa justa, uma vez que o número de contendores é o mesmo de cada lado e as regras valem para todos. Se um time é melhor que outro, isso se deve às qualidades dos jogadores e do treinador”. Considerando o erro do árbitro como atitude que legitima a ilegalidade, o que prejudica a eficiência do futebol como “idealização da vida”, Gullar pergunta: “por que não dotar a arbitragem de recursos tecnológicos que evitariam os erros?”. A defesa da tecnologia encontra forte argumento neste parecer emitido pelo autor de Poema Sujo:

“O jogo não é igual à vida precisamente porque possibilita uma disputa justa, em que todos estão submetidos às mesmas exigências. Vence o melhor. A obediência às regras é a essência do jogo, porque são elas que permitem a disputa de igual para igual. O árbitro existe para impedir a violação das regras. Ampliar sua capacidade de seguir os lances e apitar sem erros é preservar a essência mesma do jogo. Vitória injusta – por roubo ou erro – é que não tem graça”.

Reza no mundo da bola da bola que boa arbitragem é aquela em que o juiz passa despercebido. Um erro capital, seja ele um pênalti marcado, um impedimento inexistente assinalado ou, ainda, a anulação de um gol legítimo, põe todo o trabalho do árbitro a perder, pois ele acaba interferindo diretamente no resultado do jogo. A graça do futebol não se encontra no erro do juiz, na vitória injusta, na derrota injusta, na revolta do torcedor que se sente garfado. Abrilhantam, de fato, o espetáculo o drible habilidoso, a jogada inteligente, o gol bonito, enfim, a beleza e a maestria do próprio esporte bretão.

Culturalmente, essa decisão adotada pela Fifa expõe um clima de tensão reflexiva, envolvendo a “língua de tradição” e a “língua técnica”, para ficarmos nestes termos trazidos à baila por Martin Heidegger. Os tradicionalistas apontam para a necessidade de se pensar sobre a supervalorização técnico-científica como aniquilação dos valores subjetivos que conduzem a humanidade a um bem viver. O elogio dispensado à técnica e ao seu poder de instrumentalizar a sociedade em matéria de conforto e bem-estar teria como fator motivacional findar com as especulações metafísicas que tornam as interpretações de mundo demasiadamente conflitantes em seus parâmetros constitutivos. Os amantes da técnica, por sua vez, buscam realizar o sonho moderno de converter os grandes problemas da humanidade em fórmulas passíveis de manipulação por operadores lógicos. Na visão heideggeriana, a técnica nos tempos modernos se coloca como “um modo pré-decidido de interpretação do mundo”.

Ainda na conferência “Língua de tradição e língua técnica” (1962), o filósofo alemão ressalta que a concepção corrente da técnica consiste em, primeiramente, ser ela um meio para alcançar fins e, em segundo lugar, uma atividade humana, ou seja, a técnica é um meio inventado e produzido pelos homens. Técnica, em grego, é tékhné, designando um saber voltado para a produção de qualquer coisa. Porém, o desvelamento dominante na técnica moderna não se desenvolve numa produção no sentido da criação poética, pois só aquilo que é calculável vale como ente. Daí provém a ideia de precisão como unidade de medida que tem como horizonte se aproximar da exatidão. Busca-se, com isso, dominar o conceito de verdade, em bases verificáveis e controláveis, podendo, dessa maneira, servir à dinâmica cada vez mais racional da organização total.

No sentido mais pragmático, portanto, a tecnologia da linha do gol, utilizada, pela primeira vez, no futebol, atende às demandas de precisão e padronização, requisitadas como critérios de obediência ao reto cumprimento das leis que programam o esporte. Entretanto, existem lances, numa partida de futebol, que escapam à operacionalidade tecnológica, cabendo ao árbitro dar a palavra final sobre as ocorrências em campo. Afinal, “o cérebro eletrônico faz quase tudo”, como bem assinalou o grande baiano Gilberto Gil.


* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

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