quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A MÚSICA DO SILÊNCIO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

No princípio era o Silêncio. E o Silêncio se fez Som. Destaque lírico do CD Canção na cesta, do músico mineiro Ricardo dos Reis, é a fabulosa “Canção (um poema a ser musicado)”. Eis a letra: “A música, fora dela,/É silêncio/Silêncio é música que não se escutou ainda/As canções estão em toda parte/Partidas em cacos, pedaços/Partidas em quatro, um quarto/Partidas ao meio/metade/Às vezes completas/Perto, às vezes, distantes/Nas montanhas, nos vales.../Nos riachos circundando a memória/Todo mundo que fala poderia cantar/Quem não fala, também/A música, fora dela,/É silêncio/Silêncio é música que não se escutou ainda”.

Estes indícios textuais nos levam a crer que o silêncio é o sublime estado de “pré-música”. Dentre todas as expressões humanas, o silêncio continua sendo a que, de maneira muito pura, melhor exprime a estrutura densa e completa, sem ruído nem palavras, de nosso inconsciente próprio. Do silêncio provém o êxito contemplativo advindo do estado de encanto frente aos mistérios do universo. Podemos ainda dizer que o silêncio materializa o nosso afã meditativo voltado ao cultivo da interioridade como sensação íntima de bem-estar. Frei Betto, em “Arte da meditação” (2013), expõe em sábias palavras o que representa o silêncio como estado de felicidade para ouvir a intuição como primeira inteligência:

“Medita-se com o coração, não com a razão; com o inconsciente, não com o consciente com o não pensar, não com o pensar. Assim, de condutor passa-se à condição de conduzido. É preciso perder a mania de querer tudo controlar através da mente. É preciso despojar-se dela. Calá-la. Penetrar nos seus bastidores. Virá-la pelo avesso. [...] A mente é capaz de aprender a física da luz. Mas não a própria luz – esta, só a meditação capta. Meditar é mergulhar no mar. Não se pode possuir ou reter o oceano. Mas sim banhar-se nele, deixar que nos envolva, embale e carregue em suas ondas. Se somos capazes desse mergulho, então começamos a meditar”.

Parece que a referida canção de Ricardo dos Reis encontra doce repouso em outras águas, a exemplo das encontradas em Grande sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, quando o autor destaca que o silêncio é a gente mesmo demais. A música também encontra ressonância nas belas palavras de Lulu Santos e Nelson Motta, expressas na canção Certas coisas, de 1984: “Não existiria som/Se não houvesse o silêncio/Não haveria luz/Se não fosse a escuridão/A vida é mesmo assim/Dia e noite, não e sim/Cada voz que canta o amor não diz/Tudo o que quer dizer/Tudo o que cala fala/Mais alto ao coração/Silenciosamente eu te falo com paixão/Eu te amo calado/Como quem ouve uma sinfonia/De silêncios e de luz/Nós somos medo e desejo/Somos feitos de silêncio e som/Tem certas coisas que eu não sei dizer”. Prestando bem atenção nos dizeres de Ricardo dos Reis, chegamos à conclusão de que ouvir música é estar por dentro do silêncio e por fora do barulho. O barulho é a gente de menos. 

A canção de Ricardo dos Reis nos remete ao princípio de que o silêncio é sinal de respeito e sintonia espiritual. É a nossa conexão profunda com os infinitos saberes e sabores musicais. Diante de uma canção, explorando agora a estética da recepção, o músico salienta que, de forma íntegra ou fragmentada, assimila-se o teor das composições, conforme a ocasião e/ou estado de espírito do ouvinte. A música ocupa lugar no espaço tanto público como privado, considerando também o íntimo, isto é, a sensação de “morar no interior do meu interior”, conforme destaca Vander Lee, na canção Onde Deus possa me ouvir (2002). Em toda a parte ou num quarto, melodias nos acompanham; algumas estão mais próximas do nosso gosto; outras se encontram mais distantes do raio de nossas experiências e/ou predileções. Concebendo uma poética da repercussão, Ricardo dos Reis relembra como a música, em seus antecedentes históricos, esteve ligada ao canto de celebração à natureza e ao cultivo da terra. Percorrendo “montanhas”, “vales” e “riachos”, a música dar vazão ao nosso espírito bucólico. Aqui se revela um tom nostálgico, uma vontade de viver um flash back árcade, em que a vida no campo se tornava o principal mote para divagações do matutar primoroso. Espaço protegido do frenético disparar urbano. A voz poética de Ricardo dos Reis compartilha do mesmo desejo dos compositores Zé Rodrix e Tavito, exposto na canção Casa no campo, imortalizada na voz de Elis Regina: 

“Eu quero uma casa no campo/Onde eu possa compor muitos rocks rurais/E tenha somente a certeza/Dos amigos do peito e nada mais/Eu quero uma casa no campo/Onde eu possa ficar no tamanho da paz/E tenha somente a certeza/Dos limites do corpo e nada mais/Eu quero carneiros e cabras pastando solenes/No meu jardim/Eu quero o silêncio das línguas cansadas/Eu quero a esperança de óculos/E um filho de cuca legal/Eu quero plantar e colher com a mão/A pimenta e o sal/Eu quero uma casa no campo/Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé/Onde eu possa plantar meus amigos/Meus discos e livros e nada mais!”.

Ricardo dos Reis também sublinha a música como sendo a trilha sonora que marca os momentos especiais da vida. Nas canções, as memórias coletiva e individual se entrecruzam, revelando um universo simbólico complexo e inesquecível. O músico mineiro incentiva o público a soltar a voz, procurando difundir esta prática como sendo proveitosa e salutar: “Todo mundo que fala poderia cantar/Quem não fala também”. A partir do belo aforismo conclusivo da canção – “silêncio é música que não se escutou ainda” – Ricardo dos Reis chama a atenção para esse tipo de técnica primordial para abrir o nosso ouvido interior. Ao destacar o silêncio sem notas na composição musical, o músico mineiro, diferentemente de salientar o silêncio como uma ausência, ressalta poeticamente a importância da pausa como a presença positiva do silêncio.  

* Professor das Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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