quinta-feira, 3 de setembro de 2015

REFLEXÕES FORA DA CAIXA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Em O executivo e o martelo (2013), os professores Clóvis de Barros Filho e Arthur Meucci alertam: “A educação escolar, quase sempre, limita-se a nos preparar para a utilidade. Os cursos superiores, cada vez mais, associam excelência de ensino à formação de seus alunos para um desempenho útil nas empresas de prestígio. Focar na carreira profissional se tornou mais importante do que formar virtuosos profissionais – conscientes de seu papel social, capazes de inovar e críticos do próprio trabalho”.

Tal distorção de valores vem nos afastado da alegria de viver. O filósofo Baruch Spinoza (1632-1677) define alegria, em seu livro A ética demonstrada à maneira dos geômetras (1677), como sendo “a passagem de um estado menos potente para um estado mais potente e perfeito do próprio ser”. O culto da utilidade como foco principal movimenta um cenário grande de tristeza porque considera os registros afetivos, emocionais, imaginários e subjetivos, para o mundo da racionalidade formal, como não confiáveis e não pertinentes. No limite, eles não existem porque não sabemos atingi-los, analisá-los ou traduzi-los em números. O indivíduo, neste prisma, se vê reduzido a um sujeito habitado por uma suposta racionalidade que reduz todos os problemas da existência humana a um cálculo. Há um risco de quantofrenia aguda (a doença da medida) que espreita todos aqueles que, em vez de medir para melhor compreender, querem compreender apenas aquilo que é mensurável. A respeito, o saudoso poeta Manoel de Barros (1916-2014), em Livro sobre nada (1996), advertiu: “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá/mas não pode medir seus encantos./A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem/nos encantos de um sabiá./Quem acumula muita informação perde o cordão de adivinhar:/divinare./Os sabiás divinam”.

Conforme o paradigma utilitarista, cada ator procura “maximizar suas utilidades”, ou seja, otimizar a relação entre os resultados pessoais de sua ação e os recursos que a isso consagra. A preocupação com a utilidade é facilmente concebível em um universo em que as preocupações com a eficiência e a rentabilidade são constantes. É preciso ser sempre mais eficaz e produtivo para sobreviver. A competição é considerada como um dado “natural”, ao qual é preciso adaptar-se bem. Notável crítico deste poder gerencialista, o escritor Jack Kerouac (1922-1969), um dos ícones da geração beat, expressou, no livro On the road (1957), sua preocupação com os ideais de estabilidade e comodidade propostos pelo american way of life, uma vez que o aproveitamento da vida como regra máxima ficava em segundo plano, causando, assim, forte tensão social e ambiente coletivo fragmentado e demasiadamente competitivo:  

“‘Oh cara! cara! cara!’ balbuciou Dean. ‘E isso não é nem o começo – e agora finalmente estamos juntos indo para o Leste, nunca tínhamos ido pro Leste juntos, Sal, pensa nisso, vamos curtir Denver juntos e ver o que todos estão fazendo, mesmo que isso não nos interesse muito, a questão é que nós sabemos o que aquilo significa e sacamos a vida e sabemos que tudo está ótimo’. Depois, me puxando pela manga, e suando horrores, ele me segredou: ‘Agora saca só esse pessoal aí na frente. Estão preocupados contando os quilômetros, pensando em onde irão dormir essa noite, quanto dinheiro vão gastar em gasolina, se o tempo estará bom, de que maneira chegarão onde pretendem – e quando terminarem de pensar já terão chegado onde queriam, percebe? Mas parece que eles têm que se preocupar e trair suas horas, cada minuto e cada segundo, entregando-se a tarefas aparentemente urgentes, todas falsas; ou então a desejos caprichosos puramente angustiados e angustiantes, suas almas realmente não terão a paz a não ser que se agarrem a uma preocupação explícita e comprovada, e tendo encontrado uma, assumem expressões faciais adequadas, graves e circunspectas, e seguem em frente, e tudo isso não passa, você sabe, de pura infelicidade, e durante todo esse tempo a vida passa voando por eles e eles sabem disso, e isso também os preocupa num círculo vicioso que não tem fim’”. 

A partir dos personagens principais de On the road, Dean Moriarty e Sal Paradise, Jack Kerouac questionou a desvairada incitação ao investimento ilimitado do sujeito ao trabalho, para tentar satisfazer os próprios pendores narcísicos e as próprias necessidades de reconhecimento. Essa cultura do alto desempenho, porém, e o clima de competição generalizada, põe o mundo sob pressão. Trata-se de instilar nas mentes uma representação do mundo e da pessoa humana, de modo que o único caminho de realização de si consista em se lançar totalmente na “luta pelos lugares” e na corrida para a produtividade. Essa transmutação dos egoísmos individuais em comportamentos altruístas justifica a busca desenfreada de desempenhos financeiros. 

A falência da crítica e a razão cínica levam cada ator a ter um “comportamento racional” para defender seus interesses particulares, visto que esses interesses conjugados só podem favorecer o bem comum, o “milagre ético”. Para o filósofo Immanuel Kant (1724-1804), a ética está fundada sobre a noção de respeito, definido a partir de um princípio simples: tratar a pessoa humana sempre como um fim em si mesmo. Sob quatro aspectos, esse imperativo categórico está em contradição com os princípios da gestão vigente: a) a abordagem experimental e objetivista considera os indivíduos como objetos dos quais se procura medir os comportamentos; b) o utilitarismo leva a tratar o homem como um meio e não como um fim; c) a racionalidade instrumental leva a considerá-lo como um fator, ao mesmo título que os fatores financeiros, comerciais, logísticos, de produção; d) o economismo faz com que o pessoal seja levado em conta como uma variável de ajustamento diante das exigências do mercado. 


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

Nenhum comentário:

Postar um comentário