quarta-feira, 26 de agosto de 2015

PELOS PODERES DO POVO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Na opinião acertada de Severino Francisco, em “Desratização da política” (Correio Braziliense, de 24/08/2015), eis as razões mais fortes da corrupção política no Brasil: “O financiamento de empresas é a matriz da corrupção, da deformação e da desqualificação que transformou a política em um processo de seleção dos piores elementos da sociedade e não dos melhores. É ele que viabiliza a reeleição de bandidos de carteirinha que deveriam estar trancafiados na Papuda, frequentam os gabinetes da República e decidem o nosso destino. Com esse dinheiro sujo, eles compram votos, eleitores, mandatos, projetos de leis e até juízes. Graças a ele, o crime compensa. As manifestações de rua são altamente positivas. Mas, em vez de atirar a esmo em muitas direções, elas deveriam se concentrar nos dois alvos: a reforma política e o fim do financiamento de empresas. A riqueza das campanhas levou ao delírio do roubo e quase quebrou o país”. 

Acrescentaria ao parecer do jornalista a histórica falta de compromisso do poder com a sociabilidade sustentável. O poder de A implica a não-liberdade de B e a liberdade de A implica o não poder de B. Este paradigma encontra-se equivocado. É verdade que o homem, no exercício do poder, encontra-se submetido a duas condições básicas: a liberdade e a sociabilidade. Liberdade porque lhe é conferida a faculdade de optar, escolher, entre diversas alternativas, o curso da sua existência, já que diversamente ao reino animal, o homem se encontra no mundo da cultura e por isso não está submetido apenas a condicionamentos biológicos, fazendo por si próprio o destino e a condução da sua vida. Não obstante, o homem é essencialmente convivência, posto que impossibilitado de conseguir todos os bens que deseja, vê-se obrigado a associar-se aos demais para supri as suas carências e viver em harmonia com o grupo ao qual pertence. Esta condição o leva a sair da esfera privada, relações entre desiguais para a esfera civil, assumindo a condição de cidadão, relacionando-se em igualdade de condições com os demais, participando, assim, dos destinos do grupo.

O fenômeno do poder político está estritamente ligado ao advento da sociedade, quando o homem sai do estado selvagem em que se encontrava para o denominado estado civil, no sentido de civilizado. No Brasil, o poder como dominação (poder de fato) vem prevalecendo sobre o poder como regulação (poder jurídico). Ainda preso à concepção tradicionalista de aparelho que governa a sociedade, o Estado se atropela enquanto sociedade organizada juridicamente. É que para os governantes mal-intencionados, o objetivo é manter os seus privilégios, realizando-se o máximo de injustiça tolerável na perspectiva dos governados. Por outro lado, busca-se o máximo de justiça social possível, com o aumento do espaço político dos grupos sociais e uma maior distribuição dos bens.

A criação do Estado proveio da necessidade do homem de viver em comunidade, já que ele não se bastava para suprir suas carências, precisando da ajuda de outros para ajudá-lo nessa empreitada. Assim, visando ao bem-estar social, criou-se o Estado (a administração), o qual controlaria o comportamento dos membros do grupo mediante a aplicação de normas jurídicas. Segundo Cícero, em Da república (51 a.C.), “o Estado é a coisa do povo; e o povo não é um aglomerado qualquer de seres humanos reunidos de uma forma qualquer, mas a reunião de pessoas associadas por acordo”. Qualquer que fosse a acepção de Estado, este não podia prescindir da justiça – palavra que remete à noção daquilo que é justo. Com a evolução histórica dos grupamentos humanos, o tipo de poder dominante determinava o modo como este se estruturaria; o tempo provou que a melhor organização política era a Democracia – pelo menos a menos problemática. Nesse regime, o povo detinha a autoridade diretamente, ou indiretamente quando elegia representantes para agir em nome dele. 

Uma das explicações para a corrupção política brasileira revela-se na forte influência do poder remunerativo e do poder coercitivo sobre o poder normativo. Gaudêncio Torquato, em Novo manual de marketing político (2014), deposita esperanças no “poder expressivo” da comunicação, quando esta favorece o debate de ideias e ações construídas pelas interações sociais de qualidade coletiva. Nesse sentido democrático, oportuno retornar os estudos da Hannah Arendt, que fundamentou o conceito de poder no consentimento e não na violência. A cientista política em Sobre a violência (1969), trabalhou com a ideia de poder e de lei cuja essência não se assenta na relação de mando-obediência e não identifica o poder como domínio. Aqui, a noção de obediência refere-se ao apoio às leis para as quais os cidadãos haviam dado o seu consentimento. Desse modo, “poder”, em Arendt, refere-se sempre a uma relação de consentimento em que as instituições se sustentam no “apoio do povo”.

Acompanhando a tradição política brasileira, percebemos, infelizmente, que o poder autêntico está noutro lugar. O poder autêntico é o poder econômico, financeiro, esse que não aparece, no qual não se vota, que está num lugar não assinalado, a pressionar, a exigir, a mandar. E pode acontecer que países democráticos, com governos escrupulosamente democráticos, se encontrem na terrível situação de ter de cumprir obrigações que lhes são impostas de cima, e esse “de cima” não é democrático. Isto é, temos um sistema democrático regido por um sistema não democrático. Como superar esse constante clima de “democracia interrompida”? É necessário que se abra o debate para que a sociedade civil encare a contradição e deixe de viver de empréstimo. E reclamar a autonomia, que é sempre dos cidadãos, ainda que deleguem, e exigir transparência aos representantes.  

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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