domingo, 6 de setembro de 2015

SORRISO AMARELO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Dados disponibilizadas pelo IBGE e pelo Banco Mundial apontam que o Brasil chegou a ser, por volta de 1990, o país com a pior distribuição de renda de todo o mundo. Isso ocorreu possivelmente como consequência das políticas impostas durante o período ditatorial, combinada com a crise econômica que se iniciou no final da década de 1970 – crise essa também consequência das políticas adotadas durante aquele período. Por volta de 1990, os 10% mais ricos ficavam com mais da metade da renda nacional, enquanto os 10% mais pobres recebiam 0,6% dela. O que um representante médio daqueles mais ricos recebia e gastava em quatro dias era igual ao valor que, em média, um representante dos 10% mais pobres levava todo um ano para ganhar. 

A melhora obtida na distribuição de renda brasileira, em especial neste início de século, nos tirou do último lugar. Entretanto, ainda estamos em uma das piores posições. Atualmente, o que um típico representante dos 10% mais ricos ganha em pouco mais de uma semana equivale àquilo que um dos representantes dos mais pobres leva um ano para ganhar. Ou, em outras palavras, a renda somada de quase meia centena de famílias entre as mais pobres equivale à renda de uma única família do contingente formado pelos 10% mais ricos. 

As estimativas em destaque estampam a inaceitável desigualdade social e deixam sem nenhum crédito o fetiche da igualdade nacional. Extremamente necessário para compreender o descompasso nacional, disfarçado de ordem e progresso, Casa Grande & Senzala (1933), escrito por Gilberto Freyre, e O povo brasileiro: formação e o sentido do Brasil (1995), produzido por Darcy Ribeiro, apresentam linguagem perigosamente adoçada para descrever situações amargadas que até hoje conduzem o modus operandi da sociedade brasileira:  

(I) “A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo; de sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido a religião de família e influenciado pelas crendices da senzala [...] Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social”.

(II) “Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários – tantas vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem-feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho [...] Mas esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica; têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político”.

(III) “A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelo efeito social da miscigenação”. 

(IV) “Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o botão dê comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo”. 

O elogio da miscigenação racial foi o mote utilizado por Gilberto Freyre para abrandar os efeitos nefastos do regime escravista, camuflando, assim, as razões de fundo da desigualdade social em nosso país. Desse modo, estruturou-se a ficção da “morenidade” como virtude brasileira a ser projetada para o mundo como exemplo harmonioso de respeito às diferenças. Nota-se que as concepções freyrianas possuem uma certa similaridade com os argumentos de Darcy Ribeiro sob a especificidade de nossa nacionalidade: “Apesar de tudo, somos uma província da civilização ocidental. Uma nova Roma, uma matriz ativa da civilização neolatina. Melhor que as outras, porque lavada em sangue negro e em sangue índio, cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a viver mais alegre e mais feliz”. O fetiche da igualdade nacional continua se manifestando a todo o vapor, mesmo diante do trágico descompasso social que, desde os tempos coloniais, favorece uma minoria próspera e deixa uma multidão aflita. Como viabilizar o desenvolvimento como expansão das liberdades, se ainda existe a pobreza como privação das capacidades básicas da pessoa humana? A alegria brasileira, no fundo, ainda tem o sorriso amarelo.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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