segunda-feira, 7 de setembro de 2015

REMINISCÊNCIAS...

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Importante personagem do livro A república dos sonhos (1984), escrito por Nélida Piñon, Madruga, cheio de vitalidade, faz alusão à zona erótica do corpo para defender a tese de que é preciso profundidade para contemplar o passado e suas reminiscências: “– A ida ao passado nos revigora. Se for preciso, Bento, vá aos celtas, de quem descendemos. E se não for capaz de viajar, estará dando prova de que não tem imaginação, Madruga o espicaçou. Diante do silêncio de Bento, ele prosseguiu. – Todo país é um sexo por onde se enfia sem medir a profundidade do prazer. Tudo que se quer é ir fundo, o maior número de vezes possível. E o Brasil não foge desta regra”.

Reminiscência, do latim reminiscentĭa, é um conceito que se pode associar a evocações, memórias ou recordações. Uma reminiscência é a representação mental de uma situação, um feito ou outra coisa que teve lugar no passado. Em geral, entende-se a reminiscência como uma imagem pouco precisa ou uma recordação que a pessoa não atesoura com clareza. Uma reminiscência é quase um rastro ou uma pegada de algo que aconteceu anteriormente. A respeito, esclarece o filósofo Walter Benjamin (1892-1940), no ensaio Sobre o conceito de história (1940): “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.

Em pesquisa intitulada “Duas histórias especulativas contemporâneas: baseadas em fatos reais!” (2014), cuja apresentação se deu no IV Congresso Internacional de História, realizado na cidade goiana de Jataí, as historiadoras Michele dos Santos e Isabella Ferreira Viana Ribeiro defenderam uma relação humana mais lúdica e inventiva com os traçados da memória: “Se explorarmos o passado como a um brinquedo nos depararemos com uma série de possibilidades que foram esquecidas, mas não nulificadas, podendo ser, então, ‘salvas’. E, é com essa emancipação/libertação que nos deparamos ao divagarmos pelos mundos das histórias alternativas, pois elas pretendem ‘recuperar’ no passado o que foi perdido. Narrativas como O homem do castelo alto e Amphitryon são um elogio não só àquilo que o passado poderia ter sido, mas, antes de tudo, representam àquilo que a história não disse sobre ele”.

O que está fora da “ordem do discurso”, conforme destaca o filósofo Michel Foucault (1926-1984), dá mostras de que a explanação histórica se faz retórica e poeticamente ao mesmo tempo. Nessa perspectiva, há a desconfiança sobre a história existir enquanto campo de uma organização factual, de totalidade empírica, na qual se localizaria a verdade tal qual se acreditou existir, una e reconhecível, apesar de suas encenações várias. A respeito, Hayden White, em Meta-história (1973), destaca o importante papel dos “passos imaginativos” na composição da historicidade, em termos narrativos. Surge, assim, a figura do “historiador poético” que rasura a cômoda distinção apelada no par objetivo/subjetivo para operar um recorte interpretativo capaz de se afastar do quadro clássico de estruturar o saber: na classificação, no fato e na ordem. Desse modo, um todo orgânico linguístico se realiza entre a ficção e a realidade.

É impressionante como os aspectos factuais e fantasiosos se interpenetram na viagem que fazemos ao passado. Pelos caminhos primorosos da linguagem, Nélida Piñon, em A república dos sonhos, por meio da narradora Breta, destaca que, durante a peregrinação ao Cebreiro, Xan, o avô de Madruga, conta ao neto o quanto “um país se empobrece depressa quando lhe roubam suas histórias. Ou quando seus filhos se descuidam de descrever ou inventar outras em seu lugar”. Conhecer as raízes do Brasil profundo, recomenda a escritora carioca, significa vivenciar conscientemente a realidade. É o propósito, por exemplo, do personagem Tobias, filho de Madruga, que apresenta uma visão crítica do país, na contramão da memória hegemônica, responsável direta pela promoção de esquecimentos oportunistas:

“– As nossas franquias institucionais sempre representaram uma farsa, padrinho. Começando pelo aparato jurídico que é capenga, amolece diante dos regimes fortes. Por isso nos tornamos todos tiranos. Da estirpe de Getúlio, Médici e outros mais. Oferecemos café às visitas, que mal nos chegam na soleira da porta, com a chibata na mão. Não temos feito outra coisa que dilapidar um patrimônio que uns chamam de nação, outros de país, ou de pátria. O Brasil vem mentindo para si mesmo a cada hora. E não existe pior elite que a nossa. Ela condena os fracos e os miseráveis ao extermínio ou ao exílio. O exílio do silêncio e da não participação social. Da privação dos direitos humanos, disse a Venâncio, seu ouvinte diário”.

Interessa, portanto, muito mais relacionar o passado diretamente com o presente e reanimá-lo a cada investidura no ato de narrar. É simplório conservar o passado num esforço museal de memória. Não é a simples evocação do passado que deve servir para explicar o presente, mas é o sujeito que, estando numa posição dialética com o passado, se dispõe a referendar as reminiscências dignas de ressurgirem no presente, mostrando, assim, que não existe um passado em si, mas um passado visto com os olhos do presente.

Quem aprecia história se interessa pelo real. Mas também pelo real mais que real, conforme destaca o avô de Madruga: “Xan entrelaçava os fatos e as lendas com linguagem colorida e vivaz. E sempre que precisava enxertar novos elementos ao relato, abria parênteses, sem perder por isso o fio da meada. Diante, porém, da ansiedade alheia pelo desfecho, jamais acelerou o relato. Condenava a quem o forçasse a abreviar a história: – Se uma história exige um ano até ser contada, seria um crime amputar-lhe a beleza e a imaginação. Quem não sabe ouvir, vá bater em outra freguesia. Ou passe a viver sem elas”.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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