segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O REVOLUCIONÁRIO E O REVOLTADO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Na abertura do livro Ética na educação: filosofia e valores na escola (2003), o professor e filósofo Jorge Thums cita a canção Contador de estrelas (1999), composta por Fábio Jr. e Marinho Marcos: “Sempre que eu me pego/Contando estrelas no céu/Fica uma pergunta na minha mente/O que eu faço neste mundo?/Qual é o meu papel?/Pra onde é que vai a vida da gente?/Não é por acaso que a gente vive aqui nesse mundo/Existe uma razão maior/E eu quero saber antes do fim/Saber quem sou, pra onde vou, de onde vim./A vida é tão maravilhosa, é tão bonita./Pena que a gente não sabe viver!/Mas, um dia, a gente aprende, a gente conquista./E o sonho de ser feliz um dia vai acontecer”.
Trata-se de uma música em que os compositores tiveram a habilidade de não considerar os afetos de um ponto de vista estreitamente “psicológico”, isto é, como estado de alma observável e controlável, mas como disposição interior, ethos. O sentimento manifesta um modo de existir e exprime um modo de ser. É nossa vida por inteiro, corpo e alma, que se encontra implicada numa história afetiva da qual a alegria e a tristeza são as formas originárias das quais nascerão todas as outras. A alegria é o que sentimos quando percebemos o aumento de nossa realidade, isto é, de nossa força interna e capacidade para agir. Aumento de pensamento e de ação, a alegria é caminho da autonomia individual e política. A tristeza é o que sentimos ao perceber a diminuição de nossa realidade, de nossa capacidade para agir, o aumento de nossa impotência e a perda da autonomia. A tristeza é o caminho da servidão individual e política, sendo suas formas mais costumeiras o ódio e o medo recíprocos.
A canção de Fábio Jr. e Marinho Marcos apresenta outro mérito: defende a esperança como atitude prática frente à tristeza. A tristeza é o que sentimos ao perceber que nossa realidade diminui porque nossa capacidade de agir encontra-se diminuída ou entravada. Por sua vez, a esperança se coloca como uma potência intrínseca para a realização de um objetivo. Assim, nutridos de esperança, procuramos tornar o desejo verdadeiro, fazendo oposição à falência da expectativa de que algo vai realmente acontecer. Dialogando com o título de um poema de Aroldo Pereira, podemos definir a esperança como “paciência revolucionária”. Em que sentido? Explica o poeta, em parangolivro (2007): “mudar o mundo/é a nossa bandeira/mas não é pra já/é luta pra vida inteira”. A esperança não desanima, mesmo quando o êxito não é imediato.
A esperança nos unifica no conjunto da humanidade, na amorosidade. A amorosidade, aqui, entendida como um movimento de plenitude que extrapola a materialidade e o consumo das coisas, que se liberta do aprisionamento da propriedade, valorizando a essencialidade das relações. Enquanto a voz poética de um dos coautores da canção Contador de estrelas, Fábio Jr, se empenhou em enaltecer a revolucionária esperança, o citado compositor e músico da cena pop brasileira entrou no azedume de proclamar a revoltada desesperança, durante o evento Brazilian Day, ocorrido, no dia 06/09, em Nova York e transmitido pelo canal Multishow, da Globosat: “Vocês sabem o que está acontecendo no Brasil: desordem e roubalheira. É uma quadrilha. Eu tenho vergonha de ver nossos governantes, todo mundo roubando, todo mundo metendo a mão”.
A revolta é a atitude da mera indignação que nela estaciona. A pessoa fica horrorizada com o que vê: corrupção, pobreza, miséria, desespero. Isso nos horroriza e muitas vezes nos imobiliza: ficamos apenas revoltados. O indivíduo grita, bate, chuta, exclama: “Alguém tem de fazer alguma coisa”. Discursando de maneira torpe e truculenta contra a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula e culpabilizando exclusivamente os políticos petistas ou da base aliada ao governo pelo mal da corrupção brasileira, Fabio Jr. continuou mascando isso e aquilo de forma abrupta: “Vocês sabem onde está aquele dedinho que o Lula perdeu, né? Onde é que ele enfiou? No nosso. E dói pra caramba!”. Estimulado pelo revoltado pop star, a plateia ensandecida emplacou um coro inflamado, xingando a presidenta com expressão sexista e machista de baixíssimo calão.
Propagando impropérios aos borbotões, com o uso da liberdade de expressão sem a responsabilidade argumentativa, o cantor se fez corrupto, conforme advertência registrada no Evangelho segundo Marcos: “Ora, o que sai do homem, isso é que mancha o homem. Porque é do interior do coração dos homens que procedem os maus pensamentos: devassidões, roubos, assassinatos, adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação, orgulho e insensatez. Todos esses vícios procedem de dentro e tornam impuro o homem” (Mc 7, 20-23). 
O revoltado dispara desavenças. O revolucionário aprecia estrelas. Quando indignado, o revolucionário é aquele que dá o passo adiante, querendo mudar aquele estado desagradável de coisas que impedem a coletividade de experimentar a vida digna em plenitude. Todas as culturas que se sobressaem no mundo têm seus princípios comportamentais bem definidos e cultuados socialmente. No Brasil, vivemos uma pobreza enorme de comportamentos aceitos, aprovados socialmente. Aliás, o padrão comportamental é exatamente o avesso, o incorreto. Ser honesto, justo, correto e de índole boa parece algo desprezível. É preciso suplantar essa forma de ser coletivo em nome de uma nova ética comum.
Encontra-se presente no discurso alienado do artista brasileiro uma forma apenas superficial de focar o problema em destaque. A corrupção não é um ato, e sim um estado pessoal e social que suspende a interioridade honesta em nome do oportunismo aparente. A esperteza costuma tomar o lugar da inteligência no processo dissimulador. O triunfalismo atropela a sabedoria, impedindo que a verdadeira política se concretize como arte orientadora da vida em comunidade, isto é, a obra humana coletiva.  

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. 

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