Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Na abertura do livro Ética na educação: filosofia e valores na escola (2003), o
professor e filósofo Jorge Thums cita a canção Contador de estrelas (1999), composta por Fábio Jr. e Marinho Marcos:
“Sempre que eu me pego/Contando estrelas no céu/Fica uma pergunta na minha
mente/O que eu faço neste mundo?/Qual é o meu papel?/Pra onde é que vai a vida
da gente?/Não é por acaso que a gente vive aqui nesse mundo/Existe uma razão
maior/E eu quero saber antes do fim/Saber quem sou, pra onde vou, de onde
vim./A vida é tão maravilhosa, é tão bonita./Pena que a gente não sabe
viver!/Mas, um dia, a gente aprende, a gente conquista./E o sonho de ser feliz
um dia vai acontecer”.
Trata-se de uma música em que os compositores
tiveram a habilidade de não considerar os afetos de um ponto de vista
estreitamente “psicológico”, isto é, como estado de alma observável e
controlável, mas como disposição interior, ethos.
O sentimento manifesta um modo de existir e exprime um modo de ser. É nossa
vida por inteiro, corpo e alma, que se encontra implicada numa história afetiva
da qual a alegria e a tristeza são as formas originárias das quais nascerão
todas as outras. A alegria é o que sentimos quando percebemos o aumento de
nossa realidade, isto é, de nossa força interna e capacidade para agir. Aumento
de pensamento e de ação, a alegria é caminho da autonomia individual e
política. A tristeza é o que sentimos ao perceber a diminuição de nossa
realidade, de nossa capacidade para agir, o aumento de nossa impotência e a
perda da autonomia. A tristeza é o caminho da servidão individual e política,
sendo suas formas mais costumeiras o ódio e o medo recíprocos.
A canção de Fábio Jr. e Marinho Marcos apresenta
outro mérito: defende a esperança como atitude prática frente à tristeza. A
tristeza é o que sentimos ao perceber que nossa realidade diminui porque nossa
capacidade de agir encontra-se diminuída ou entravada. Por sua vez, a esperança
se coloca como uma potência intrínseca para a realização de um objetivo. Assim,
nutridos de esperança, procuramos tornar o desejo verdadeiro, fazendo oposição
à falência da expectativa de que algo vai realmente acontecer. Dialogando com o
título de um poema de Aroldo Pereira, podemos definir a esperança como
“paciência revolucionária”. Em que sentido? Explica o poeta, em parangolivro (2007): “mudar o mundo/é a
nossa bandeira/mas não é pra já/é luta pra vida inteira”. A esperança não
desanima, mesmo quando o êxito não é imediato.
A esperança nos unifica no conjunto da
humanidade, na amorosidade. A amorosidade, aqui, entendida como um movimento de
plenitude que extrapola a materialidade e o consumo das coisas, que se liberta
do aprisionamento da propriedade, valorizando a essencialidade das relações.
Enquanto a voz poética de um dos coautores da canção Contador de estrelas, Fábio Jr, se empenhou em enaltecer a
revolucionária esperança, o citado compositor e músico da cena pop brasileira entrou no azedume de
proclamar a revoltada desesperança, durante o evento Brazilian Day, ocorrido, no dia 06/09, em Nova York e transmitido
pelo canal Multishow, da Globosat:
“Vocês sabem o que está acontecendo no Brasil: desordem e roubalheira. É uma
quadrilha. Eu tenho vergonha de ver nossos governantes, todo mundo roubando,
todo mundo metendo a mão”.
A revolta é a atitude da mera indignação que nela
estaciona. A pessoa fica horrorizada com o que vê: corrupção, pobreza, miséria,
desespero. Isso nos horroriza e muitas vezes nos imobiliza: ficamos apenas
revoltados. O indivíduo grita, bate, chuta, exclama: “Alguém tem de fazer
alguma coisa”. Discursando de maneira torpe e truculenta contra a presidenta
Dilma e o ex-presidente Lula e culpabilizando exclusivamente os políticos
petistas ou da base aliada ao governo pelo mal da corrupção brasileira, Fabio
Jr. continuou mascando isso e aquilo de forma abrupta: “Vocês sabem onde está
aquele dedinho que o Lula perdeu, né? Onde é que ele enfiou? No nosso. E dói
pra caramba!”. Estimulado pelo revoltado pop
star, a plateia ensandecida emplacou um coro inflamado, xingando a
presidenta com expressão sexista e machista de baixíssimo calão.
Propagando impropérios aos borbotões, com o uso
da liberdade de expressão sem a responsabilidade argumentativa, o cantor se fez
corrupto, conforme advertência registrada no Evangelho segundo Marcos: “Ora, o
que sai do homem, isso é que mancha o homem. Porque é do interior do coração
dos homens que procedem os maus pensamentos: devassidões, roubos, assassinatos,
adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação,
orgulho e insensatez. Todos esses vícios procedem de dentro e tornam impuro o
homem” (Mc 7, 20-23).
O revoltado dispara desavenças. O revolucionário
aprecia estrelas. Quando indignado, o revolucionário é aquele que dá o passo
adiante, querendo mudar aquele estado desagradável de coisas que impedem a
coletividade de experimentar a vida digna em plenitude. Todas as culturas que
se sobressaem no mundo têm seus princípios comportamentais bem definidos e
cultuados socialmente. No Brasil, vivemos uma pobreza enorme de comportamentos
aceitos, aprovados socialmente. Aliás, o padrão comportamental é exatamente o
avesso, o incorreto. Ser honesto, justo, correto e de índole boa parece algo
desprezível. É preciso suplantar essa forma de ser coletivo em nome de uma nova
ética comum.
Encontra-se presente no discurso alienado do
artista brasileiro uma forma apenas superficial de focar o problema em
destaque. A corrupção não é um ato, e sim um estado pessoal e social que
suspende a interioridade honesta em nome do oportunismo aparente. A esperteza
costuma tomar o lugar da inteligência no processo dissimulador. O triunfalismo
atropela a sabedoria, impedindo que a verdadeira política se concretize como
arte orientadora da vida em comunidade, isto é, a obra humana coletiva.
* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
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