segunda-feira, 28 de setembro de 2015

DONA LILI

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


A liberdade é essencial na filosofia política, por se tratar do primeiro dos bens civis do cidadão e base de sua vida. Pela palavra, considerando a liberdade individual e a responsabilidade social em expressá-la, o homem, como ressaltava Aristóteles, se consolida como um ser vivo político. Registrado na célebre obra intitulada Política, encontra-se a distinção que o filósofo grego fez entre a palavra e a voz, considerando, em termos mais específicos, as finalidades comunicativas das operações expressivas em questão. Se a voz exprime somente a dor e o prazer, a palavra consegue exprimir o útil/justo e o prejudicial/injusto. A capacidade política do homem provém, portanto, da desenvoltura argumentativa presente na capacidade de construir teses e práticas a favor da utilidade e da justiça.

Em discurso pronunciado no Athénée Royal de Paris, em 1819, Benjamin Constant alerta, com perspicácia, sobre as limitações que cercam a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos, quando seguidos à risca, sem considerar a relevante ponderação ética: “O perigo da liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a participação no poder social, os homens não se preocupassem com os direitos e garantias individuais. O perigo da liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca de interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político”.

Diante do dilema apresentado por Constant, uma lei é considerada justa, quando sempre garante a liberdade, considerando o cidadão como senhor de suas escolhas e responsável pleno pelos seus atos. Isso inclui também a garantia legal da dignidade com que o cidadão deve ser tratado pelos agentes públicos. Liberdade política significa também impedir movimentos de censura que prejudicam a democracia. Um cidadão livre é aquele que pode se exprimir, celebrar suas crenças, se fazer representar, produzir, empreender e usufruir dos frutos produzidos individual e socialmente. Para que este modelo funcione a contento, é necessário empenho participativo para superar a linha que divide a sociedade em duas classes, como diria o jornalista e poeta francês Nicolas Chamfort, no século VII: uma que tem mais apetite que jantares, outra que tem mais jantares que apetite.

Em matéria de cidadania, a liberdade precisa, portanto, sair do mundo das ideias (liberty) para se realizar no mundo sensível (freedom). Para tanto, faz-se necessário trazer a equivalência dos jantares e dos apetites. Em outras palavras: precisamos zelar pela justiça em seu estado mais nobre. Entendemos o justo como o estabelecimento coletivo do correto, viabilizando o respeito à igualdade de todos os cidadãos. Reivindicando, com primor artístico, a realização deste paradigma vital, Edson Gomes, grande nome do reggae brasileiro, salienta, na música Lili (1990), que a liberdade tende a se efetivar de forma coletivamente socializada, ou seja, a experiência individual da liberdade só pode ser experimentada em uma sociedade humana livre: 

“Vamos amigo lute/Vamos amigo lute/Vamos amigo lute/Vamos amigo ajude, se não/A gente acaba perdendo o que já conquistou/A gente acaba perdendo o que já conquistou/Vamos levante lute/Vamos levante ajude/Vamos levante grite/Vamos levante agora/Que a vida não parou/A vida não para aqui/A luta não acabou/E nem acabará/Só quando a liberdade raiar/Só quando a liberdade raiar/Liberdade/Liberdade/Teu povo clama lili/Dona lili”.

É necessário que todo cidadão, muitas vezes tratado como consumidor, como peça de um jogo para levar ao poder pessoas individualistas e que não se preocupam com o coletivo, reafirme sua posição como um agente de transformação, capaz de mudar situações de miséria e exclusão em que vive boa parte da população. No campo da liberdade política, ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Significa participar do destino da sociedade democraticamente. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva. 

A comunidade civil não pode, portanto, ser considerada como um apêndice ou uma variável da comunidade política. A civil tem preeminência sobre a política. Sua justificação é o serviço prestado aos cidadãos, todos, na construção de uma sociedade justa, solidária e depositária de valores. A referência é aos valores relacionais, morais, éticos e de abertura à transcendência. O desenvolvimento humano integral só é bem entendido e praticado quando fundado na verdade e na solidariedade. A política se configura mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objetivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. 

O que nos faz humanos é o que nos possibilita, com liberdade, governar nosso destino, desde que lutemos contra nossa ‘‘inércia mental e volitiva’’ e acrescentemos a isso o tempero da bondade, para que possamos construir uma sólida e resistente ponte por sobre o abismo de nossa própria ignorância. Por isso, o exercício da liberdade demanda de todos nós força e sagacidade. Inspiro-me, neste caso, nas sábias palavras do escritor italiano Giovanni Boccacio, expostas na clássica obra Decameron (1348-1353): “Sabe-se que as coisas deste mundo são todas transitórias e mortais, em si e fora de si cheias de tédio, de angústia e de tormentas, passíveis de infinitos perigos; às quais nós, que vivemos misturados a elas e somos parte delas, não poderíamos certamente resistir nem evitar se a especial graça de Deus não nos emprestasse força e sagacidade”. 


* Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.

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